terça-feira, 14 de agosto de 2012

Num "episódio" remoto perdi meu controle: a TV na música nacional

Em 1963 aconteceu um debate, na emissora de rádio alemã Hessen, entre o presidente das Escolas Superiores de Educação Popular da Alemanha, Helmut Becker, e o filósofo e sociólogo Theodor Adorno. Os interlocutores discutiam sobre a possibilidade de a televisão ocupar uma função de formação educacional. Becker se mostra completamente defensor do uso da TV para este fim. Então, o intuito do convite a Adorno parece propositalmente interessado em alimentar a tensão entre os dois, haja vista que já eram conhecidas as duras críticas do filósofo a Indústria Cultural (e por extensão a televisão), entendida como veículo propagador de ideologia do Estado e de interesses das classes dominantes com vistas à alienação das massas. Assim, figura um trecho transcrito da fala de Adorno (2000, p. 80):

“Em primeiro lugar, compreendo ‘televisão como ideologia’ simplesmente como o que pode ser verificado, sobretudo nas representações televisivas norte-americanas, cuja influência entre nós é grande, ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa consciência e um ocultamento da realidade, além de, como se costuma dizer tão bem, procurar-se impor às pessoas um conjunto de valores como se fossem dogmaticamente positivos, enquanto a formação a que nos referimos consistiria justamente em pensar problematicamente conceitos como estes que são assumidos meramente em sua positividade, possibilitando adquirir um juízo independente e autônomo a seu respeito”.

Porém, ao longo da discussão Adorno deixa claro que não é contra a televisão, como muitos podiam pensar na época (e até hoje). Ele diz que é contra determinados modelos de difusão de informações e valores com intenções implícitas ou explícitos de dominação política e, de disseminação da cultura capitalista. Mas concorda, até em certa demasia com Becker, sobre a possibilidade da TV como ferramenta para a educação e autonomia. Adorno critica, sobretudo, as novelas por manipularem de maneira sutil a consciência das pessoas, e salienta a importância de ensiná-las a assistirem televisão, desenvolvendo nelas aptidões críticas e conduzindo até a capacidade de desmascararem ideologias. O objetivo deste ensino é proteger diante das identificações falsas e problemáticas, inclusive da propaganda geral de um mundo onde a mera forma de veículos de comunicação de massa se encontra naturalizada. Ou seja, usar a televisão contra ela mesma.

Usar a TV contra ela mesma! Usar um produto cultural veiculado pela televisão para fazer a crítica de seus próprios modelos de transmissão de informação e de conteúdos culturais! Podemos ver resquícios de tal movimento em determinadas letras de músicas brasileiras, às vezes, de artistas divulgados pela própria TV da qual se critica. Escolhemos algumas letras que retratam de uma maneira específica a televisão. A intenção é demonstrar as “representações” pessimistas e negativas da televisão e problematizar estas figurações estereotipadas que, de certa maneira, aparecem em opiniões de críticas sociais pouco aprofundadas sobre a TV. As conhecidas “críticas-senso-comum”.

Televisão (1985) do Titãs expõe o “emburrecimento” provocado pela cultura televisiva. Polêmicas médicas que disseminam mitos, estimulam “paranoias” e interferem diretamente na vida cotidiana são apresentadas no trecho: “o sorvete me deixou gripado pelo resto da vida”. Há pouco tempo o Fantástico apresentou uma reportagem na qual o médico Dráuzio Varella considerava que o ovo fazia mal a saúde. Fato que causou um rebuliço na indústria granjeira. Após várias reclamações sobre a queda nas vendas, a TV Globo, pressionada por empresários e médicos, teve que desmentir a consideração de Varella. Então foi dito que existe litígio na comunidade científica sobre os benefícios e malefícios da alimentação do ovo, fato que não foi abordado na primeira reportagem. Sobre a questão do sorvete associado a gripe, a letra ressalta a superioridade da cultura letrada à televisiva: “eu nunca li num livro que o espirro fosse um vírus sem cura”. Outro trecho que chama atenção é o que subtende a televisão estimulando ou inventando desejos que antes não existiam nos espectadores: “que tudo que a antena capturar meu coração captura”. Aqui a TV também entra numa forma de simbiose com o espectador, onde não é mais possível dizer qual dos dois possui vida e vontade.

O Teatro Mágico mistura poesia, música e artes circenses
O Teatro Mágico mistura música, poesia e arte circense
É nesta linha que Xanéu nº5 (2008) d’O Teatro Mágico representa a televisão. A letra fala sobre uma televisão que adquire vida e deixa de obedecer ao dono do controle remoto, que perde o controle. A TV é  apresentada como um ser vivo que vigia as atitudes e dita as regras. Mas também podemos pensar “a TV como companhia”, como na melancólica letra de Leve Desespero (1986) do Capital Inicial. Lembro-me de minha mãe que, às vezes, deixa a televisão ligada mesmo quando ninguém está assistindo. Certa vez questionei-a sobre isso, e ela disse que a TV fica ligada para substituir a ausência de “vida” (humana) na casa, ou seja, diálogos entre pessoas, sons de gente. Portanto, ela faz um uso positivo da TV, principalmente quando está sozinha fazendo tarefas domésticas e não pode ficar em frente ao aparelho.

Em Ditadura da Televisão (2004), do grupo de reggae Ponto de Equilíbrio, a tevê aparece representada como uma forma de docilizar os corpos e as pessoas; desde cedo o bebê é colocado na frente da tela para se acalmar e se acostumar à programação. A letra também ressalta a imposição simbólica, que acontece de maneira sutil, separando as pessoas de seus verdadeiros interesses e imbecilizando-as através de uma realidade ilusória, artificialmente construída pelos programas televisivos. Nesta letra, a ditadura da TV tem como mecanismo de dominação a alienação, que robotiza os seres humanos. Tais aspectos também aparecem em Até Quando (2001) de Gabriel o Pensador, no trecho: “a programação existe para manter você na frente, na frente da tevê, que é pra te entreter, que é pra você não ver que o programado é você”. Em Escravo da TV (1991) da banda punk Ratos de Porão, é abordada a construção de uma falsa realidade e, também a falta de tempo para pensar, onde só o assistir impera. A linha que divide a realidade como representação mediatizada pela tevê e a realidade social do além-tela é suprimida em Eu Adoro Minha Televisão (2007), letra irônica do Capital Inicial na qual o narrador encarna um alienado que ama sua tevê porque se as coisas estão ruins é só trocar de canal que melhoram.

Já a banda capixaba Mukeka di Rato em Viva a Televisão (2001) apresenta uma letra chocante e visceral sobre a espetacularização da vida cotidiana, onde a exposição do sexo, da violência e das desgraças pessoais se tornam componentes básicos de um show de horror feito para divertir. Há uma crítica às notícias do mundo das celebridades e a importância demasiada às futilidades, assim diz a letra: “a lista dos atores que tem gonorreia... a festa do cachorro daquela filha da puta”.

O que pensar diante desse mar de representações negativas da tevê? Particularmente, acho essas interpretações polarizadas demais. É claro que a música (como uma forma de arte) na contemporaneidade, além de divertir e entreter, pode se encarregar da função de crítica social, de estimular o ouvinte a pensar, a refletir sobre sua realidade; e estas letras se encaixam nessa modalidade. Mas não é necessário que as aceitemos de tal maneira que nos faça jogar a TV pela janela com medo dela comer nossos cérebros. Contudo, também é importante não cairmos na ilusão de que os indivíduos estão totalmente livres e isentos para manipularem as representações da realidade mediadas pela TV da maneira como quiserem; pois nesse caso sairíamos do polo “preto” para cair no polo “branco”. Os tons de cinza parecem mais próximos do real.

Para compreender os aparelhos de transmissão cultural e as maneiras de recepção do leitor, o historiador Roger Chartier utiliza o conceito de apropriação. Esse conceito dá a possibilidade de focarmos no confronto entre TV e telespectador, entendendo que, toda interação é uma relação entre, no mínimo, dois polos. Assim podemos fugir de um estruturalismo raso que desconsidera a experiência e a liberdade dos sujeitos em favor de um império dos aparatos coletivos e materiais, para perceber a pluralidade de leituras da realidade através das apropriações diversas das representações do real (expostas pela TV, rádio, livro, música, etc.). Também escaparemos da filosofia do sujeito (fenomenologia) que não atenta para a historicidade da individualidade, ou seja, para as diferentes maneiras no tempo e no espaço social pelas quais os sujeitos sentem, vivem e experimentam a realidade de uma maneira específica. A relação entre representação e apropriação proporciona a possibilidade compreender a interação entre texto e leitor, imagens da TV e telespectador; nem as tiranias do conteúdo e do formato, nem a liberdade total daqueles que leem ou assistem, mas captar as fronteiras.

Roger Chartier (1944)
Podemos pensar através do conceito de apropriação que as novelas brasileiras, por exemplo, não são meramente subprodutos culturais que visam alienar o povo e exprimir a dominação da classe burguesa. Pois mesmo que tentassem transmitir somente valores que estimulam a conformação à condição de pobreza ou os ideais de vida onde o único sucesso possível é o empreendedorismo no capitalismo, haveria nesta relação, entre o bem cultural simbólico e o espectador, negociações, resistências, rejeições, na qual mesmo a aceitação dependeria de uma “predisposição” (termo meu) do espectador para tal. Quer dizer, o império do sentido não está somente dentro do transmissor de TV, nem só no telespectador, e sim na relação entre os dois, entre o que é transmitido/representado e as maneiras de interpretação/ apropriação.

A TV e outras tecnologias de informação (o rádio, o cinema, a internet) podem sim ser usadas como meios de alienação, na tentativa de submeter os outros a uma ideia, uma ideologia, um desejo, uma política; assim como foi feito na Alemanha nazista ou durante a revolução cubana. Mas para compreender a produção de sentido do mundo é preciso ultrapassar a simples imposição simbólica, e entender que do outro lado existem pessoas que podem concordar ou discordar, aderir ou rejeitar; por exemplo, sobre o nazismo, cabe enxergar que para além de uma propaganda eficiente encabeçada por Goebbels, existiam milhões de alemães que se identificaram e aceitaram os projetos do partido nazista, pessoas sem as quais não teria sido possível a existência de um líder, de um Hitler.

Gosto do conceito de positividade, mais ou menos da maneira como Foucault o utiliza. Ele não significa o que é positivo, o lado bom, mas uma presença, uma existência, um relevo. Descrevendo assim a condição de existência da TV e seu uso, com boas e más consequências políticas, sociais e culturais. Uma escolha pressupõe uma série de renúncias. A tevê pode abrir inúmeras carências e possibilidades de acordo as práticas que a apropriam: acesso às informações, não menos distorcidas, mas passíveis de questionamento e de significações que dependem do telespectador e da maneira como ele assiste; aproximação de familiares e de amigos para assistirem um programa comum; ponto de partida para um debate e socialização entre os que estão assistindo. Afinal não raras vezes a tevê ligada durante uma conversa entre três ou mais amigos desperta a memória ou interesse sobre assuntos por ela abordados, nesse caso ela é descentralizada e funciona como ferramenta coadjuvante e propulsora de um diálogo. Portanto, ela pode funcionar não como um objeto que gera o “enclausuramento espontâneo” do indivíduo solitário, porém como o estímulo para interações sociais.


Obs.: Esse texto lida com o conceito de representação (CHARTIER, 2001) apresentado em África e identidade negra pelo conceito de representação de Roger Chartier

Referências:
ADORNO, Theodor. Televisão e formação. In:______. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2001.

Letras:
CAPITAL Inicial. Eu adoro minha televisão. Álbum: Eu nunca disse adeus. Faixa: 12. Gravadora: Sony BMG, 2007.
CAPITAL Inicial. Leve desespero. Álbum: Capital Inicial. Faixa: 08. Gravadora: Poly Gram, 1986.
GABRIEL, o Pensador. Até quando? Álbum: Seja você mesmo (mas não seja sempre o mesmo). Faixa: 02. Gravadora: Sony Music, 2001.
MUKEKA di Rato. Viva a televisão. Álbum: Acabar com você. Faixa: 03. Gravadora: Deck disc, 2007.  
O TEATRO Mágico. Xanéu nº5. Álbum: Segundo ato. Faixa: 15. Gravadora: Independente, 2008.
PONTO de Equilíbrio. Ditadura da televisão. Álbum: Reggae a vida com amor. Faixa: 04. Gravadora: Deck disc, 2004.
RATOS de Porão. Escravo da TV. Álbum: Anarkophobia. Faixa: 05 (lado B). Gravadora: Eldorado, 1991.
TITÃS. Televisão. Álbum: Televisão. Faixa: 01. Gravadora: WEA, 1985.   



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