sexta-feira, 6 de abril de 2012

The Walking Dead: uma perspectiva da vida após o fim do mundo.

A série americana que bateu todos os recordes de audiência da TV a cabo na terra do Tio Sam, The Walking Dead (uma adaptação cinematográfica das histórias em quadrinhos de Robert Kirkman) vem conquistando fãs brasileiros e traz alguns elementos interessantes para discutirmos a representação da vida pós-apocalíptica. Para quem nunca assistiu, o enredo principal é o seguinte: o protagonista (xerife de uma pequena cidade) acorda de um coma e se depara com hospital e cidade vazios. Ele (Rick Grimes) descobre que um surto – sabe-se lá do quê – infectou quase toda a população e as pessoas que morreram viraram zumbis, restando apenas poucos sobreviventes agora. Sem energia e sem telecomunicações o mundo vira um caos e qualquer barulho pode atrair uma multidão de zumbis que arrancam suas tripas à luz do dia. Em um dos episódios Rick consegue encontrar sua família (mulher e filho) que estão junto de um grupo de pessoas buscando o apoio mútuo como fator de sobrevivência. [Agora, atenção, o texto abaixo contém muitos spoilers da primeira e da segunda temporada da série.]

Os sobreviventes habitam agora o cenário depois do apocalipse, e que parece bem pior do que o juízo final cristão. Aliás, tal lugar é a inversão dos sonhos revolucionários. O “novo” é bem pior do que o antigo. A Nova Jerusalém dos cristãos (ou o comunismo) passa mais próxima da descrição do Inferno de Dante. Mas nem tudo mudou. A sociedade ainda tem classes. E são duas: os vivos e os mortos-vivos. Os vivos são a minoria nada privilegiada agora, mas a guerra (a luta de classes) continua.

A rediscussão dos valores “humanos” é significativamente enfatizada na série. Num mundo assim (como o nosso?) ser “bonzinho” pode representar a morte. Esse aspecto é bem trabalhado quando um avarento recusa comida a recentes (des)conhecidos e, também, quando um fazendeiro reluta em abrigar o grupo em sua casa. Esse mesmo fazendeiro é também um veterinário metido a médico que acredita que os membros de sua família que viraram zumbis não morreram, mas só ficaram doentes. Por isso ele “guarda” dentro do celeiro seus familiares “doentes” e outros zumbis que entram em sua fazenda. O ponto de vista dele nos põe a pensar melhor sobre a possibilidade de salvar aquelas pessoas antes de liquidá-las de vez com um tiro na cabeça e ressalta também nosso apego ao corpóreo. É interessante porque os espectadores da série não aceitam tamanha “burrice” (altruísmo?) do médico-veterinário. A maioria dos personagens da série pensa igual. Mas existe um senhor no grupo que questiona se os vivos já não perderam sua humanidade há muito tempo e se não ficaram tão cruéis quanto os zumbis que querem seu sangue.

O princípio do bem-viver (ética) e os valores morais religiosos já não valem mais nada nesse horizonte, representam antes um atraso onde o maquiavelismo passa a ser a bola da vez. E de fato, o público passa a admirar o mais maquiavélico, o anti-herói, que é representado por Shane, amigo do xerife, também ex-policial, que num dos episódios “mata um vivo” para servir de isca para os zumbis e enquanto ele pode escapar ileso.

A verdade é que a mudança das condições no ambiente favorecem aspectos da personalidade antes considerados problemáticos, como a agressividade e a frieza para matar. Os anormais se tornam normais. Trazendo para nossa realidade podemos exemplificar o caso das pessoas com Síndrome de Down. Sabe-se que elas possuem um cromossomo a mais, num determinado par que faz com que sejam sexualmente estéreis, mas em determinadas condições ambientais onde a emissão de radiação é maior a situação muda de figura. Pois nesses casos são eles que podem reproduzir e, nós, os normais, só assistiremos a perpetuação da espécie. A biologia postula que essa criação é como um plano B da espécie humana. Contudo no caso de Shane o aspecto é muito mais cultural do que biológico. Desde o primeiro episódio ele apresenta traços históricos significativos de potencialidade para matar.

A questão da solidão também é algo para se pensar no "mundo pós-fim do mundo". Afinal os casais ficam bastante propícios para se apaixonarem e para fazer sexo, é claro. É o que acontece com um casal que relembra a piada de Adão e Eva no paraíso. “Existem poucas pessoas no mundo e nunca se sabe quando morreremos, então é melhor gastarmos essa caixa de camisinhas logo” - a moça bonita diz para o entregador de pizzas coreano.

Por que a série nos atrai tanto? Acredito que pelo fato dela expor de maneira extrema e caricatural a sociedade contemporânea na luta pela sobrevivência do mais esperto, utilizando quaisquer armas disponíveis. A ausência das leis e a descrença na religião exacerbam o desejo pela ausência de punição e controle em nossa sociedade disciplinar, um lugar onde não existe mais um super-ego castigador e a consciência está livre (para matar?). Em contrapartida essa sociedade de The Walking Dead pode ser lida como o inverso. Como aquela que nos atrai por mostrar quão mais animada pode ser a vida longe da apatia cotidiana que nos cerca. Seríamos então nós os zumbis dos tempos safados? Parasitas se alimentando do sangue de outros e perambulando pelas avenidas movimentadas como seres desprezíveis. Será que nos reconhecemos nos zumbis ou nos vivos?

Mesmo os personagens se questionando se vale a pena estarem vivos num lugar desses e alguns escolhendo o suicídio, um determinado princípio básico continua valendo para os dois mundos: a autopreservação da vida. Bergson conta que o organismo vivente faz de tudo para se manter vivo, e reluta mesmo diante da escolha “cultural” (ou psicológica) de se aniquilar. Diz-se que alguém que tenta suicídio por enforcamento só morre se não houver possibilidade alguma do organismo se salvar, mesmo que o cérebro não queira. Se por acaso os pés tocarem ao chão um pouco que seja, o suicida pode desmaiar e recuperar a consciência logo depois. A vida nua (zoé), ou seja, a vida despossuída de cultura faz de tudo para manter sua sobrevivência. Mas a vida cultural às vezes joga contra o instinto. São os casos de suicídios que Durkheim classificou de egoísta, altruísta e anômico. Todos culturais. Não se sabe de animais que se suicidam.

Em algumas culturas a desonra pode levar o indivíduo à escolha do suicídio (como o haraquiri e a falência financeira), a luta pela nacionalidade ou por uma causa (os kamikazes, os homens-bombas, os regicidas confessos, os auto-imolados e o recente caso do cidadão grego), a morte de alguém ou desilusão por algo que com o qual escolheu levar vida em função (o caso do filósofo André Gorz que cometeu suicídio após a morte da esposa), mas uma situação em especial chama muito a atenção: o suicídio coletivo. Tenho dois exemplos ilustrativos. O caso dos índios kaiowas (no centro-oeste do Brasil), que suicidaram em protesto às invasões dos brancos a suas terras e a impotência diante da situação, tal acontecimento mereceu referência numa musica da banda Sepultura (irônico e trágico). Agora, sem dúvida, o mais espantoso, que chamou atenção de todo o mundo, foi o obscuro suicídio coletivo na Guiana inglesa, em 1978, onde a participação de um líder religioso, Jim Jones (imagem acima), foi preponderante. As centenas de corpos espalhados no chão lembram o cenário de The Walking Dead. E o que seria de nossas crenças religiosas e científicas se eles resolvessem levantar?

Assista à reportagem da época sobre o caso: https://www.youtube.com/watch?v=gEemJmzhcac
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2 comentários:

  1. Veja meu post sobre o tema. citei seu post por lá.
    Realmente a discussão vai muito alem do q parece.
    http://pilulamarela.wordpress.com/2012/04/29/the-walking-dead-muito-alem-do-massacre-de-zumbis/

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  2. Interessante o texto, Munís! Acho que a grande jogada da série é nos fazer pensar sobre a nossa própria humanidade. Se estamos ou não dispostos a tudo pela nossa sobrevivência. Seja nos submeter a condições trabalho ou explorar os outros(ou mesmo matar zumbis).

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