quinta-feira, 29 de novembro de 2012

“Sim, sou anarquista e banqueiro”: coisas de Fernando Pessoa

É isso mesmo, pessoal! Não se trata de um banco de créditos ou um fundo de arrecadações para o provimento de operários durante greve ou movimento social. Trata-se de um anarquista que é dono de banco nos moldes do capitalismo, com direito a “açambarcamentos, sofismas financeiros e concorrência desleal”, segundo o próprio. História fictícia? Sem dúvida. Mas que não deixa de levantar questões interessantes para aqueles que se interessam, em alguma medida, pelo anarquismo.

O banqueiro anarquista foi publicado originalmente numa revista de Lisboa, nos idos de 1922. São cerca de quarenta páginas nas quais o poeta português Fernando Pessoa destila toda sua ironia num show de retórica e (também) de sofismo. O diálogo se passa num café, local comum na Europa para discussão de ideias e panfletagem política desde o século 18(?). O interlocutor-narrador pergunta para o banqueiro se era verídico o boato que afirmava que ele já foi anarquista. Então ele responde prontamente que não só é verdade, como continua sendo anarquista. Aí o debate começa. E as gargalhadas do leitor de Fernando Pessoa também... Devido à densidade do diálogo, vou descrever e comentar de modo sucinto somente alguns pontos que me chamaram atenção no texto.

O primeiro ponto que aparece é a questão da teoria/prática. De cara o interlocutor pressupõe que o banqueiro é anarquista somente em teoria, mas que não pratica o que acredita. Logo este trata de negar isso, dizendo que é anarquista em teoria e prática, aliás, seu anarquismo seria mais prático e verdadeiro do que daqueles anarquistas dos sindicatos, dos movimentos operários e das bombas. Assim, o banqueiro responde: “Você me comparou a esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que sou diferente dele. Sou, mas a diferença é esta: eles (sim, eles e não eu) são anarquistas só na teoria; eu sou-o na teoria e na prática. Eles são anarquistas e estúpidos, eu anarquista e inteligente. Isto é, meu velho, eu é que sou o verdadeiro anarquista. Eles – os dos sindicatos e das bombas (eu também lá estive e saí de lá exatamente pelo meu verdadeiro anarquismo) – são o lixo do anarquismo, os fêmeas da grande doutrina libertária” (PESSOA, 2009, p. 05-06). Então, o outro pergunta como ele faz para conciliar teoria e prática, já que é um banqueiro. Tenho certeza que vocês estão loucos para saber. Mas se acalmem, porque a resposta do banqueiro depende de uma longa explicação fundamentada nas experiências de vida que ele teve. Estas formaram os “silogismos retóricos” que justificarão a conclusão final.

O banqueiro explica que nasceu pobre, foi operário e não herdou nem um tostão. Mas recebeu dons naturais: a inteligência e a vontade. Como inteligente que era, procurava trabalhar o mínimo possível, instruir-se e ler bastante, inclusive panfletos libertários. A partir de um dado momento, começou a refletir sobre as condições sociais, se revoltou com estas e se tornou anarquista aos 21 anos. “Como eu era lúcido por natureza, me tornei um anarquista consciente. [...] Ora, o que é um anarquista? É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente – no fundo é só isto”, conta (p. 07). Daí surge a revolta contra as convenções ou ficções sociais que tornam possível essa desigualdade. A família, no caso da herança, da condição de marido/esposa, etc.; o capital; o Estado; as religiões; e as nacionalidades, são algumas das ficções sociais que causam injustiça social e dominação. Já as injustiças da natureza ele diz não poder evitar: “Aceito – não tenho mesmo outro remédio – que um homem seja superior a mim porque a natureza lhe deu – o talento, a força, a energia; não aceito que ele seja superior por qualidades postiças, com o que não saiu do ventre da mãe, mas que lhe aconteceu por bambúrrio logo que ele apareceu cá fora – a riqueza, a posição social, a vida facilitada, etc.” (p. 08).

Mas passemos adiante na explicação do banqueiro, que agora pretende expor sobre o melhor jeito de realizar o anarquismo. Ele investiga o processo por via material através de um Estado de transição, ou “ditadura revolucionária”, e chega à conclusão que isto seria um absurdo ou um desastre; já que por mais que os ideais de liberdade sejam pregados, o Estado de transição, feito de maneira autoritária, violenta ou despótica, gerará futuramente não uma sociedade livre, como se quis, porém uma sociedade nos moldes do próprio Estado de transição, dando como exemplo o Império Romano militarizado, a França depois da revolução de 1789 e uma previsão do mesmo com a União Soviética (na mosca!). Então ele chega num esquema. O fim: sociedade livre. O meio: sem transição. Por isso, o processo deve ser mental e não material, quer dizer, feito pela propaganda, ação-direta e indireta, exemplo, motivação e disseminação de ideias para amadurecer e preparar a sociedade para viver livre. O banqueiro conclui que, “se isto não pode se realizar assim, é que o anarquismo é irrealizável, e, se o anarquismo é irrealizável, só é defensável e justa a sociedade burguesa” (p. 14). Só uma revolução social animada pela via mental poderia desfazer essa série de ficções sociais, ao mesmo tempo, em que mostraria uma sociedade preparada para viver em liberdade.

F. Pessoa (1888-1935)
A partir de então, o banqueiro começou a pensar o que podia fazer para alcançar sua liberdade e a dos outros, algo que preparasse a sociedade para o futuro. Mas trabalhar para quem? Ele se pergunta. Já que não era cristão, pois é impossível ser cristão e anarquista, tendo em vista que o cristão aceita (ou resigna) as desigualdades sociais e o sofrimento terreno (passageiro) porque o que importa é uma vida no paraíso após a morte, e o cristianismo é uma ficção social, então porque trabalhar para os outros? Daqui segue-se uma passagem das mais interessantes e cômicas do texto.

O banqueiro diz: “Vieram-me momentos de descrença; e você compreende que era justificada... Sou materialista, pensava eu; não tenho mais vida que esta; para quê hei de ralar-me com propagandas e desigualdades sociais, e outras histórias, quando posso gozar e entreter-me muito mais se não me preocupar com isso? Quem tem só uma vida, que não crê na vida eterna, quem não admite lei senão a Natureza, quem se opõe ao estado porque ele não é natural, ao casamento porque ele não é natural, ao dinheiro porque ele não é natural, a todas as ficções sociais porque elas não são naturais, porque cargas de água é que defende o altruísmo e o sacrifício pelos outros, ou pela humanidade, se o altruísmo e o sacrifício também não são naturais? Sim, a mesma lógica que me mostra que um homem não nasce para ser casado, ou para ser português, ou para ser rico ou pobre, mostra-me também que ele não nasce para ser solidário, que ele não nasce senão para ser ele próprio, e portanto o contrário de altruísta e solidário é portanto exclusivamente egoísta” (PESSOA, 2009, p. 18).

Mesmo com toda a série de contestações à lógica do anarquismo, ainda sem ter a certeza de que o futuro corresponderia às expectativas almejadas pelos anarquistas e sacrificando todos os benefícios pessoais em prol dos demais, o banqueiro continuou na luta, fazendo divulgação e propaganda dos ideais. No entanto, ele percebeu que no grupo de seus companheiros libertários foi se criando uma tirania interna. Ocasionalmente um mandava e o outro obedecia, e quase nunca era pela razão. Isso se tornou preocupante, pois nesse caso não era uma tirania de uma ficção social que já existia, porém uma nova tirania social criada dentro de um conjunto de pessoas que propunha a liberdade.  Além desta, outro tipo de tirania dava as caras também: a tirania do auxílio. Sim, o altruísmo, a ajuda ao outro, se tratava na verdade de uma tirania a partir da arrogância. Porque “auxiliar alguém, meu amigo, é tomar por incapaz; se esse alguém não é incapaz, é ou fazê-lo tal, ou supô-lo, isto é, no primeiro caso, uma tirania, e no segundo caso parte-se, pelo menos, inconscientemente, do princípio de que outrem é desprezível e indigno ou incapaz de liberdade” (p. 24). Que problema sério colocado! A questão se desdobra em duas: da servidão voluntária daquele que espera sempre o outro fazer por ele; ou da tirania brotada da arrogância de supor ser mais capaz/melhor que o outro, mostrando o caminho correto no qual esse deve seguir, mais ou menos assim como as vanguardas revolucionárias fazem, sejam no comunismo ou no anarquismo. Afinal, eles são os sábios/conscientes e o(s) povo(s) são os burros/alienados!

A sobreposição de uns pelos outros se dava conforme o grau das qualidades naturais de cada um, pela inteligência, imaginação ou vontade. Entretanto, de onde a tirania, através do uso dessas faculdades naturais, provinha? O banqueiro então levanta duas hipóteses. Pode ser que o homem seja naturalmente mau. Ou então essa tirania é uma perversão adquirida pelo homem a partir de uma sociedade recheada por ficções sociais que o oprime e o enrijece. Por sua vez, a humanidade, enquanto criadora de tiranias, propicia que o homem faça uso de suas faculdades naturais de maneira tirânica. A primeira hipótese é impossível de ser resolvida pela ciência, pois teríamos que voltar a um lugar muito distante na história onde o homem vivesse de modo totalmente natural. Pela mais provável, a segunda assertiva é mais verossímil, já que todos os registros de sociedades passadas mostram existência de opressão e de tirania, quase sempre atreladas às ficções sociais. A partir desse ponto do diálogo, ele usa um sofismo, porque parte de uma afirmação imprecisa para extrair uma conclusão precisa e objetiva. Qual é esta?

Num estado social em que vivemos não é possível trabalharmos juntos sem criarmos uma tirania social entre si. Portanto, resta para todos os anarquistas trabalharem para o mesmo fim, porém separados. Deste modo, ninguém vai tiranizar ninguém, todos trabalharão para a liberdade sem criarem uma nova tirania social além das ficções sociais já existentes. Esse deve ser o trabalho dos anarquistas na preparação para a revolução social, conclui o banqueiro. Entretanto, nenhum dos camaradas de luta aceitou essa condição, aliás, chegou a sair nos socos com alguns, conta. O banqueiro conclui, portanto, que seus camaradas de movimento eram uns covardes e parasitas, pois queriam que os outros dessem a liberdade para eles, só que isso é impossível se não for por meio da “tirania do auxílio”; conclui-se que a liberdade não pode ser outorgada ou conferida, mas precisa ser conquistada – assim como já havia escrito Max Stirner. Por fim, o banqueiro diz que se seus colegas não querem ser anarquistas. Então ele o será, conquistando sua própria liberdade.

Para conquistar a liberdade é preciso atacar as ficções sociais, superando-as ou suprimindo-as. E aqui começa sua justificação final de como é possível ser anarquista e banqueiro ao mesmo tempo. Ele faz as seguintes ponderações: qual é a ficção social mais importante atualmente? O dinheiro. Como subjugar a força ou a tirania do dinheiro? “Tornando-se livre da sua influência ou da sua força, reduzindo sua atividade no que dizia respeito de mim”, pontua. Pois é o máximo que o indivíduo pode fazer, já que a destruição completa do dinheiro só é possível pela revolução social. Como combater o dinheiro? O processo mais simples era ir para o campo ou bosque, comer raízes, andar nu e viver como um animal. Bom, mas isso não é um combate, isso é uma fuga das ficções sociais! Por isso, a saída para travar o combate indo ao encontro do inimigo é adquirindo cada vez mais dinheiro. Assim, conforme a quantia aumentar menor será a influência do dinheiro. É aí que o personagem conta que entrou numa “fase comercial e bancária do (seu) anarquismo”.

No entanto, o interlocutor objeta dizendo que ele fez o contrário do anarquismo e criou uma tirania, a tirania do capital. Ele justifica dizendo que esta tirania já existia e todos já estão acostumados com ela (embora não seja o ideal). O problema é quando se cria uma nova tirania em que as pessoas não estão acostumadas, ainda mais quando se defende a liberdade e gera o autoritarismo. Novamente o interlocutor contraria o banqueiro; vejamos a passagem:

Interlocutor: O verdadeiro anarquista quer a liberdade não só para si, mas também para os outros... Parece-me que quer a liberdade para a humanidade inteira...

Banqueiro: Sem dúvida. Mas eu já lhe disse que, pelo processo que descobri que era o único processo anarquista, cada um tem de libertar-se a si próprio. Eu libertei-me a mim; fiz o meu dever simultaneamente para comigo e para com a liberdade. Porque é que os outros, os meus camaradas, não fizeram o mesmo? Eu não os impedi. Esse é que teria sido o crime, se eu os tivesse impedido. [...] Auxiliá-los? Também não podia ser, pela mesma razão. Eu nunca ajudei, nem ajudo, ninguém, porque isso, sendo diminuir a liberdade alheia, é também contra os meus princípios. [...]

Interlocutor: Mas esses homens não fizeram o que você fez, naturalmente, porque eram menos inteligentes que você, ou menos fortes de vontade, ou...

Banqueiro: Ah, meu amigo: essas são já as desigualdades naturais, e não sociais... Com essas é que o anarquismo não tem nada.

***

Pitacos safados!

O banqueiro de Fernando Pessoa, embora faça um raciocínio filosófico mais com intuito provocativo, usando figuras de linguagens e prerrogativas pouco precisas, adota uma descrição bastante verossímil do anarquismo, todavia seus argumentos possuem algumas incongruências em relação aos filósofos anarquistas. Proudhon (1975), por exemplo, tentou explicar como era possível “neutralizar” a desigualdades das faculdades naturais por meio do mutualismo e da criação de laços fraternais e racionais entre os cidadãos. Mas esta é uma discussão recorrente nos outros autores, cada um tentando resolver da sua maneira; porém nunca a aceitando como uma condição-limite.

(Alemanha, 1806-56)
Para além das brincadeiras e ironias, não há dúvidas que a filosofia anarquista contém uma série de contradições, especialmente se tentarmos compor um corpo mais ou menos coeso dos autores, concepções e práticas. Algumas das contradições aparecem na lógica do personagem de Pessoa. Nesse sentido, o raciocínio do banqueiro joga o anarquismo contra ele mesmo, através de argumentos muito parecidos com os quais Max Stirner (2009) utilizou em 1844 para atacar não só o Estado e a religião, mas também o cientificismo, o socialismo e o liberalismo atravessados e fundamentados por conceitos metafísicos como a humanidade, o homem, o trabalhador, o burguês – tudo isto para o autor é uma “alienação” do único, do indizível, do egoísta, do eu. Contudo, penso que Stirner nunca fora anarquista ou, pelo menos, fuja da concepção de anarquismo dos filósofos clássicos. Sobretudo, porque o anarquismo de Proudhon e Bakunin, por exemplo, nunca negou totalmente a moralidade, tampouco a ética colada à moral enquanto conjunto de regras ou preceitos partilhados numa dada comunidade, mesmo que seja diferente da sociedade vigente em que viveram (embora eu acredite que nem assim estejam tão distantes). Ouso afirmar, que o anarquismo não se resolve simplesmente por uma questão racional ou lógica levada ao extremo, como fizeram o banqueiro de Pessoa e Stirner, mas passa por uma prerrogativa de “acreditar em algo” para além do que é totalmente coerente e não-contraditório, e seja completamente explicável ou lógico. Uma fé? Sim, uma fé.


Referências:

PESSOA, Fernando. O banqueiro anarquista. [Lisboa]: CNT – A Corunha, 2009 [1922].
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? Lisboa: Editorial Estampa, 1975 [1840].
STIRNER, Max. O único e a sua propriedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1844].

Link do livro em pdf: O banqueiro anarquista.


2 comentários:

  1. Munhoz,

    agradeço pelo comentário deixado lá no meu blog e pela gentileza em colocá-lo em sua lista de indicados. Também gostei dos textos e da proposta do site e estou divulgando o seu na minha página principal. Até porque a lógica do blog é essa, fazer parcerias e divulgações.

    Abraços

    Bertone

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  2. olá rapaz!

    fazia tempo que não comentava aqui, na verdade, fazia tempo que não "comentava" nem no meu blog - mas nos últimos dias, depois de voltar de uma longa viagem, voltei aos blogs. e mais uma vez, parabéns pelos escritos, pela iniciativa. vi que agora tem até página no facebook, rs.

    mandarei-te um e-mail no endereço que está no blog.

    abraço.

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