sábado, 10 de março de 2012

O poder em Michel Foucault: a questão da liberdade

Tenho impressão de que a abordagem do poder como o entende Foucault tem desencadeado inúmeras confusões entre os estudantes e um certo regozijo por parte de uma casta acadêmica adepta da versão tradicionalista de História. Vou tentar descrever minha interpretação em alguns posts aqui sobre essa problemática, de uma maneira bem esquemática e até simplista, esperando que ela sirva para desfazer preconceitos e gerar discussões.

Diferentemente dos anarquistas e dos comunistas clássicos, Foucault não considera que o poder seja uma coisa centralizada que emana de um só lugar (que seria o Estado ou a ideologia da classe dominante representada pelo Estado). O poder é uma relação. Por ser uma relação não possui um controle já dado. Ou seja, tomar o lugar de onde supostamente o poder é emanado ou destituir uma classe dominante das decisões políticas não seria a libertação de todo o resto, mas somente um jogo de força a partir do qual novas configurações de poder aconteceriam. Embora as classes burguesas gozem de certo domínio numa organização social capitalista, tal domínio se deve mais pela participação ou resignação dos demais nesta teia de relações do que pelo poderio meticuloso da referida classe. Aliás, se pudermos falar em “dominação” é preciso salientar que esta ocorre de uma maneira muito mais sutil do que pela propaganda da democracia representativa nos meios de comunicação institucionalizados e com interesses de “classe”. Outras instituições, menos visíveis que o Estado e diretamente ligadas a ele, como a escola, o hospital, o hospício, a penitenciária, o asilo e, sobretudo, a família, exercem um poder tão “grande” quanto o Estado. O maior "problema" é que levamos para o cotidiano através de nossos comportamentos as relações sociais apreendidas em tais instituições. As relações de mando e de obediência, de patriarca e de filho, de diretor e de subordinado, que alimentam essas instituições devem mudar em caso de almejarmos uma transformação da sociedade. Foucault explica que no stalinismo o “poder” do Estado mudou de mãos e as relações produtivas foram alteradas, porém não houve uma mudança substancial na União Soviética porque as instituições sociais citadas (escola, hospício, hospital etc.) continuaram existindo tais quais eram antes da Revolução de 1917.

"O poder não opera em um único lugar, mas em lugares múltiplos: a família, a vida sexual, a maneira como se trata os loucos, a exclusão dos homossexuais, as relações entre os homens e as mulheres...todas essas relações são relações políticas. Só podemos mudar a sociedade sob a condição de mudar essas relações", escreve Foucault (2006, p. 262).

Alguns pensadores modernos (como Habermas e alguns marxistas) denunciaram o Direito (as leis, o estado de direito num regime liberal) como um veículo que possibilita a hegemonia da classe social "detentora" do poder político. O Direito para estes teóricos, mais do que garantir a justiça, assegura a legitimidade das coisas continuarem sempre favoráveis à classe burguesa. Foucault concorda com tais análises, mas não cai em um reducionismo de dizer que o Direito só serve aos interesses da burguesia num Estado capitalista. Essa rede de poderes tecida pelo Direito possibilita também contestação, resistência e luta dentro do mesmo campo onde aparentemente seria a "casa da opressão de classe". Portanto o Direito funciona sempre como uma disputa por ter criado ferramentas que podem servir tanto a um quanto ao outro que dele se utilizam. O interessante é que Foucault enxerga isso sob extremo pessimismo e desconfiança. Pois para as classes "oprimidas" utilizarem esses mecanismos de poder é preciso que elas os reconheçam como legítimos -- e assim acontece. Para alterar esse quadro não basta remodelar de dentro ou consertar as falhas e as injustiças existentes e internas, mas seria preciso dele se desembaraçar (no caso do Direito).

O poder para Foucault é uma positividade. É uma teia de relações. Não é possível estar fora dele. Porém onde existe poder existe resistência. E a resistência não é uma recusa do poder, é uma disputa de poder para, entre outras coisas, poder fazer de sua vida o que lhe convir. Como esse exercício era para "poder fazer", logo, ele se transforma e expõe micropoderes que já existiam antes, que nos chegaram de alguma maneira através das relações culturais. Outro dia aqui no blog falei sobre a liberdade. Digamos o poder para Foucault se relaciona de modo parecido com a questão da liberdade. Ele só existe sob uma relação de construção. Para alterar as relações de poder é preciso que dela participemos. Não podemos mudá-las de fora como um ser acima do tempo histórico e do espaço. Neste sentido o poder não pode ser tratado somente como interdição, como uma “coisa ruim”, como um controle ligado a uma classe ou exercido pelo Estado. O poder também cria. A liberdade é do mesmo jeito, não tem sentido em querer liberdade sem participar de uma relação de certo “aprisionamento”. Chamo este “aprisionamento” a relação que configura a luta por poder e por liberdade. Sendo assim a liberdade para Foucault nunca será uma libertação completa ou uma emancipação absoluta. Simplesmente porque novos poderes e novas relações de mando se criam infinitamente. A liberdade para o filósofo está no exercício ininterrupto da resistência, da revolta e da recusa. A liberdade para Foucault não é um estado, mas uma ética.

Referência:
FOUCAULT, Michel. Diálogo sobre o poder. In:______. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

* Abaixo um vídeo em que Foucault debate com linguista Noam Chomsky num programa de TV da França. Eles discutem a questão da "natureza humana" e Foucault expõe sua noção de poder.

5 comentários:

  1. Olá Munhoz!

    Muito bom, eu estou começando a enveredar nos caminhos de filosófia.

    Eu sempre achei que o poder era exalado num conjunto de política e propaganda, mas existem outras formas de poderes tão enraizadas que mal percebemos.

    Sinceramente, ando a procura de pessoa como você para trocar mais ideias sobre arte e filosofia, então se segura que eu estarei aqui te visitando sempre.

    Um abraço.

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    1. Seja bem-vindo Amadeu!

      Talvez você esteja certo sobre a noção de poder como exalação de um campo de propaganda e política, mas digamos que fazemos "propaganda" e "política" o tempo todo, assim deixemos de circunscrevê-los apenas no âmbito institucionalizado dos partidos e nos circulos midiáticos.

      O problema de entrar nos caminhos da filosofia é nunca mais deles querer sair. Que belo problema!

      Até!

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  2. Olá Munhoz!

    Eu moro em Santo André, e nós temos um grupo de pessoas que discute literatura as quintas e filosofia aos sábados.

    Neste sábado já temos uma pauta. Se você permitir gostaria de levar o texto acima pra deixar de pauta para o outro sábado.

    Me encantei muito com Foucalt e já estou vasculhando a net atrás de mais material. Como amigo disse uma vez enveredado nos caminhos da filosofia, nunca mais sairemos!!!!!

    Até+

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    1. Que bacana a proposta de vocês! Fique a vontade para utilizar o(s) texto(s). Os dois outros posts anteriores a ele também exploram a noção do poder sob Foucault e como isso alterou os modos de escrever e de pensar a História.

      Se se interessar em aprofundá-lo no 4shared.com tem boa parte dos livros do autor digitalizados. Posso te recomendar alguns em especial depois.

      Abraços.

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  3. Caro Munhoz, meus parabéns pelo Post. Estou estudando o Poder em Foucault e confesso que seu post está muito bom.
    aliás, já salvei seu blog na minha área de trabalho. você está postando assuntos muito interessantes. vou indicar para meus amigos da faculdade de filosofia.

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