quarta-feira, 25 de abril de 2012

O anarquismo jornalista ou o jornalismo anarquista de Neno Vasco

Este texto é uma saudação à dissertação de mestrado Fragmentos biográficos de um anarquista na Porta da Europa: a escrita cronística como escrita de si em Neno Vasco do historiador Thiago Lemos Silva. Através de uma narrativa clara e objetiva, utilizando a biografia pessoal como expressão do meio social no qual o indivíduo se insere, mas sem perder de vista as singularidades do ser humano, o autor nos convida para o passeio no labirinto construído sobre a vida de Neno Vasco, entendida como um mosaico incompleto. Acima de tudo, vejo a importância deste trabalho por dois motivos principais: (1) apresentar ao público brasileiro um anarquista que ainda é pouco conhecido mesmo nos espaços ácratas; (2) propor questões uteis à reflexão de nossa contemporaneidade. Sendo assim, tentarei percorrer alguns aspectos que me chamaram atenção, sobretudo em relação ao anarquismo e a política contemporânea.

Quem foi Neno Vasco? Português, filho de família liberal, formado em Direito, anarquista-comunista e estrategista do sindicalismo revolucionário. Em 1901, Neno chega ao Brasil e funda os jornais “O Amigo do Povo” e “A Terra Livre”. Em 1911 volta a Portugal de onde continua sua militância e sua contribuição jornalística anarquista lá e cá. Pensador antimilitarista, anticlerical, tímido, sensível às questões femininas e um defensor do socialismo libertário. Embora, tenhamos feito tais classificações, é necessário de antemão considerar que além de avesso as multidões, Neno também gostava de se ver livre das categorizações. Como cita Thiago Silva:

Dez mil comunistas! E eu no meio de tanta gente [...] Uff! Deixem me sair, deem-me licença meus senhores. Tenho sempre evitado os ajuntamentos: sofro de falta de ar e o calor e a poeira me incomodam. [...] o melhor seria talvez ter me deixado desclassificado, pairando no vago, no indeciso, nem sim nem não, antes pelo contrário, numa indeterminação nebulosa, em pleno céu azul sob, sob o sol claro (Neno Vasco, imagem ao lado, apud. SILVA, 2012, p. 25).

Por conta de estudar as crônicas publicadas num periódico português, A Porta da Europa, Thiago Silva se detém mais sobre a militância de Neno em Portugal. Os jornais anarquistas eram um dos veículos de divulgação da propaganda anarquista e quiçá o principal a atingir a classe operária. Kropotkin em Palavras de um revoltado se lamentava porque não conseguia difundir seus livros para o povo, por isso, advertia que a melhor estratégia era mesmo os textos curtos. Este pode ser um indicativo para aqueles que pretendem escrever para um público maior. Menos é mais. Nietzsche criticava os filósofos de sua época pela necessidade destes enrolar em um livro uma simples ideia que cabia num aforismo. E ainda dizia: “alguns mergulham o leitor em águas barrentas para convencê-los de que são profundas”. Nesse sentido, Neno foi exemplar propagandista anarquista da época, por ter dedicado sua vida ao jornalismo.

Thiago Silva suscita questões interessantes sobre o anarquismo através de Neno Vasco. A definição de anarquismo para Neno estava atrelada ao socialismo, a Bakunin e Federação Jurassiana, e recusava com veemência o anarquismo que se aproximava do individualismo liberal. Mas acreditamos que esta rejeição se dava por fatores da época, assim, as palavras de Neno ganham sentido num diálogo indelével com o contexto social e discursivo. Neste momento, o anarquismo procurava se distanciar do liberalismo por conta dele representar a máscara do capitalismo selvagem e da classe burguesa que ocupava o kratos estatal. Rocker, outro autor anarquista, adverte que o anarquismo quer fazer o que o liberalismo não conseguiu: suprimir o Estado. Enquanto Thomas Jefferson dizia que o melhor governo era aquele que menos governava, Thoreau reiterava que o melhor governo era o que não governava (2005, p. 11).

Contudo, existe algo em que Neno se aproxima mais dos liberais: a luta pela separação entre a Igreja e o Estado. Claro que são interesses distintos, pois, enquanto os liberais querem ter a liberdade de “usura” e de livre-comércio sem influência política da religião cristã, os anarquistas acreditam que a fé em Deus e nos seus “intermediários” na Terra é expressão de dominação, alienação e bases para o autoritarismo. Neno, assim como Bakunin no texto A igreja e o Estado, diz que o combate contra a Igreja é tão importante como contra o Estado. Neste texto de uma atualidade ímpar, Bakunin considera que a Igreja usa de seu poderio divino para benefícios financeiros através da massa. O Estado, para ele, também se baseia numa metafísica mentirosa, que diz ser preciso abdicar de nossos interesses individuais apoiado na invenção do pecado original para destruir a consciência de seu próprio valor, fazendo-nos sentir culpado e com medo da ausência de poder coercitivo (2006, p. 100). Certamente, o barbudo dialoga com “a suposta guerra de todos contra todos do homem natural” inventada por Hobbes para legitimar a criação do Estado moderno.

Thiago Silva nos conta que Neno escolheu o sindicalismo revolucionário somente como meio qualificado para alcançar o anarquismo. E sua estratégia imediata era a ação-direta. Diante disso, o jornalista se mostrava contra a crença do anarquismo-sindicalista de achar que o “sindicalismo bastava a si mesmo”, pois para ele este era apenas uma tática, tendo sempre o cuidado de não perder de vista que a verdadeira luta era entre classes e não dentro de uma corporação que buscasse privilégios e reformas para si. Diante disso, podemos pensar alguns elementos que nos surgem a partir da contemporaneidade política brasileira:

Boito Júnior (2003) considera que a ascensão do PT à presidência representou a posteriori um retrocesso na luta dos movimentos sindicalistas e conjuntamente a descrença nestas instituições. Atualmente, por conta dos aumentos salariais e conquistas corporativas, os líderes sindicais de outrora “batem” de carro do ano, moram em lugares bem localizados no ABC, seus filhos estudam em escolas particulares e não precisam acessar a rede pública de saúde, pois possuem planos particulares conveniados. Enquanto isso, membros dos movimentos sociais e o resto do povão, cujos nomes foram usados na luta política, ainda estão na pendenga. Neste sentido, para Neno, o sindicalismo era somente uma “ginástica revolucionária”, nunca poderia fechar em suas questões.

Neno, como nos mostra Thiago, era contra a entrada de socialistas na política por via parlamentar. Ele dizia que a questão social nunca podia ser resolvida de tal maneira, pois este era o lugar onde as classes dominantes ocupavam e as causas operárias eram abafadas. O insucesso de Proudhon como deputado é emblemático nesse caso. Quando este anarquista tentou levar projetos populares para a assembleia, todos o revogaram. As propostas de Proudhon, o denominariam como "homem terror", segundo Samis [1]. A crítica de Neno aos socialistas portugueses foi quase uma profecia, pois os socialistas só conseguiram entrar na democracia burguesa fazendo lobbies e uniões com partidos distantes da causa proletária. Este fato escorre para duas problemáticas contemporâneas.

Temos assistido as manifestações pela saída do governador goiano Marconi Perillo (PSDB) por estar envolvido em esquemas de corrupção. Mas, nos perguntamos: se ele sair será que vai mudar muita coisa? Tira-se um, coloca-se outro! É como se o povo acreditasse que o mal está na pessoa e não no complexo que o cerca e o torna assim. A crítica de Bakunin (2003), quando respondia os marxistas, é certeira e pode ser usada para nosso propósito. Bakunin escreve:

Sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e por-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas si mesmo e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana.

Outra questão problemática é a formação de aliança para conseguir um determinado posto político. Neste caso, a presidente Dilma Rousseff pagou caro. O PT aliou-se ao PMDB, PL e outras carniças e prometeu cargos públicos como ministérios para seus aliados; deu no que deu! Acontece que os ministros também escolhem assessores, uns 50 (?), que são seus amigos, familiares, comparsas e trutas, em vez de pessoas concursadas e competentes para exercer as funções (se é que isso é possível, mas vamos nessa lógica). Quando ocorrem esquemas de mensalão, e outros desvios de grana do povo, os funcionários públicos não tem compromisso com nada além daqueles que lhes colocaram naqueles lugares, portanto, não denunciam. Estão de rabo preso. E assim o povo brasileiro é enrolado.

Outro tema do anarquismo tratado no trabalho se refere ao imediatismo pós-revolucionário. Neno discorda dos anarquistas comunistas que acreditam que o comunismo será instantâneo depois da revolução. Para ele existirá um estado de transição, chamado de socialismo libertário. Diferente das teses dos comunistas que querem organizar partidos, tomar o poder do Estado e da indústria para promover a abundância. Neno advoga que será necessária a coexistência do comunismo e do coletivismo, pois: “os produtos de primeira utilidade deveriam ser distribuídos conforme a necessidade, tal como preconizavam a fórmula comunista, e os outros provisoriamente adquiridos por meio de uma taxa suplementar de trabalho, tal como preconizava a fórmula coletivista, até que se tornassem abundantes” (SILVA, 2012, p. 111).

O Neno Vasco de Thiago L. Silva trata outras questões bastante importantes, mas não vou estendê-las no post - que já está por demais grande. Uma prévia de assuntos para vocês lerem a dissertação: Feminismo atrelado às questões sociais; Primeira Guerra Mundial e o posicionamento dos anarquistas; O terreno incerto da luta junto aos bolcheviques na Revolução Russa; A experiência de educação integral posta em prática em Portugal; O anti-terrorismo de Neno; e Questões sobre a polícia punir crimes políticos e comuns do mesmo modo.

Podemos considerar por último que o autor deu um destaque principal à ética de Neno Vasco, que renegou tanto os benefícios da carreira de advogado, como viver se escorando na renda do pai e de familiares, passando por grandes dificuldades financeiras, pois não admitia defender uma teoria sem praticá-la. E aí, quem está disposto a fazer da vida uma obra de arte como Neno fez?

Referências:

BOITO JÚNIOR, Arnaldo. A hegemonia neoliberal no governo Lula. Revista Crítica Marxista. Rio de Janeiro, n° 17, Editora Revan, 2003.
BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003.
BAKUNIN, Mikhail. A igreja e o Estado. In: Textos anarquistas. Seleção e notas Daniel Guérin; tradução de Zilá Bernd. Porto Alegre: L&PM, 2006.
KROPOTKIN, Piotr. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário, 2005.
ROCKER, Rudolf. A ideologia do anarquismo. São Paulo: Faísca, 2005.
SAMIS, Alexandre. Negras tormentas: o federalismo e o internacionalismo na Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011.
SILVA, Thiago Lemos. Fragmentos biográficos de um anarquista na Porta da Europa: a escrita cronística como escrita de si em Neno Vasco. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2012. Trabalho disponibilizado online: Click aqui.

[1] A principal proposta de Proudhon era substituir a propriedade pela posse, ou seja, o capital que extraí valor de onde não tem, pelo direito de uso daquele que trabalha nele. O deputado recebeu, além de vaias, 600 votos contra e somente 2 a favor. Proudhon era também crítico do sufrágio universal por conta deste garantir uma justificativa de alijamento do povo baseado numa suposta "vontade geral".

Um comentário:

  1. Olá Munhoz!

    Desculpa a ausência, ando ocupado com os desafios dos escritores, mas hoje tivemos uma pausa.

    Primeiramente obrigado pelas constantes visitas ao meu blog.

    Quanto ao seu blog e ao post em questão quero dizer pra você não desanimar e continuar a nos imundar com tão ricas informações.

    Eu estou agora entrando no mundo da filosofia e através do colega descobri o Focault e a ordem anarquista que parecem muito próximos daquilo que eu entendo sobre o mundo.

    Não me sinto ainda muito apto a discutir o assunto, mas estou estudando e isso é um ponto positivo para a existência desse blog.

    Não sei se você conhece. Aqui na minha cidade (Santo André), vivia um poeta chamado Roberto Piva (falecido em 2010), acredito que seja o único representante da literatura surrealista brasileira.

    Seus poemas eram cheios de figuras viscerais, iguais ao quadro do Salvador Dalí que vc postou ai abaixo. E ele tem forte inspiração de Nietzche, comunismo e anarquismo (Parecido com o que você escreveu), além do xavantismo.

    Dá uma pesquisada no youtube e escuta os poemas do cara e depois vc me fala.

    Um abraço.

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