quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Esperando Foucault, também

“Don’t be Saussure”. Don’t be so sure!
(Marshall Sahlins)


Foucault é um filósofo que trouxe e possibilitou inúmeras discussões sobre oficio do historiador. Embora o autor provavelmente não quisesse fazer uma escola ou uma corrente de pensamento historiográfico – aliás, muito pelo contrário, ansiava desestabilizar as maneiras através das quais a história vinha sendo pensada e escrita –, podemos dizer que suas contribuições acabaram sendo absorvidas de maneira resiliente pelo saber histórico. Uma das áreas que utilizam as argüições de Foucault, nem sempre da forma mais honesta, é a história da cultura ou “nova” história cultural. Para descrever o processo que abriu espaço para o surgimento da história cultural e o movimento de inserção do pensamento foucaultiano nesse ramo, vou resenhar passagens do texto da historiadora estadunidense Lynn Hunt, introdução ao livro que ela própria organizou e que apresenta autores e concepções da nova história cultural.

No início de seu texto, a autora aponta o entrelaçamento da história com a sociologia, a partir do século 20, demonstrado no “texto-manifesto” do historiador Edward H. Carr, que defendia a integração da sociologia a história. Desde então, a sociologia histórica cresceu como ramo importante da Sociologia e a história social destronou a história política. Segundo Hunt, isso se deveu, sobretudo por causa de dois paradigmas da História, o marxismo e a Escola dos Annales. A história social marxista se firmou a partir dos anos 60 e 70 com a versão chamada de “história vista de baixo”, uma contraposição a antiga história política dos reis e heróis, como também ao marxismo ortodoxo que tinha nos líderes políticos os protagonistas da narrativa. Georges Rudé, Albert Soboul e Edward Thompson voltaram seus olhares para a composição social da vida cotidiana de operários, criados, mulheres, grupos étnicos e congêneres (HUNT, 1992, p. 2). Já a Escola dos Annales destacou o social e o econômico como os níveis da realidade histórica que realmente importam. Braudel, na segunda geração desses historiadores, definiu e hierarquizou as temporalidades em três. A longa duração (estrutura), a média duração (conjuntura) e os “eventos passageiros”; os dois primeiros ligados ao social, ao econômico e ao geo-histórico; e o último ligado à política e ao indivíduo, seriam apenas espumas ou poeiras trazidas à praia pelas ondas do mar da história (geológico e sócio-econômico).

Lynn Hunt (1945)
No entanto, a história social começou a perder terreno a partir da incorporação da noção de cultura numa perspectiva antropológica. Thompson foi o maior exemplo dentro do marxismo, entretanto esse autor não rejeitou totalmente o “jogo” marxista entre “base e superestrutura”, ao contrário do que escreveu Hunt, porém manipulou de maneira mais complexa a dinâmica humana na relação entre economia e cultura. Ainda dentro do paradigma dos Annales a cultura galgou espaço (na terceira geração) através do conceito de mentalidades (também trazida da antropologia), todavia, Chartier e Revel, historiadores da quarta geração, recusaram a concepção dos Annales que compreende as “mentalidades” como aspectos do terceiro nível, ou seja, que estão na “superfície do mar” e são determinadas pelas “correntes profundas” da história social e econômica. Segundo esses autores, “as relações econômicas e sociais não são anteriores às culturais, nem as determinam; elas próprias são campos de prática cultural e produção cultural – o que não pode ser dedutivamente explicado por referências a uma dimensão extracultural da experiência” (HUNT, 1992, p. 09).

De acordo com Lynn Hunt, Chartier e Revel acompanham as intervenções de Foucault à história social: “a loucura, a medicina, o Estado, não são naturais, são objetos historicamente constituídos por práticas discursivas, sujeitas a mudanças, descontínuas e não se adaptam a base transcendental para o método histórico” (1992, p. 10). [Até aqui apenas resenhei a início do texto de Hunt, passo agora as minhas considerações e diálogos com outros autores] Acredito que o postulado direcionado coerentemente a Foucault, exposto acima por Hunt, possibilita que o historiador deixe de pensar sua cultura ou sua prática científica acima das demais e fora de um lugar especial de onde observa os “ignorantes de carne e osso”. Quer dizer, é uma renúncia a Hegel – como quer Chartier (1990) – e à cultura da maneira como ela é pensada pela antropologia que atravessou Malinowski, Durkheim, Lévy-Bruhl, história das mentalidades, Clifford Geertz e todos aqueles que se achavam capazes de descrever os comportamentos, hábitos e crenças dos outros (geralmente índios) e dizer quais eram os signos e os sentidos partilhados pela comunidade.

Nessa linha de raciocínio, ainda incipiente na História, o historiador pode questionar sobre si e sua classe, como também sobre as práticas historiográficas, os instrumentos teóricos e conceituais que utiliza para “significar” sua narrativa, não mais como modelos de explicação da realidade melhores e mais evoluídos do que os dos índios – como fizeram, por exemplo, muitos antropólogos e historiadores das mentalidades que retornaram a sociedades antigas e distantes para marcar a alteridade e a superioridade –, mas para compreender que estes elementos e práticas também estão fundamentados numa crença (o saber científico? A cultura ocidental moderna?) e numa “maneira” de partilhar sentidos; porém, que nunca é imóvel, homogênea, linear, consensual.

Basicamente, tal observação permite compreender que, o que o historiador pratica foi fabricado historicamente e é produto dialógico das disputas e condicionamentos sociais. O primeiro passo é parar de se colocar fora da disputa, como um juiz neutro ou como aquele que está isento de tudo que escreve; e começar a olhar a si (e suas práticas) como “sujeito” igualmente inserido num sistema social e não um “sujeito” que paira no ar e que, por isso, consegue analisar os objetos (às vezes, os índios ou os medievais). Talvez seja compreender que ele pode ser um índio ou um medieval, em certa medida, e que nem seu tempo ou sua cultura são superiores. Até que isso seja percebido e refletido, continuarão as críticas de que a História usa ou pretende usar instrumentos meta-históricos. Sobretudo por que, exceto em raros casos, por enquanto não foi desta maneira que os historiadores usaram Foucault. O título de um dos livros do antropólogo Marshall Sahlins é sintomático: “Esperando Foucault, ainda”. Entre muitas ironias e pauladas, Sahlins critica a forma com que os pesquisadores se apropriaram de Foucault (Gramsci e Nietzsche) fazendo quase uma disciplina fechada e à parte, uma espécie estruturalismo do(s) poder(es) sem mudança.

A dificuldade de encaixar a obra de Foucault a qualquer corrente teórica na História acabou possibilitando algumas vinculações forçosas e falsas. Hunt e Peter Burke (1991), por exemplo, o aproximaram da Escola dos Annales. Hunt à “quarta geração” de Chartier e Revel e à primeira e segunda, respectivamente encabeçadas por Bloch-Febvre e Braudel, as duas últimas por que os propósitos, de “encontrar as regras anônimas que governam as práticas coletivas e deslocar o sujeito individual da história”, seriam os mesmos. Parece-me que tem algum fundamento o acordo de ambos quanto a tais formulações, porém é um critério flexível que daria para colocar juntos outros tantos autores distantes nas perspectivas, preocupações e abordagens. Já Burke acredita que Foucault está mais próximo da terceira geração com a história das mentalidades. Aproximação extremamente complicada, pois além de entender as práticas e os costumes num terceiro nível, os historiadores das mentalidades provavelmente recusariam voltar seus métodos contra si mesmos. E como bem observou Hunt (aí eu concordo), Foucault não aceitava a conexão de práticas e mudanças (sociais) aos acontecimentos, entendidos aqui de maneira estrutural da política e da economia.

Marshall Sahlins (EUA, 1930)
Hunt salienta que Foucault influenciou os historiadores culturais pelo prisma das tecnologias de poder inseridas nos discursos, contudo, diz que o problema de endossar os postulados do filósofo é cairmos num niilismo (adjetivo usado de maneira acusatória e pejorativa). A historiadora escreve o seguinte: “onde estaremos quando todas as práticas, sejam elas econômicas, intelectuais, políticas ou sociais, revelarem ser culturalmente condicionadas?” (idem, p. 13). Ora, se elas são condicionadas não significa que não possam ser transformadas, algumas até abolidas e/ou esquecidas. Será que a indagação de Hunt tem a ver com o medo de pensar que as práticas culturais dos historiadores também são condicionadas? Teria relação com o que Sahlins escreveu de maneira irônica: “Pelo menos no que concerne à antropologia, duas coisas são certas a longo prazo: uma delas é que estaremos todos mortos; mas a outra é que estaremos todos errados. Evidentemente uma carreira acadêmica feliz é aquela em que a primeira coisa acontece antes da segunda” (2004, p. 03).

O problema é que Hunt não explica o conceito de niilismo. Mas imagino que ele é usado da mesma maneira como é dirigido aos pós-modernos. Se assim for, então, tem a ver com o seguinte problema: bom, se todas as práticas e os discursos são condicionados pelos dispositivos de poder, e tudo que pensamos e fazemos é previamente fabricado pela linguagem então não nos resta fazer mais nada além de chorar pelas nossas desgraças, já que a vida não tem sentido e não há hierarquia de valores morais e éticos. Talvez esse seja um pensamento tipicamente niilista (ou pós-moderno, como dizem) porque nega a vida, (todos) os valores, os sentidos, as possibilidades, as verdades e até a mudança. Todavia, penso que essa crítica não serve para atacar Foucault, e nem para Nietzsche. Já que eles foram críticos do niilismo, da negação da vida, do enquadramento de todas as pessoas numa única forma de realidade social que almeja ser mais verdadeira que as outras. Humm... então seria a ciência uma espécie de niilismo por defender uma única verdade e negar todas as demais? Para Nietzsche sim, a ciência e o homem matam Deus para ocupar seu lugar. Agora os niilistas “pós-modernos” não aceitam mais ninguém no lugar de Deus, mas choram pelo vazio deixado por ele. Foucault e Nietzsche acreditavam que agora era hora de pararmos de chorar com a morte de Deus e do homem e inventarmos formas próprias de vida sem necessariamente defender uma verdade única. A maneira como os pesquisadores usam Foucault é integrá-lo a um tipo de sistema que já existia antes deste escrever, ou pior, como aponta Sahlins, é tentar defender uma verdade inamovível onde o sistema lingüístico e do mundo está fechado, como Saussure, o estruturalista imaginava.

“Temo que jamais nos livremos de Deus,
 posto que cremos ainda na gramática” (NIETZSCHE, 2001, p. 25).

Foucault, pelo contrário, adverte sobre a disjunção entre as palavras e as coisas. As palavras não são as coisas! Mas as instâncias do poder vinculadas as instituições do saber (como as disciplinas acadêmicas, por exemplo) intentam numa batalha discursiva promover a dobra entre a palavra e a coisa, até que elas colem uma na outra e se torne o “verbo que se fez carne” – “a verdade revelada” por Deus? Ou pelos cientistas-deuses? Diga-se de passagem, uma verdade única, com fins políticos muito claros. “Ah, mas as proposições de Foucault, Deleuze, Rancière e outros geram mais perguntas do que respostas”, dizem. “Que bom!”, eu digo. Onde queremos ir com tantas certezas? Vamos avisar para os índios quem eles são e o que fazem? Ou vamos descobrir o que aconteceu no passado para não repeti-lo e marcharmos para o progresso eterno, como previam os projetos dos historiadores do século 19?

Creio que longe de pensar uma aniquilação das ciências, tampouco da História, Foucault apresentou reflexões valiosas para pensarmos a situação das disciplinas como locus e produtoras de sentido para a vida e a existência – os usos dessas verdades plurais somos nós (os índios) que vamos decidir, negociar, condicionar. O desafio é projetar saberes científicos que não arroguem uma verdade só suas; ou então continuaremos no “niilismo acadêmico” que acreditamos ser praticado pelos outros, pelos diferentes, pelos inferiores (os índios?).

Referências:

BURKE, Peter. A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales. São Paulo: Unesp, 1991.
CHARTIER, Roger. Renunciar a Hegel. In:______. História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HUNT, Lynn. Apresentação: história, cultura e texto. In:______. (Org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 01-32.
NIETZSCHE, Friedrich. O crepúsculo dos ídolos: ou como filosofar com o martelo. Curitiba: Hemus, 2001.
SAHLINS, Marshall. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.

2 comentários:

  1. Costumo ler tuas postagens, mas pra quem não é da área de humanas é difícil acompanhar, cita muitos nomes de historiadores, filósofos que eu não conheço, ou as vezes só de nome, os textos acabam restringidos um público mais específico.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Raul, concordo contigo. Algumas postagens realmente são dirigidas à comunidade de estudantes e professores da área de "humanas", sobretudo da História. Tenho tentado dosar isso aqui no blog, fazendo uma espécie de introdução, mas que, por outro lado, não seja superficial. Porém, encontro dificuldade em usar uma linguagem que ao mesmo tempo seja acessível e explique minimamente os conceitos, as teorias, os autores, etc. Sua intervenção apenas confirma o que eu já desconfiava, por isso sugiro ao público que se interessa pelos assuntos tratados aqui a procurarem direto nas fontes que referencio (e nos comentadores destas) uma compreensão mais detalhada, que seria impossível fazer em três ou quatro páginas textuais. Confesso que o blog tomou uma virada à Teoria da História (e historiografia) de uns tempos para cá, mas pretendo voltar escrever ensaios sobre a sociedade e textos mais "didáticos" em breve. Obrigado pelo comentário!

      Abraços!

      Excluir

Real Time Analytics