sábado, 24 de março de 2012

Nietzsche e o niilismo: esperanças no pessimismo

Acho incrível como esse filósofo do final do século 19 consegue ser tão contemporâneo. Entretanto o pensamento de Nietzsche tem sido frequentemente subestimado, deslegitimado, domesticado e neutralizado. A apropriação do autor pelo nazismo, a agressividade atacante de todos nossos valores morais e sistemas de pensamento com “certificado de verdade”, a institucionalização universitária e o desconhecimento preconceituoso de sua filosofia são os principais motivos para esvaziar sua importância à modernidade. Neste post tento discutir alguns postulados mais superficiais do autor.

O filósofo é chamado equivocadamente de niilista. Aliás, tal característica foi explicitamente usada por ele para fazer uma crítica a nossa sociedade. É possível que Nietzsche seja um niilista, mas não no sentido do termo em voga, segundo o qual descreve o indivíduo descrente que rejeita qualquer tipo de hierarquia de valores estéticos, éticos, políticos e etc. Nietzsche teria utilizado esse adjetivo para criticar justamente uma determinada época da modernidade, inclusive, sem saber, o seu futuro – nosso presente.

Para Nietzsche o niilismo começa com o período socrático grego e se estende até a modernidade ocidental. Contudo, o niilismo é atravessado por diversas fases e sofre mutações durante o tempo. Possui uma historicidade. Na época antes de Sócrates, isto é na Grécia Antiga, não havia o niilismo, pois a religião era politeísta e composta por seres antropomórficos, na qual os deuses inclusive se pareciam com os seres humanos. Não havia uma regra geral nem um princípio norteador que determinasse os conceitos de bem e de mal. Os diferentes deuses olímpicos afirmavam a diversidade e a multiplicidade de existência. Neste sentido, Nietzsche acreditava que o politeísmo grego pré-socrático legitimava a liberdade e a pluralidade do pensamento humano.

O aparecimento do niilismo coincide com a decadência do politeísmo grego e com a ascensão do monoteísmo judaico-cristão. Devido a uma grande rigidez moral que se quer orientadora da existência humana, o conflito e a hostilidade, que são os princípios instintivos inerentes à vida para Nietzsche, são renegados, considerados males, com o advento da ética do “bem de todos”. Toda ação afirmativa que pretende ser potencialmente criadora da existência humana é rejeitada e a exaltação dos fracos tornar-se uma apologia da impotência em oposição à força criativa. Esta nova característica cultural chamada de niilismo incompleto é a negação da vida. Não da vida como acontecimento, mas sim da vida enquanto ontologia, enquanto criação incessante de si mesmo. Daqui podemos entender a dimensão da crítica do filósofo ao cristianismo compreendido, por ele, como a "moral dos escravos". Isto é, a religião que exalta os fracassados, inventada a partir da pobreza, não só material, mas espiritual. E que promete a esses fracassados uma outra vida - agora de abundância - ao preço que neguem essa vida, a vida terrena.

Por isso o cristianismo é considerado uma filosofia niilista que prega a negação da vida. A criação e o conflito não são mais os valores que orientam a existência, estes são substituídos pela compaixão. Ou seja, o sentido de existência agora é transcendente, ele está fora do próprio ser. “A moral que se instaura termina por fazer uma apologia exclusiva do sofrimento. Esse sofrimento é criado, mantido e exaltado pelo cristianismo. Nota-se assim que a existência da moral, da verdade e do bem são totalizações de ordem filosófica que guiam a vida social produzindo um enfraquecimento da vida, um vir-a-ser nada, afinal niilismo” (RIBEIRO, 2008, p. 05).

Assim, após a melhor época grega vieram os filósofos da moral. Platão, já estando impregnado de moral, inventou o conceito de bem supremo. Houve antes a filosofia que instaurou a racionalidade e engendrou a oposição verdade/aparência. Platão fechou a tampa do caixão escrevendo "o mito da caverna" com a oposição de luzes/trevas. Portanto, começará a vigorar a chamada filosofia da Vontade de Verdade. Mas, a verdade, nesse caso, é o absoluto. Algo transcendente e exterior que atribui o sentido de existência aos seres e a noção de verdade ou de mentira às coisas. Portanto, para Nietzsche a invenção de Deus, o todo-poderoso, o demiurgo maçônico, o deus-único, o Uno platônico[1], o Absoluto hegeliano é parte de uma única totalização que se quer norteadora da existência e da expressão de verdade dos seres e das coisas. De igual modo quando a ciência critica a religião, e obriga desacreditar “nessas mentiras”, nada mais está fazendo do que se pautar por uma Vontade de Verdade de acordo com uma moral similar.

Com a morte de Deus anunciada, não foram poucos os que tentaram (e ainda tentam) tomar seu lugar: a ciência, a tecnologia, as consciências revolucionárias. Todos arrogantemente crentes de uma verdade absoluta que prometeria uma vida plenamente feliz após a negação da nossa existência em favor de algo exterior a nós. A Vontade de Verdade é um niilismo incompleto, pois é a negação da vida como criação, mas busca um sentido totalizador para ela.

O niilismo completo é o que rejeita qualquer possibilidade de existência de algum sentido totalizador à realidade e à vida. Essa espécie de niilismo não aceita mais a crença em um verdadeiro mundo, ela é ainda um niilismo passivo como no niilismo incompleto, pois apesar de abandonar a credulidade em algo que dê sentido a existência e a realidade fora de si, ainda assim nega a criação. Talvez essa seja a fase mais nítida que passamos na contemporaneidade - exacerbada pelo relativismo absoluto dos autores pós-modernos que tentaram se desembaraçar dos ideais da modernidade (liberdade, igualdade, fraternidade, progresso, desenvolvimento, emancipação) quando se desiludiram com o cenário internacional do pós-guerra, a ascensão dos totalitarismos (de direita e de esquerda), as crises do capitalismo, a destruição ambiental e etc.; o esvaziamento das participações políticas tradicionais e dos movimentos sociais; a violência urbana e a respeito à alteridade; a fuga para a neurose que rejeita a realidade do mundo através das drogas, das orgias, das ortodoxias religiosas. Todos, sem dúvida, atravessados pela dor e pela impotência. Ressentidos com as promessas de um futuro grandioso pelo Iluminismo e pela fé na razão.

Todavia, tais filósofos e atores sociais não podem ser confundidos com a personalidade de Nietzsche. Eles foram apenas pacientes da filosofia "terapêutica" do bigodudo. Nietzsche acredita que o niilismo contemporâneo é um niilismo completo porém ainda passivo. Com efeito, ele é um passo importante para a próxima fase, que seria a do niilismo ativo. Conforme o autor, a partir da descrença nos ideais totalizadores e transcendentais, que dão sentido à realidade e à existência, é possível surgir um momento no qual o ser humano (chamado além-do-homem, ou übermensch em alemão) poderia ser capaz de criar novos mundos a partir de si mesmo. Tal empreendimento seria a retomada da capacidade inventiva da vida e da vontade de potência.

A proposta da filosofia nietzschiana não se trata de criar utopias (não-lugares), mas heterotopias (lugares-diferentes). Não se trata de resistir, mas de reexistir.

Referências:

NIETZSCHE, F. O Anticristo: Maldição do Cristianismo. Rio de Janeiro: Newton Compton, 1996.
______. O Niilismo. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1978.
______. Genealogia da Moral. São Paulo: Brasiliense, 1988.
RIBEIRO, A. Niilismo e pós-modernidade. Revista Litteris. Rio de Janeiro, v.1, nov. 2008.

[1] E aqui podemos relembrar que a filosofia grega – Platão e Aristóteles – foi retomada na Idade Média pelos filósofos sacerdotes cristãos Santo Agostinho e São Tomás de Aquino para explicar a existência de Deus, a divisão entre dois mundos, que por sua vez sistematizou a ideia de verdade/mentira, luzes/sombras da ciência. 
* A imagem (charge) apresentada no post é um entendimento possível da filosofia de Nietzsche. Nela podemos ver a luta entre as morais. O símbolo da força é representado pelo escudo do leão, enquanto a da compaixão e a da misericórdia é representado pelo escudo da família. Podemos perceber que o lutador menor, provavelmente sugerido pelo chargista como perdedor em potencial está com o escudo da família, entretanto, o lutador maior titubeia diante da figura da família alí representada por seu adversário. Cobertos por nossa moral cristã não há dúvida que sem pestanejar torceremos pela vitória do lutador mais fraco. A charge é uma provocação de Quino, conhecido autor dos quadrinhos de Mafalda.

3 comentários:

  1. Ufa! Muito bacana o seu blog; é uma verdadeira aula!

    E obrigada pelos comentários. :)

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  2. Ah, a vida é bem safada!
    Mas hei-de arrumar a mala hoje.
    Hei-de arrumá-la e fechá-la.
    Que inconveniente...
    Que inconveniente ter nascido.
    Mas hei-de arrumar a mala.
    A mala.

    (...)

    Fim.

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  3. http://cogitansumbrae.blogspot.com.br/

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