sábado, 4 de agosto de 2012

Cartas contra Bakunin

As desavenças e os conflitos entre Bakunin e Marx são bem conhecidos na história do movimento socialista. O lugar principal desta briga aconteceu dentro da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Uma instituição fundada em 1864, que reunia diversos ativistas (de esquerda) de toda a Europa e visava à organização da classe trabalhadora para a luta política. Havia uma grande diversidade de ideias e práticas entre os membros da AIT e o dissenso era inevitável. Os congressos recebiam delegados, representantes escolhidos em assembleias pelos trabalhadores de inúmeras nacionalidades e regiões, que debatiam e decidiam os rumos e as estratégias do movimento operário; como a própria função da AIT. A entrada de Bakunin em 1868 acirrou a disputa entre duas tendências no seio da Primeira Internacional: o socialismo marxista (centralista) e o coletivismo revolucionário (descentralista e autonomista).

Apesar de desde o início a maioria dos delegados da AIT compor-se por mutualistas inspirados nas ideias de Proudhon (falecido em janeiro de 1865), Marx e Engels conseguiam, relativamente, controlar o Conselho Geral que regulava algumas ações importantes da organização. No entanto, o carisma e o ímpeto do russo Mikhail Bakunin começaram a ofuscar o brilho dos socialistas alemães, a ponto de atrapalhar seus planos referentes às manobras políticas da AIT. Bakunin não aceitava que a instituição se transformasse num partido político unificado e defendia a autonomia das federações que a integravam. Marx acusava o russo de fazer “anarquia no seio da classe operária” (o título de “anarquistas” foi conferido pelos marxistas aos coletivistas revolucionários, que, em certas ocasiões, assumiram-no) e de conspiração contra a própria Internacional. Após muitas intrigas e discussões, Marx e seus seguidores conseguiram no congresso de Haia em 1872 (setembro) expulsar Bakunin e Guillaume – ambos coletivistas. As cartas que apresento neste post são anteriores a este acontecimento, elas explicam as razões da divergência às ideias de Bakunin e ilustram de maneira sucinta o imbróglio entre marxistas e “anarquistas”. Uma foi escrita por Marx a Friedrich Bolte em 23 de Novembro de 1871 e a outra por Engels em 24 de Janeiro de 1872, endereçada ao italiano Theodor Cuno. Vou tentar descrever os pontos principais de ambas as cartas.

Karl Marx (1818-1883)
Marx diz a Bolte que é preciso o partido continuar sólido e atuante enquanto as classes operárias não estiverem amadurecidas. Quando isso ocorrer, aí os partidos tornar-se-ão reacionários e dispensáveis aos desejos socialistas. Neste ponto, Marx está se referindo diretamente às críticas de Bakunin que era contra constituição de um partido na Internacional. Marx adverte que a luta da AIT é também uma luta interna contra os “dissidentes” e que o Conselho Geral (encabeçado por ele) estava equilibrando esse jogo. Demonstra que, no começo, os proudhonianos eram a hegemonia na Primeira Internacional, mas que surgiram os coletivistas e positivistas que se opuseram a eles. Cita o caso de Lassalle da federação alemã, que a seu ver era um sectário preocupado com questões pessoais; e Bakunin, “homem sem nenhum conhecimento teórico” que intentou fundar uma outra organização no seio da AIT, a Aliança da Democracia Socialista, para controlar a propaganda científica da Internacional e criar uma Segunda Internacional que funcionasse a seu gosto.

O programa de Bakunin, segundo Marx, estava carregado de ideias pequeno-burguesas. Marx resume tal programa da seguinte maneira: igualdade das classes; abolição do direito de herança (para o alemão essa ideia não passava de uma tolice de Saint-Simon); o ateísmo como dogma obrigatório para todos da Internacional; e, como princípio central, a abstenção à política (ideal baseado em Proudhon).

Essa carta foi escrita logo após o desenvolvimento de um sério conflito. Em meados de 1871, o Conselho Geral fez uma reunião secreta em Londres na qual ficou determinado que a AIT ia constituir um partido único, tal fato, por sua vez, retirava a autonomia das federações que integravam o movimento operário. Imediatamente as federações dissidentes a esta decisão, que sequer participaram da reunião, emitiram através de uma circular (de 12/11/1871) sua contrariedade a tais decisões e convidando demais federações para se unirem acerca dos princípios de autonomia. Guillaume (2006, p. 28) que participou do acontecimento escreve o seguinte: “A sociedade futura, dizia a circular, será a universalização da organização que a Internacional apresentar. Devemos, pois, ter o cuidado de aproximar o mais possível esta organização de nosso ideal. Como poderá uma sociedade igualitária e livre surgir de uma organização autoritária? É impossível. A internacional, embrião da futura sociedade humana, deve ser, desde agora, a imagem fiel de nossos princípios de liberdade e de federação e repelir de seu seio qualquer princípio que tenda para o autoritarismo e a ditadura”. Aqui, numa clara a alusão contrária às ideias de Marx sobre a “ditadura do proletariado” e a centralização da revolução em torno de uma vanguarda partidária. Marx acusa Bakunin de ser o arquiteto por trás deste movimento que ele chama de “complô”. E num tom de convite a Bolte, reitera que a AIT “transferida” para Nova Iorque não cometerá os mesmos erros que a europeia, que permitiu a concatenação deste “golpe” desde o início. Porém, a associação “fundada” em solo estadunidense não aceitará dissidentes, os expulsando caso necessário. Possivelmente Marx já tinha em mente o que aconteceria após a expulsão de Bakunin e Guillaume (ocorrida em 09/1872), ou seja, por falta de contingente e legitimidade, a impossibilidade de a AIT continuar na Europa.

A carta de Engels a Cuno também faz parte desse jogo de conquista de simpatizantes. Como tática, a descrição dos acontecimentos e o ataque direto a Bakunin, chamando atenção do destinatário para tomar precaução com todos que estavam ao lado do russo. Engels apresenta a proposta política de Bakunin como uma teoria que mescla o proudhonismo e o comunismo. O ponto principal de seu proudhonismo é dizer que o “maior mal não é o Capital, não é, portanto o antagonismo de classe que o desenvolvimento social cria entre capitalistas e operários assalariados, mas sim o Estado”. Enquanto Bakunin acha que o Estado é o criador do Capital, que o capitalista o possui por conta do Estado, os socialdemocratas concordam conosco (no caso o socialismo inspirado em Marx) de que o Estado é apenas um aparato criado para proteger os privilégios das classes dominantes – donos de terras e capitalistas. Enquanto a saída para Bakunin é acabar com o Estado para derrubar o Capital, nós acreditamos que é preciso acabar com o Capital, que é a concentração dos meios de produção nas mãos de poucos. Quando isso acontecer o Estado cairá sozinho, afirma Engels. Para os alemães, antes de uma abolição do Estado deve haver uma revolução social que transformará todo o modo de produção mediado pela supressão do Capital.

Bakunin defende que não se deve manter o Estado sob qualquer forma de governo, por isso prega a abstenção política nas eleições. Seu programa tem como estratégia fazer propaganda dos ideais coletivistas, desacreditar o Estado e organizar-se (Engels talvez se refira a autogestão nesta passagem). Quando houver conquistado a maioria dos operários então os organismos estatais serão liquidados. O Estado abolido será substituído pela organização da Internacional. Portanto, Engels acredita que Bakunin advoga que a AIT não foi criada para a luta política, mas para substituir o Estado – consideração bastante polêmica e pouco sustentável.

Engels (1820-1895)
Engels aponta que a teoria de Bakunin é tão radical e tão simples que pode ser aprendida em cinco minutos. Por isso, encontrou rápido acolhimento entre advogados e médicos na Itália e Espanha. Mas é fraca entre a classe trabalhadora, pois esta é uma classe política por natureza que não quer abandonar sua tradição e seus assuntos (possivelmente reformistas: melhorias nas condições de trabalho, aumento salarial, partidarismo, etc.). Para o alemão, pregar o abandono da política é o mesmo que deixar a classe proletária nas mãos dos padres e dos burgueses.

Na sociedade idealizada por Bakunin – segundo Engels –, não haverá autoridade, entretanto o russo não diz como os cidadãos devem se comportar para continuar o funcionamento das fábricas, das ferrovias, dos transportes marítimos sem uma vontade que decida em última instância e em única direção. Cada indivíduo e comunidade serão autônomos, mas ele (Bakunin) não diz como vai funcionar se pelo menos um, numa comunidade de dois membros, não renunciar parte de sua autonomia. Temos que considerar que, para além do desconhecimento de Engels sobre a proposta coletivista de Bakunin, há também nessas críticas intenções tácitas de desmerecer o outro para afirmar a superioridade de seus ideais. Mas, não queremos preencher as lacunas apontadas por Engels neste post, nosso interesse é somente descrever os posicionamentos de Marx e Engels para explicitar os choques principais e as tensões políticas na história da esquerda.

Por fim, Marx e Engels acusam a teoria de Bakunin de ser um zero a esquerda, onde o que importa é a prática (o que não deixa de ter certa verdade), mas que utiliza seus preceitos para esconder seus interesses pessoais. Engels, ainda, menciona o vínculo de Bakunin com Nechaiev, o terrorista que é uma das figuras mais obscuras e controversas do movimento anarquista. Para denegrir a imagem dos “bakuninistas”, Engels afirma, por último, que apesar de reivindicarem a abstenção política, eles estavam naquele momento fazendo propaganda para o retorno de Napoleão III ao trono, como única saída para arrancar o general Thiers do poder francês.

Leia também: "Liberdade para Bakunin"

Referências:

As duas cartas podem ser encontradas no site marxists.org, porém eu utilizei uma versão em espanhol da obra A liberdade de Bakunin, no qual elas aparecem em anexo no princípio do livro.

BAKUNIN, Mijail. La liberdad. Kolectivo Conciencia Libertaria. Traducción: Santiago Soler Amigó. Digitalización: KCL. Disponível em: http://www.kclibertaria.comyr.com/lpdf/l141.pdf
GUILLAUME, James. Bakunin, por James Guillaume. In: BAKUNIN, Mikhail. Textos anarquistas. Seleção e notas Daniel Guerin; tradução de Zilá Bernd. Porto Alegre: L&PM, 2006.
JOLL, James. Anarquistas e anarquismo. Lisboa: Dom Quixote, 1964.  
PRÉPOSIET, Jean. História do anarquismo. Coimbra: Edições 70, 2007.

3 comentários:

  1. Ou seja, Marx e Engels inventam sobre Bakunin e nessas mentiras, acham que são verdadeiras.

    Na realidade a falta de leitura é impressionante, bastava ler Socialismo, Federalismo e Antiteologismo, como Principio do Estado e outros escritos para que Marx e Engels sejam desmascarado.

    Marxistas sempre serão inúteis

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  2. (o título de “anarquistas” foi conferido pelos marxistas aos coletivistas revolucionários, que, em certas ocasiões, assumiram-no)

    Na verdade Proudhon cunha esse termo ao se declarar Anarquista - os marxistas passam a chamar todos os coletivistas de anarquistas - Quando Bakunin entra na AIT com o federalismo além da associação com o termo ele também de fato se converte/declara anarquista.

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    1. Olá Bruno!

      Você está correto. Proudhon se anunciou anarquista em 1840, na obra "O que é a propriedade?". Porém este não virou um termo corrente a partir de então, até porque Proudhon não utilizou em seus escritos posteriores, não o definiu. Não havia um movimento anarquista até a fundação da AIT (pouco tempo depois da morte do filósofo francês). Os seguidores das ideias de Proudhon eram chamados, em geral, de "mutualistas". O substantivo "anarquista" só veio tempos depois, no interstício da atividade intelectual e revolucionária de Bakunin e Kropotkin. Minha pesquisa do TCC em história foi sobre este assunto.

      Muito obrigado pelo comentário. Abraços!

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