quarta-feira, 2 de maio de 2012

Ética através da escrita em Foucault: poética e (est)ética

Vejo muitas pessoas cobrando o filósofo Michel Foucault por aquilo que ele não se propôs a fazer. Entendo esse fato como parte de um movimento que deseja um projeto político pronto ou esquemático, de onde brote uma fonte que devemos beber incessantemente para sermos bem sucedidos na vida. O careca era contra as filosofias que tentavam impor ou defender programas universais à conduta humana e por isso não se empenhou em desenvolver um projeto político. Primeiro porque ele temia que acontecesse o mesmo que fizeram com a filosofia de Hegel no Estado prussiano de Bismarck, de Marx na antiga União Soviética e de Nietzsche no totalitarismo nazista, ou seja, temia que propostas filosóficas de liberdade se tornassem regimes opressivos e desastrosos. Segundo porque ele acreditava que a ética e a vida privada não estavam descoladas da vida pública, pelo contrário, a política tende a ser a expressão da ética.

Sabemos que os eixos principais dos trabalhos de Foucault giraram em torno da desconstrução dos discursos de verdade ligados às esferas do saber e do poder, que sujeitavam os seres humanos através dispositivos de poder, porém, o autor também dedicou uma parte importante para pesquisar as práticas de liberdade e de libertação. No texto Uma estética da existência, o autor mostra (ao contrário da gritaria de alguns críticos) um profundo otimismo com relação a nossa época. Ele diz que atualmente tem percebido o ressurgimento da ética voltada para as escolhas particulares de cada pessoa, se desprendendo de regras universais que antes as totalizavam e submetiam. Neste sentido, o francês separa dois tipos de morais: uma é voltada para um determinado código de regras, como nas religiões de textos ao qual se deve obediência; e a outra é uma ética da existência como esforço de afirmação da liberdade, dando à sua própria vida uma forma específica na qual é possível se reconhecer, ser reconhecido pelos outros e onde a posteridade pode encontrar um exemplo (2006, p. 290).

No estudo histórico da modernidade, a partir do século 16, Foucault procurou compreender como os sujeitos foram produzidos pelos mecanismos de poder, ou seja, como foram sujeitados através das práticas discursivas que disseram que eles eram loucos, presos, homossexuais, doentes e etc. Não somente como foram construídos esses discursos de verdade, as intenções políticas por trás deles, mas também como os “sujeitos” acreditaram e obedeceram a essas “orientações”. Então, por entender que existe um movimento de mudança, o autor volta seu foco para a história da antiguidade, procurando atravessar as práticas de liberdade e do cuidado de si, antes destes discursos “científicos” surgirem e se tornarem hegemônicos.

Como os gregos e os romanos exprimiam sua ética de liberdade? Foucault acredita que um dos exercícios na arte de aprender a viver era desempenhado pela escrita. Mas não qualquer tipo de escrita. É a chamada Escrita de Si. Não são narrativas pessoais, nem tem como objetivo a purificação, como em substituição às confissões religiosas. Não se trata também de revelar o oculto, de dizer o não-dito, mas captar o já dito; reunir o que se pode ouvir e ler, apenas para a constituição de si. Esses discursos podem ser reunidos em espécies de cadernetas e anotações para consultar e refletir sempre que necessário. São para ser usados cotidianamente, mas não no sentido de um manual de sobrevivência e de ação, é preciso que a escrita no caderno esteja já imprensa na alma do escrevente, que se modela através dele, que escreve a si mesmo na realidade e na prática.

De onde vem esses discursos se não são igualmente dispositivos de poder? Isso é o mais interessante no pensamento de Foucault. Dispositivo vem da derivação de positividade. É algo que não só alija, como também a partir do qual se cria o novo e com o qual se trava uma relação de forças. Ora, o sujeito se constitui através das práticas de sujeição e também através das práticas de liberação a partir obviamente de um certo número de regras, de estilos, de convenções que podemos encontrar no meio cultural (2006, p. 291). Por isso não se trata de um sujeito metafísico transcendental que extrai sua liberdade do além ou de si mesmo sem intervenção do meio social onde vive, há um diálogo e uma interação constante.

“A escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a askésis: ou seja, a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de ação. Como elemento de treinamento de si, a escrita tem, para utilizar uma expressão que se encontra em Plutarco, uma função etopoiética [ética e poética]: ela é operadora da transformação da verdade em êthos [caráter]” (FOUCAULT, 2006, p. 145).

A escrita além de moldar a vida como uma obra de arte (poética), também cumpre outras funções importantes. Ela propõe uma organização ao pensamento e à existência, que afasta a tribulação, a mudança repentina de opinião e de vontade, a fragilidade diante dos acontecimentos e agitação da mente. Assim, a concentração, por exemplo, dos estoicos e epicuristas que usavam desta prática no mundo greco-romano, estava voltada à ação no presente.  Com os escritos, podiam construir seu passado para o qual era possível retornar ou se afastar, enquanto o pensamento para o futuro era rejeitado, por representar insegurança e inquietude.

A correspondência por cartas também era um exercício da escrita de si. Esta atividade permitia a retrospecção de sua vida para narrar ao destinatário, como também dar conselhos dos quais se acredita levar o bem viver. Desta maneira, a carta age através da escrita tanto sobre aquele que escreve, quanto àquele que a receberá através da leitura e releitura. A prática da correspondência procura “abrir sua porta àqueles que têm a esperança de se tornarem melhores; são ofícios recíprocos. Quem ensina se instrui” (p. 153). Esse exercício de correspondência configura que a prática da escrita de si não é solitária e antissocial, ele é uma espécie de treino amistoso entre lutadores. Porém, não se trata de levar tais conselhos ao pé da letra ou apreendê-los em sua totalidade, o cuidado de si pressupõe que se reúnam após uma reflexão criteriosa as proposições julgadas válidas para o contorno de sua própria vida. “É uma escolha de elementos heterogêneos. Nisto, ela se opõe ao trabalho do gramático que procura conhecer uma obra em sua totalidade ou todas as obras do autor. Pouco importa, diz Epícteto, que se tenha apreendido exatamente aquilo que eles quiseram dizer, e que se seja capaz de reconstituir o conjunto de sua argumentação” (p. 151).

Acima de tudo, a prática de liberdade mediada pela escrita entre os gregos e os romanos pode ser entendida como uma provocação ácida aos historiadores pretensiosos de reconstruir o passado em sua integridade, de prender-se como numa camisa-de-força a uma dada teoria metodológica, de dizer o que nunca foi dito e de querer compreender os mínimos detalhes da obra de um autor como se fosse a tentativa de ter o direito reconhecido de poder falar em nome do ilustre falecido que se pesquisa.



FOUCAULT, M. A escrita de si [1983]. In:______. Ética, sexualidade e política: Ditos e escritos, vol. 5. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 144-162.
FOUCAULT, M. Uma estética da existência [1984]. In:______. Ética, sexualidade e política: Ditos e escritos, vol. 5. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 288-293.

2 comentários:

  1. Olá Munhoz!

    Muito interessante essa preocupação do Foucault de que sua filosofia fosse torcida como a Nietzche foi distorcida pelos nazistas.

    Essa vida pré-moldada (que eu chamo de utilitarista), parece que a cada dia temos que ser úteis para a sociedade. (Se não trabalha não come).

    Outro dia estava com meu amigo o poeta Edson Bueno e estavamos falando que nem triste mais ficamos. Ficou triste? Tome um remédio pra você voltar a produzir. Por isso que temos cada vez menos poetas inspirados.

    Alias sobre as cartas é fantástico escrevê-las (Estou participando de um desafio literário de Cartas). Um dos gêneros mais lindos e profundos da literatura (Cartas ao jovem poeta de Rilke). E concordo cada vez que leio a mesma carta ela me diz coisas diferentes (até porque nosso ânimo está em momentos diferentes.)

    Um, grande abraço.

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  2. belo texto! o didaticamente chamado "último" foucault é fascinante...
    pretendo fazer um projeto de mestrado, na sociologia, articulando a moderna ideia e diagnóstico de depressão em contra-ponto com o "cuidado de si" foucaultiano. veremos o que sai...
    abraço.

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