quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Hollywood manchada de vermelho: A cidade do silêncio

Há muito não assistia a um filme que me deixasse impactado, não no sentido de despertar pensamento dúbio sobre a mensagem transmitida pelo roteiro (desses vi alguns recentemente: Dogville, A Origem, A Trilha, Código de Conduta, etc.), mas no sentido de causar certo espírito de revolta com uma narrativa limpa e objetiva. A obra ou o produto hollywoodiano que me refiro se chama “A cidade do silêncio” (Bordertown, EUA, 2006). A surpresa foi maior porque não dava nada pela história, tampouco pelo elenco (Antônio Bandeiras e Jennifer Lopez são os protagonistas). Mas o diretor e roteirista californiano (descendente de mexicanos e bascos) Gregory Nava conseguiu fazer um ótimo trabalho. Muito por conta de o roteiro ser a ambientação de uma história real vivenciada (até hoje) na cidade de Juarez no México.
O filme denuncia o “feminicídio” ocorrido na mesma proporção que a produção de televisões e monitores fabricados nas indústrias americanas instaladas em Juarez, cidade fronteiriça ao Texas. Essa escala de medida não é inteiramente ilustrativa, tendo em vista que o roteirista consegue estabelecer uma relação (in)direta entre o subdesenvolvimento do México, acentuado pelo acordo de livre-mercado com os EUA através do NAFTA, e o índice de assassinatos de mulheres da cidade mais violenta da América Latina, segundo o CCSP e outras fontes[1]. Chega ser engraçado lermos na BBC que a cidade vizinha à Juarez, El Paso no Texas, é uma das cidades estadunidenses mais seguras e pacíficas. Óbvio que a forte segurança contra a imigração ilegal e o narcotráfico contribua muito para isso; contudo, a população de El Paso  composta por 80% de latinos, mostra que, não são questões puramente étnicas as causas da criminalidade, mas principalmente fatores políticos e econômicos[2].
As empresas estadunidenses assentadas na cidade mexicana dão preferência à contratação de mulheres para trabalhar em suas linhas de montagens, pois, conforme o filme ressalta, estas reclamam menos das longas jornadas de trabalho e são menos remuneradas que os homens. Essa globalização é fruto de uma política neoliberal acordada entre governantes americanos e mexicanos, e contribui para uma desigualdade entre os países que participam do acordo, geralmente não perceptível à primeira vista por todos. O livre-mercado só é significativo, neste caso, para os EUA, tendo em vista que o México não possui esses milhares de empresas instaladas no território yankee, pelos motivos dos quais já estamos carecas de saber desde as aulas de geografia política do ensino médio.
Aliás, essa realidade macro-econômica muito me lembra uma passagem de “O Capital” de Marx, onde o trabalhador agora solto, solteiro, livre e apartado dos seus meios de produção (no caso do campesino, a terra tomada pelos cercamentos e impostos) agora é obrigado a trocar o único bem que possui: sua força de trabalho (ou sua vida, se lhes convierem); uma troca desigual, pois, já sabemos também que a força de trabalho gera mais valor do que ela mesma tem. Em disposição parecida se encontra o México no NAFTA, quer dizer, em teoria ele poderia fazer o mesmo que os Estados Unidos faz, mas na prática, assim como o campesino que perdeu a posse de seu meio de produção, o país se vê obrigado a se sujeitar alugando sua mão-de-obra, pois não possui indústrias e fábricas modernas na mesma quantidade que seu “parceiro” comercial.
Embora as autoridades políticas e policiais não queiram investigar o alto índice de homicídio de mulheres (ao contrário, querem esconder) e os proprietários das indústrias americanas façam vista grossa para as centenas de funcionárias e ex-funcionárias estupradas e violentadas sexualmente e depois executadas, a realidade está escancarada ao mundo inteiro através do barulho feito por outra indústria, a hollywoodiana. Existe um diálogo interessante no filme que retrata a indiferença e o cinismo capitalista: a jornalista americana (Jennifer Lopez) que vai até a cidade investigar as mortes pergunta ao um empresário se ele não se importa com as vítimas e propõe que ele denuncie os criminosos (inclusive empresários e senadores envolvidos), então ele pergunta: “denunciar para quem? Todos sabem e participam da matança, quem deveria se importar é quem mais está ganhando em ocultar os crimes, é mais barato escondê-los do que resolvê-los”.
No término do filme fiz uma pesquisa rápida para checar as informações transmitidas por ele, e infelizmente os acontecimentos não destoam da ficção. Depois que a mídia (aqui cumprindo uma função social de extrema importância) expôs ao mundo o que as autoridades silenciavam, houve (e ainda há) uma série de manifestações contra a violência, os homicídios e a exploração sofrida em Juarez. No começo de 2011, Suzana Chavez, uma ativista e poetiza mexicana, que participava das manifestações e criou a expressão “nem mais uma morta”, foi brutalmente estrangulada e assassinada na cidade de Juarez (da mesma maneira que outras mulheres) e teve sua mão esquerda decepada (como uma espécie de punição pelo que ela escrevia). Contudo, policiais mexicanos disseram que seu assassinato não teve relação com seu ativismo político, segundo o jornal britânico BBC.[3] No “Diário da Liberdade” uma reportagem diz que o governo mexicano tentou esconder este crime hediondo sob o pretexto de não despertar a ira social.[4] Atualmente, Suzana se tornou um símbolo da luta das mulheres de Juarez.
Imagem real em Juarez
Certos filósofos de extrema direita têm dito que Hollywood hoje é comunista, por conta dos filmes críticos ao capitalismo e ao imperialismo (Senhor das Armas, Diamante de Sangue, Clube da Luta e outros), mas não sejamos tão maniqueístas e rasos; é verdade que existe um tom anticapitalista em alguns filmes, mas não representam nenhuma conversão ideológica ao comunismo ou ao anarquismo. Longe de fazermos também análises psicologizantes como propõe o marxista lacaniano Slavoj Zizek[5], entendemos que estas expressões artísticas são apenas desilusões às conseqüências da política econômica de “livre-mercado”, da mesma maneira que Euclides da Cunha e os frankfurtianos se descontentaram com os mitos da modernidade, do progresso e da civilização como filhos do Iluminismo. O vermelho de Hollywood é não é do comunismo, mas do sangue derramado das mujeres de Juarez pelo capitalismo.

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[1] Conselho Cidadão de Segurança Pública, uma organização civil mexicana. Mas existem outras inúmeras fontes nacionais e internacionais que, ou consideram Juarez a cidade mais violenta ou perigosa do mundo, ou está na lista seleta destas estatísticas: http://www.rnw.nl/portugues/article/cidades-mais-violentas-do-mundo
[2] De acordo com a BBC, os dados do FBI apontam que El Paso é a segunda cidade mais segura dos EUA: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/07/100729_mexico_rc.shtml
[3] http://www.bbc.co.uk/news/world-latin-america-12177543
[4] http://www.diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=10873:nem-mais-uma-morta-assassinada-activista-susana-chavez&catid=280:mulher-e-lgbt&Itemid=182
[5] Ver: ZIZEK, Slavoj. O mito familiar da ideologia. In:______. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011, p.71-112.

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