sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Os anarquistas não votam! Por quê?

Os anarquistas praticam e defendem o abstencionismo político por uma série de motivos: rejeição à política institucionalizada; necessidade de abolição do Estado; desconfiança na índole do sujeito que adquire autoridade sobre os demais; desacordo à representação dos interesses e anseios, logo, à democracia representativa; e crítica ao sufrágio universal que pressupõe a existência de uma “vontade geral”.

Talvez esta seja a posição que melhor marca a diferença do anarquismo moderno para as demais correntes de “esquerda”. A briga entre Karl Marx e Mikhail Bakunin (nos anos de 1868 a 1971) dentro da Primeira Internacional tem uma parcela de causa devido a essa estratégia específica do anarquismo[1]. Enquanto Marx advogava em favor da necessidade de constituição de um único partido operário para disputar as eleições na política liberal, Bakunin e outros coletivistas revolucionários eram contra e pregavam a autonomia das federações que integravam a Associação Internacional dos Trabalhadores. Engels disse então que Bakunin estava disseminando a anarquia (num sentido pejorativo) nas fileiras operárias. Porém, a negação da participação nas eleições, votando ou se candidatando, e o respaldo no federalismo foram ideias anarquistas que Bakunin retomou de Proudhon, falecido em 1865; e que, tempos depois, passariam a integrar a tradição política do anarquismo.

J. Cubero (Brasil, 1926-98)
Mas como pode um movimento político ser, ao mesmo tempo, antipolítico? Nesse caso, como explicou o anarquista brasileiro Jaime Cubero (2003), é preciso destacar a diferença existente entre o conceito de poder político e de poder social. O primeiro é coação, uma ou mais pessoas “obrigam” (de maneira coercitiva ou violenta) outras a fazerem o que não querem. As mesmas ocupam o governo do Estado, o Kratos, que é o poder político no sentido grego. Por exemplo, que integra palavras como autocracia, aristocracia, teocracia, democracia... Os anarquistas lutam contra este poder hipertrofiado nos Estados. Em contrapartida aceitam o poder social, que é o poder participado e exercido por todos nas decisões coletivas através de práticas de autogestão. É o poder de uma assembleia fazer deliberações sobre ela mesma.

Rocker (Alemanha, 1873-1958)
Por isso, a política é entendida, grosso modo, como a arte de manipular o povo, tendo em vista que este não decide nada além de quem vai decidir em seu lugar. Contudo, é necessário questionar: para os anarquistas não existem pessoas honestas ou suficientemente capazes de exercerem a administração das coisas e o governo dos homens? Os anarquistas agem desta maneira porque são pessimistas demais? A segunda eu responderia que não, pelo contrário. E a primeira é uma questão mal colocada. Por quê? Ora, porque o problema não são, em suma, as pessoas, mas a máquina estatal e o modelo governamental. Os anarquistas acreditam que as pessoas podem mudar conforme o meio no qual elas vivem. A proposta ou a intenção de ocupar um cargo estatal para, finalmente de lá dentro, transformar as coisas, despertar a liberdade e estimular a igualdade é um engano tolo ou uma ação traiçoeira. Rudolf Rocker (2005, p. 15), um anarquista alemão, escreve o seguinte: “não se pode transformar um órgão de opressão social [o Estado] em um instrumento de libertação do oprimido, assim como não se pode ouvir com os olhos”.

Reclus (França, 1830-1905)
Para os anarquistas, o Estado cumpre uma função específica na sociedade moderna: a de assegurar a dominação política e manter os benefícios econômicos para a classe que detém seu controle. Tal crítica foi direcionada aos comunistas que desde Marx pretendem fundar um “Estado Popular”, mas governado por um grupo de homens supostamente mais inteligentes e mais capazes (vanguarda) que os demais. E se operários ocuparem este cargo? Bakunin (2006, p. 128) considera que “certamente [se transformarão em] antigos operários que, no momento em que se tornarem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e passarão a olhar o mundo proletário do alto do Estado; não mais representarão o povo, mas a si próprios e suas pretensões de governá-lo”. Para Élisée Reclus, anarquista francês do séc. 19, “a atmosfera do governo não é de harmonia, mas de corrupção. Se um de nós for enviado para um lugar tão sujo, não será surpreendente regressarmos em condições deploráveis” (s/d, online).

Bakunin (Rússia, 1814-1876)
É comum dizerem por aí que caso eu não vote, ou caso eu vote nulo, estarei deixando que os outros decidam por mim. Como os anarquistas analisam essa afirmação? Ora, para eles é o contrário. Reclus considera que “votar é alienar seu poder”. É entregar a própria liberdade de decisão nas mãos de outros. Tudo porque são duas situações temporais diferentes. A primeira é a eleição. Único momento, na democracia representativa, que eu posso decidir o que quero. Mas não é "o quê" eu quero, é "quem" eu quero. E me são dadas poucas alternativas de escolha, já que nenhum dentre todos candidatos defende exatamente as mesmas ideias que eu. Mas, tudo bem, eu voto. A partir deste ato eu confiro legitimamente ao candidato eleito o direito de fazer escolhas por mim. O segundo momento é o que faz realmente diferença, ele acontece durante o mandado, na câmara legislativa, no cargo executivo, ou seja, nos lugares onde as decisões sobre os projetos e leis são realmente tomadas. Vejamos! Mesmo que o candidato eleito cumpra 100% das propostas da campanha eleitoral (que foi o que me levou a votar nele), ainda assim aparecerão tantas outras deliberações das quais eu posso ser contrário e ele votar a favor (ou vice-versa). Tudo porque ele não sabe quais são as minhas vontades, meus anseios, meus interesses, minhas dificuldades e, portanto, não pode me representar. Assim, para os anarquistas, apenas existe representação de si mesmo. Só a presença e a participação do original valem, o outro é um engodo.

Proudhon (França, 1809-1865)
Proudhon (2006) é ainda mais radical sobre a questão da representação do Estado ou da sociedade que pretende dizer do que ele precisa e do quanto ele é capaz de produzir. Colocando um problema para o Estado Popular comunista e salientando o choque entre indivíduo e sociedade, ele diz que se os representantes legais não concordarem com o que e o quanto ele pode contribuir, então a “sociedade” termina. E terminará por falta de associados! Se quiserem lhe coagir estarão descumprindo suas promessas de liberdade, igualdade e fraternidade – da mesma maneira que o liberalismo fez. Os ditos candidatos populares agem mal ao “exigir a emancipação da plebe e aceitar em nome da plebe um tipo de eleição que termina exatamente por torná-la facciosa ou muda. Que contradição! Portanto, nada de representantes, nada de candidatos!” (PROUDHON, 2008, p. 128).

É também por se basearem no princípio de que as vontades não são representadas que os anarquistas condenam o sufrágio universal. Este, que é sinônimo ao direito de todos poderem votar, pouca diferença faz na emancipação social se a democracia, em vez de direta e autogestionária, é representativa. Comumente a propaganda pelo voto (e sua importância na democracia) diz que é preciso escolher bem os candidatos, pesquisá-los a fundo. Porém, Proudhon (2008, p. 91) escreve o seguinte: “não acredito de maneira alguma, justificadamente, nesta instituição divinatória da multidão, que a faria discernir, logo de imediato, o mérito e a honorabilidade dos candidatos. Os exemplos são abundantes em personagens eleitos por aclamação e que, sobre as bandeiras em que se ofereciam aos olhos do povo arrebatado, já preparavam a trama de suas traições. Entre dez tratantes, o povo, em seus comícios, quase que não se encontra um homem honesto...”

Kropotkin (Rússia, 1842-1921)
A descrença no sufrágio universal é ainda maior em Peter Kropotkin, que complementa Proudhon. Para ambos o sufrágio universal acaba legitimando que tudo possa proceder pelas mãos das autoridades garantidas pelo voto, através do pressuposto de estarem atendendo a “vontade geral” ou, pelo menos, da maioria. Kropotkin nem acredita que o sufrágio universal seja um direito político, pois entende que o direito político é “um instrumento para salvaguardar a independência, a dignidade, a liberdade daqueles que ainda não tem a força para impor aos outros o respeito deste direito” (2005, p. 45). Enquanto isso o sufrágio serve em algumas ocasiões para a classe dominante se proteger contra as usurpações de seu poder sem precisar recorrer à violência, trocando um governante pelo outro, substituindo “seis por meia-duzia”. Todavia em nada ele pode ajudar a derrubar ou limitar o poder e a dominação sobre os governados. Kropotkin diz que no início a burguesia se opunha ao sufrágio universal com medo do povo usá-lo como uma arma contra os privilegiados. Mas a partir do momento (nas revoluções de 1848) em que perceberam o sufrágio como um meio eficaz de conduzir o povo com autoridade absoluta, passou a defendê-lo.

Pitacos safados!

Já que estamos em ano de eleição surgem muitas dúvidas a respeito do voto nulo. (1ª) O voto nulo resolve? Se considerarmos que o único momento de exercer a cidadania política é votando, então ele não resolve. Aliás, nesse caso, nem votando nulo nem votando num candidato qualquer. (2ª) É verdade que se tiver 50% + 1 de votos nulos a eleição será cancelada e remarcarão outra para daqui 20 ou 30 dias? Mentira. Isso só acontece com a “nulidade” dos votos: erros eleitorais, extravios, corrupções etc. Não se refere aos votos corretos desejadamente “nulos”. (3ª) Votando nulo estarei favorecendo para que o pior candidato se eleja? Isso não faz diferença, pessoal! Afinal, quem garante que os candidatos que têm mais votos são os melhores e mais capacitados? É apenas uma questão de quantidade de votos.

Enfim, é isso! Espero que os autores anarquistas possam ajudar em futuras reflexões políticas.

Referências:

BAKUNIN, Mikhail. Polêmica com Marx. In:______. Textos anarquistas. Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 118-131.
CUBERO, Jaime. As ideias-força do anarquismo. Revista Verve. São Paulo: PUC-SP, nº 4, p. 265-277, outubro, 2003.
KROPOTKIN, Piotr. Os direitos políticos. In:______. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário, 2005, p. 45-50.
PROUDHON, Pierre-Joseph. Sobre o princípio da associação. Revista Verve. São Paulo, PUC-SP, n° 10, p. 44-74, outubro, 2006.
PROUDHON, Pierre-Joseph. Proudhon e as candidaturas operárias: 1863-1864. In:______. A propriedade é um roubo. Seleção e notas de Daniel Guerin. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 100-132.
RECLUS, Élisée. Por que os anarquistas não votam? Revista Mother Earth. Acessado em: http://www.nodo50.org/aversaoaoestado/porque_os_anarquistas_nao_votam.htm
ROCKER, Rudolf. A ideologia do anarquismo. São Paulo: Faísca, 2005.

[1] Outras razões desta disputa podem ser vistas no post: Cartas contra Bakunin.
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