sábado, 18 de agosto de 2012

A receita de Marx

O ancião anglo-egípcio Eric Hobsbawm com quase um século dedicado à historiografia marxista continua publicando como se fosse um pesquisador motivado pelas bolsas-produtividade da Capes. No livro lançado ano passado no Brasil, intitulado Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, ele reúne uma série de textos sobre a história do marxismo. O segundo capítulo é dedicado a descrever quais foram as inspirações intelectuais na elaboração da obra teórica de Marx e Engels. Tentaremos neste texto resenhar os pontos principais do seu escrito, sobretudo com o intuito de demonstrar, para o público alheio ao comunismo marxista, que Marx não recebeu uma entidade supraterrestre ao escrever. E nem era uma.

Inicialmente Hobsbawm desconsidera que autores como Platão, Campanella e Thomas Morus, e as comunidades dos primeiros cristãos tenham tido alguma relevância na construção da teoria marxista, pois compunham a fase da “pré-história do socialismo” que não inspirou, de maneira legível, os autores do socialismo moderno. Tais autores eram citados na maioria das vezes apenas para dar verossimilhança às propostas políticas ou usados para críticas sociais ao capitalismo, já que este se opunha aos ideais de quase todas as sociedades antigas, sobretudo as de ideologia cristã. Todavia, o título do livro de Morus (A utopia) teve uma importância significativa, tendo em vista que, depois dele, qualquer tentativa de proposta de uma sociedade ideal era descrita como utópica; e em meados do séc.19 utopia tornou-se sinônimo de comunismo. Enfim, vamos logo à descrição das correntes, escolas e acontecimentos que inspiraram Marx.

Socialismo francês – a história contínua do comunismo moderno começa na ala esquerda da Revolução Francesa. Mais especificamente na “Conspiração dos Iguais” de Babeuf. Entretanto, Engels não via com bons olhos esse “comunismo ascético, derivado de Esparta” (como rotulou em Werke), e Marx alegou que era a crueza e a unilateralidade desse comunismo que faziam com que outras doutrinas socialistas (como as de Proudhon e Fourier) fossem contra ele. O comunismo babôvista e neobabôvista foi importante porque integrava a teoria da revolução a uma doutrina da práxis política, organização, estratégia e tática. E porque a partir de 1830 esse movimento atraia os trabalhadores, ao contrário do socialismo utópico. Foi nesse movimento francês que o nome “comunista” foi usado pela primeira vez, por volta de 1840. Marx só se declararia comunista em 1843, antes se considerava “democrata”, palavra com acepção diferente da que temos hoje.

Socialismo utópico – o primeiro a usar o nome “utopia” para significar uma sociedade socialista foi o francês E. Cabet. Hobsbawm utiliza o termo para se referir a pensadores socialistas antes de Marx, mas especificamente a três: Robert Owen, Saint-Simon e Charles Fourier. A importância de Owen se dá por sua crítica inicial à propriedade privada, à religião e ao casamento da maneira como acontecia na época. Além disso, por ser dono de fábrica sua experiência com as relações de produção era maior do que as dos socialistas franceses que, por extensão, não tinham seu senso prático e objetivo. Há tantos pontos de aprendizado com Saint-Simon que ele merece um parágrafo a parte.

Saint-Simon (1760-1825)
Foi de Saint-Simon que Marx tirou a ideia de que os membros da indústria produtiva devem ser os controladores políticos e sociais, aqueles que vão moldar o futuro da sociedade: uma teoria da Revolução Industrial. Para Saint-Simon os fatos sociais são determinados pelo modo de organização da propriedade, a evolução histórica repousa no desenvolvimento do sistema produtivo e o poder da burguesia se apoia na propriedade dos meios de produção. O pensador francês já tentava compreender a história através da luta de classes, de maneira não tão sofisticada como Marx. Por exemplo, a história (simplista) da França era a luta entre gauleses e francos. As relações de dominação substituíram escravos por servos, e depois por proletários. Mais do que isso, era conhecida sua tese de que a política estava submetida à economia, como também da abolição do Estado na sociedade futura, onde “a administração de coisas” substituiria “o governo dos homens”. Tanto para Saint-Simon, quanto para Marx, o Estado significava o governo dos homens, quando houvesse apenas a gestão das coisas na sociedade socialista, o Estado, nesta acepção particular, deixaria de existir. Entretanto, como o próprio Hobsbawm salienta num dos seus textos, Marx não deixou nada claro sobre esta situação, porque se recusava a prever minunciosamente o “momento pós-revolução”. Outras máximas são creditadas a Saint-Simon: “a exploração do homem pelo homem”, “de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme seu trabalho”, “a todo homem deve ser garantido o livre desenvolvimento de suas capacidades naturais”. Enfim, o marxismo deve muito a filosofia saint-simoniana, mas não é possível precisar com exatidão o que é originalmente dele ou o que havia saído de suas leituras. A própria abordagem inédita da “luta de classes” é relativizada por Hobsbawm: “era provável que qualquer pessoa que houvesse estudado a Revolução Francesa, ou que a tivesse vivenciado, descobrisse a luta de classes na história. De fato, Marx atribui tal descoberta aos historiadores burgueses da Restauração Francesa” (p. 37).

Eric Hobsbawm (nascido em 1917)
Engels elogia Fourier por sua crítica ao comportamento burguês e à sociedade burguesa como um todo; sua defesa da emancipação das mulheres; e sua concepção dialética da história. Mas, sua importância principal foi a análise do trabalho. Ele desconfiava da indústria e do progresso como nenhum outro, embora dissesse que “a roda da história” não podia girar para trás. Em tese, Fourier era um pensador individualista que acreditava que se todos os indivíduos fizessem o que sabiam de acordo com suas habilidades e desejos isso causaria uma satisfação geral. O trabalho e o prazer eram idênticos, este, um ponto de aproximação com Marx que entendeu o trabalho como realização do homem – claro numa sociedade sem exploração de classes. Fourier pregava aos indivíduos que liberassem seus instintos e pulsões; como feminista que era, defendia a libertação sexual das mulheres. Todavia, Marx via alguns problemas nos autores utópicos: falta de senso prático que beirava o ridículo, formação de seitas semirreligiosas; não tinham uma classe específica para a qual pudessem divulgar suas ideias; e eram apolíticos, aspecto que não contribuía para que a transformação que acreditavam ocorresse além do simples espontaneísmo na formação de comunas. Os utópicos não superavam os socialistas franceses que defendiam a luta revolucionária e política de classes. Além disso, uma de suas carências era a deficiência na análise econômica da propriedade, algo que os socialistas franceses já tinha feito, ultrapassando o utopismo.

Proudhon – Rousseau já havia dito que a propriedade privada era a causadora da desigualdade social. Contudo, embora esse autor tenha motivado tantos outros a defenderem a igualdade, ele não propunha a socialização dos meios de produção, mas somente a distribuição equitativa. Quem desenvolveu a reflexão mais elaborada sobre a propriedade na época foi P-J. Proudhon. É bem conhecido o elogio de Marx ao filósofo francês Proudhon, assim que leu O que é a propriedade? (1840). Marx chegou a considerá-lo como um dos maiores autores socialistas, devido sua originalidade e por ser um trabalhador. Porém, Hobsbawm relativiza sua importância dizendo que Marx não considerava Proudhon um bom analista da economia política e não tinha nada a aprender com ele; apenas ressaltou seu avanço em relação ao aspecto deficitário dos utópicos, a análise da propriedade. Aliás, diz que Proudhon era “menos” teórico do que os socialistas utópicos. Aqui vemos o ranço que o marxismo de Hobsbawm tem para com o proudhonismo e o anarquismo. Até porque num dado momento o autor é obrigado a considerar que dos filósofos socialistas “pré-marxistas”, Proudhon é o único lembrado ainda hoje mais do que (somente) em teses acadêmicas.

Economia política britânica – o contato de Marx com os autores britânicos se deu por intermédio de Engels. Esse fato proporcionou a Marx certa superioridade aos socialistas franceses que não os conheciam. As teses sobre a Divisão Internacional do Trabalho saíram da observação ao proletariado inglês e do diálogo com o utilitarismo de Jeremy Benthan e, sobretudo com os economistas socialistas inspirados nas ideias de David Ricardo (W. Thompson, J. Gray, J. F. Bray e T. Hodgskin). Os socialistas ricardianos já haviam desenvolvido a teoria da exploração econômica dos trabalhadores (algo bem próximo da mais-valia) através da inspiração da teoria valor-trabalho formulada por Ricardo. Já as crises de periodicidade no capitalismo são embasadas na obra de John Wade de 1835.

Filosofia alemã – essa inspiração é pouco desenvolvida por Hobsbawm. É conhecida a influência do hegelianismo sobre Marx, que disse que viraria Hegel de ponta a cabeça. Alguns teóricos são considerados importantes, como Moses Hess, o primeiro comunista na Alemanha, e principalmente Ludwin Feuerbach, que escreveu a obra A essência do cristianismo fazendo uma análise materialista da religião. Já que as forças produtivas e materiais estavam pouco desenvolvidas na Alemanha em relação a França e Inglaterra, não restava aos pensadores alemães nada mais do que radicalizar as abstrações, na opinião de Hobsbawm.

Máquinas da Revolução Industrial
Acontecimentos – para dar coerência a sua teoria do materialismo-histórico dialético, muitas das ideias de Marx partiram das observações e análises dos acontecimentos na história mundial. Seu estudo sobre a Revolução Francesa é o modelo que serviu de direção para pensar a evolução da história através da luta de classes. Além disso, a formação do proletariado inglês e o desenvolvimento da Revolução Industrial na Inglaterra, país que Marx morou boa parte de sua vida, foram importantes para a tese de que as forças produtivas transformavam a sociedade e, a que via o proletariado como a classe revolucionária por excelência. A partir de 1840 o proletariado surgira como “problema” na literatura.

Dê a Marx o que é de Marx: Hobsbawm tenta defender porque Marx superou os socialistas anteriores ao mostrar três proposições “inéditas” criadas por ele: 1ª) Marx substituiu uma análise parcial da sociedade capitalista por uma análise abrangente, baseada num exame da relação econômica que regia a sociedade. Sua análise ultrapassava os fenômenos superficiais acessíveis à crítica empírica, pois também considerava a atuação de uma “falsa consciência”, historicamente determinada pelas ideologias e motivações de classe, que atrapalhara outras análises. 2ª) “Ele inseria o socialismo no quadro de uma análise histórica evolucionista, o que explicava duas coisas ao mesmo tempo: por que o socialismo surgiu como teoria e como movimento; e por que o desenvolvimento histórico do capitalismo deve por fim gerar uma sociedade socialista” (p. 49-50). Hobsbawm ainda considera que ao contrário de muitos marxistas, Marx acreditava que a nova sociedade não era um produto acabado, mas que continuaria a evoluir historicamente, de modo que somente parte de seus contornos e princípios gerais poderiam ser previstos e projetados. 3ª) Marx “elucidava a forma de transição da antiga sociedade para a nova: o proletariado seria seu executor, através de um movimento de classe empenhado numa luta de classes que só alcançaria seu objetivo através da revolução – ‘a expropriação dos expropriadores’” (p. 50). Esses pontos fizeram o socialismo deixar de ser “utópico” para se tornar “científico”.

Karl Marx
O historiador quer deixar claro que Marx não só superou os outros socialistas, mas também os “suplantou”, os engoliu em sua síntese. A receita de Marx usou a filosofia socialista, o hegelianismo e a economia britânica como ingredientes indispensáveis, além disso, contou com um bom forno, o desenvolvimento histórico da Europa na modernidade, mas sem uma boa mão do cozinheiro na originalidade do modo de preparo essa receita teria sido um fracasso. Contudo, Marx a desenvolveu para aplicar a uma sociedade específica num momento determinado, ou seja, às sociedades que tinham como sua anatomia a economia política. Ele deixou claro que conforme as mudanças acontecessem seria necessário alterar a “receita” também. Daí o grande problema de seus seguidores preguiçosos terem adotado categorias fixas para analisar todas as sociedades dentro de qualquer temporalidade, como se a preponderância da economia fosse um elemento “trans-histórico” aplicável a qualquer situação social.


Referências:

HOBSBAWM, Eric. Marx, Engels e o socialismo pré-marxiano. In:______. Como mudar o mundo: Marx e marxismo. São Paulo: Cia da Letras, 2011, p. 25-52.
HOBSBAWM, Eric. Marx, Engels e a política. In:______. Como mudar o mundo: Marx e marxismo. São Paulo: Cia da Letras, 2011, p. 53-87.


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Num "episódio" remoto perdi meu controle: a TV na música nacional

Em 1963 aconteceu um debate, na emissora de rádio alemã Hessen, entre o presidente das Escolas Superiores de Educação Popular da Alemanha, Helmut Becker, e o filósofo e sociólogo Theodor Adorno. Os interlocutores discutiam sobre a possibilidade de a televisão ocupar uma função de formação educacional. Becker se mostra completamente defensor do uso da TV para este fim. Então, o intuito do convite a Adorno parece propositalmente interessado em alimentar a tensão entre os dois, haja vista que já eram conhecidas as duras críticas do filósofo a Indústria Cultural (e por extensão a televisão), entendida como veículo propagador de ideologia do Estado e de interesses das classes dominantes com vistas à alienação das massas. Assim, figura um trecho transcrito da fala de Adorno (2000, p. 80):

“Em primeiro lugar, compreendo ‘televisão como ideologia’ simplesmente como o que pode ser verificado, sobretudo nas representações televisivas norte-americanas, cuja influência entre nós é grande, ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa consciência e um ocultamento da realidade, além de, como se costuma dizer tão bem, procurar-se impor às pessoas um conjunto de valores como se fossem dogmaticamente positivos, enquanto a formação a que nos referimos consistiria justamente em pensar problematicamente conceitos como estes que são assumidos meramente em sua positividade, possibilitando adquirir um juízo independente e autônomo a seu respeito”.

Porém, ao longo da discussão Adorno deixa claro que não é contra a televisão, como muitos podiam pensar na época (e até hoje). Ele diz que é contra determinados modelos de difusão de informações e valores com intenções implícitas ou explícitos de dominação política e, de disseminação da cultura capitalista. Mas concorda, até em certa demasia com Becker, sobre a possibilidade da TV como ferramenta para a educação e autonomia. Adorno critica, sobretudo, as novelas por manipularem de maneira sutil a consciência das pessoas, e salienta a importância de ensiná-las a assistirem televisão, desenvolvendo nelas aptidões críticas e conduzindo até a capacidade de desmascararem ideologias. O objetivo deste ensino é proteger diante das identificações falsas e problemáticas, inclusive da propaganda geral de um mundo onde a mera forma de veículos de comunicação de massa se encontra naturalizada. Ou seja, usar a televisão contra ela mesma.

Usar a TV contra ela mesma! Usar um produto cultural veiculado pela televisão para fazer a crítica de seus próprios modelos de transmissão de informação e de conteúdos culturais! Podemos ver resquícios de tal movimento em determinadas letras de músicas brasileiras, às vezes, de artistas divulgados pela própria TV da qual se critica. Escolhemos algumas letras que retratam de uma maneira específica a televisão. A intenção é demonstrar as “representações” pessimistas e negativas da televisão e problematizar estas figurações estereotipadas que, de certa maneira, aparecem em opiniões de críticas sociais pouco aprofundadas sobre a TV. As conhecidas “críticas-senso-comum”.

Televisão (1985) do Titãs expõe o “emburrecimento” provocado pela cultura televisiva. Polêmicas médicas que disseminam mitos, estimulam “paranoias” e interferem diretamente na vida cotidiana são apresentadas no trecho: “o sorvete me deixou gripado pelo resto da vida”. Há pouco tempo o Fantástico apresentou uma reportagem na qual o médico Dráuzio Varella considerava que o ovo fazia mal a saúde. Fato que causou um rebuliço na indústria granjeira. Após várias reclamações sobre a queda nas vendas, a TV Globo, pressionada por empresários e médicos, teve que desmentir a consideração de Varella. Então foi dito que existe litígio na comunidade científica sobre os benefícios e malefícios da alimentação do ovo, fato que não foi abordado na primeira reportagem. Sobre a questão do sorvete associado a gripe, a letra ressalta a superioridade da cultura letrada à televisiva: “eu nunca li num livro que o espirro fosse um vírus sem cura”. Outro trecho que chama atenção é o que subtende a televisão estimulando ou inventando desejos que antes não existiam nos espectadores: “que tudo que a antena capturar meu coração captura”. Aqui a TV também entra numa forma de simbiose com o espectador, onde não é mais possível dizer qual dos dois possui vida e vontade.

O Teatro Mágico mistura poesia, música e artes circenses
O Teatro Mágico mistura música, poesia e arte circense
É nesta linha que Xanéu nº5 (2008) d’O Teatro Mágico representa a televisão. A letra fala sobre uma televisão que adquire vida e deixa de obedecer ao dono do controle remoto, que perde o controle. A TV é  apresentada como um ser vivo que vigia as atitudes e dita as regras. Mas também podemos pensar “a TV como companhia”, como na melancólica letra de Leve Desespero (1986) do Capital Inicial. Lembro-me de minha mãe que, às vezes, deixa a televisão ligada mesmo quando ninguém está assistindo. Certa vez questionei-a sobre isso, e ela disse que a TV fica ligada para substituir a ausência de “vida” (humana) na casa, ou seja, diálogos entre pessoas, sons de gente. Portanto, ela faz um uso positivo da TV, principalmente quando está sozinha fazendo tarefas domésticas e não pode ficar em frente ao aparelho.

Em Ditadura da Televisão (2004), do grupo de reggae Ponto de Equilíbrio, a tevê aparece representada como uma forma de docilizar os corpos e as pessoas; desde cedo o bebê é colocado na frente da tela para se acalmar e se acostumar à programação. A letra também ressalta a imposição simbólica, que acontece de maneira sutil, separando as pessoas de seus verdadeiros interesses e imbecilizando-as através de uma realidade ilusória, artificialmente construída pelos programas televisivos. Nesta letra, a ditadura da TV tem como mecanismo de dominação a alienação, que robotiza os seres humanos. Tais aspectos também aparecem em Até Quando (2001) de Gabriel o Pensador, no trecho: “a programação existe para manter você na frente, na frente da tevê, que é pra te entreter, que é pra você não ver que o programado é você”. Em Escravo da TV (1991) da banda punk Ratos de Porão, é abordada a construção de uma falsa realidade e, também a falta de tempo para pensar, onde só o assistir impera. A linha que divide a realidade como representação mediatizada pela tevê e a realidade social do além-tela é suprimida em Eu Adoro Minha Televisão (2007), letra irônica do Capital Inicial na qual o narrador encarna um alienado que ama sua tevê porque se as coisas estão ruins é só trocar de canal que melhoram.

Já a banda capixaba Mukeka di Rato em Viva a Televisão (2001) apresenta uma letra chocante e visceral sobre a espetacularização da vida cotidiana, onde a exposição do sexo, da violência e das desgraças pessoais se tornam componentes básicos de um show de horror feito para divertir. Há uma crítica às notícias do mundo das celebridades e a importância demasiada às futilidades, assim diz a letra: “a lista dos atores que tem gonorreia... a festa do cachorro daquela filha da puta”.

O que pensar diante desse mar de representações negativas da tevê? Particularmente, acho essas interpretações polarizadas demais. É claro que a música (como uma forma de arte) na contemporaneidade, além de divertir e entreter, pode se encarregar da função de crítica social, de estimular o ouvinte a pensar, a refletir sobre sua realidade; e estas letras se encaixam nessa modalidade. Mas não é necessário que as aceitemos de tal maneira que nos faça jogar a TV pela janela com medo dela comer nossos cérebros. Contudo, também é importante não cairmos na ilusão de que os indivíduos estão totalmente livres e isentos para manipularem as representações da realidade mediadas pela TV da maneira como quiserem; pois nesse caso sairíamos do polo “preto” para cair no polo “branco”. Os tons de cinza parecem mais próximos do real.

Para compreender os aparelhos de transmissão cultural e as maneiras de recepção do leitor, o historiador Roger Chartier utiliza o conceito de apropriação. Esse conceito dá a possibilidade de focarmos no confronto entre TV e telespectador, entendendo que, toda interação é uma relação entre, no mínimo, dois polos. Assim podemos fugir de um estruturalismo raso que desconsidera a experiência e a liberdade dos sujeitos em favor de um império dos aparatos coletivos e materiais, para perceber a pluralidade de leituras da realidade através das apropriações diversas das representações do real (expostas pela TV, rádio, livro, música, etc.). Também escaparemos da filosofia do sujeito (fenomenologia) que não atenta para a historicidade da individualidade, ou seja, para as diferentes maneiras no tempo e no espaço social pelas quais os sujeitos sentem, vivem e experimentam a realidade de uma maneira específica. A relação entre representação e apropriação proporciona a possibilidade compreender a interação entre texto e leitor, imagens da TV e telespectador; nem as tiranias do conteúdo e do formato, nem a liberdade total daqueles que leem ou assistem, mas captar as fronteiras.

Roger Chartier (1944)
Podemos pensar através do conceito de apropriação que as novelas brasileiras, por exemplo, não são meramente subprodutos culturais que visam alienar o povo e exprimir a dominação da classe burguesa. Pois mesmo que tentassem transmitir somente valores que estimulam a conformação à condição de pobreza ou os ideais de vida onde o único sucesso possível é o empreendedorismo no capitalismo, haveria nesta relação, entre o bem cultural simbólico e o espectador, negociações, resistências, rejeições, na qual mesmo a aceitação dependeria de uma “predisposição” (termo meu) do espectador para tal. Quer dizer, o império do sentido não está somente dentro do transmissor de TV, nem só no telespectador, e sim na relação entre os dois, entre o que é transmitido/representado e as maneiras de interpretação/ apropriação.

A TV e outras tecnologias de informação (o rádio, o cinema, a internet) podem sim ser usadas como meios de alienação, na tentativa de submeter os outros a uma ideia, uma ideologia, um desejo, uma política; assim como foi feito na Alemanha nazista ou durante a revolução cubana. Mas para compreender a produção de sentido do mundo é preciso ultrapassar a simples imposição simbólica, e entender que do outro lado existem pessoas que podem concordar ou discordar, aderir ou rejeitar; por exemplo, sobre o nazismo, cabe enxergar que para além de uma propaganda eficiente encabeçada por Goebbels, existiam milhões de alemães que se identificaram e aceitaram os projetos do partido nazista, pessoas sem as quais não teria sido possível a existência de um líder, de um Hitler.

Gosto do conceito de positividade, mais ou menos da maneira como Foucault o utiliza. Ele não significa o que é positivo, o lado bom, mas uma presença, uma existência, um relevo. Descrevendo assim a condição de existência da TV e seu uso, com boas e más consequências políticas, sociais e culturais. Uma escolha pressupõe uma série de renúncias. A tevê pode abrir inúmeras carências e possibilidades de acordo as práticas que a apropriam: acesso às informações, não menos distorcidas, mas passíveis de questionamento e de significações que dependem do telespectador e da maneira como ele assiste; aproximação de familiares e de amigos para assistirem um programa comum; ponto de partida para um debate e socialização entre os que estão assistindo. Afinal não raras vezes a tevê ligada durante uma conversa entre três ou mais amigos desperta a memória ou interesse sobre assuntos por ela abordados, nesse caso ela é descentralizada e funciona como ferramenta coadjuvante e propulsora de um diálogo. Portanto, ela pode funcionar não como um objeto que gera o “enclausuramento espontâneo” do indivíduo solitário, porém como o estímulo para interações sociais.


Obs.: Esse texto lida com o conceito de representação (CHARTIER, 2001) apresentado em África e identidade negra pelo conceito de representação de Roger Chartier

Referências:
ADORNO, Theodor. Televisão e formação. In:______. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2001.

Letras:
CAPITAL Inicial. Eu adoro minha televisão. Álbum: Eu nunca disse adeus. Faixa: 12. Gravadora: Sony BMG, 2007.
CAPITAL Inicial. Leve desespero. Álbum: Capital Inicial. Faixa: 08. Gravadora: Poly Gram, 1986.
GABRIEL, o Pensador. Até quando? Álbum: Seja você mesmo (mas não seja sempre o mesmo). Faixa: 02. Gravadora: Sony Music, 2001.
MUKEKA di Rato. Viva a televisão. Álbum: Acabar com você. Faixa: 03. Gravadora: Deck disc, 2007.  
O TEATRO Mágico. Xanéu nº5. Álbum: Segundo ato. Faixa: 15. Gravadora: Independente, 2008.
PONTO de Equilíbrio. Ditadura da televisão. Álbum: Reggae a vida com amor. Faixa: 04. Gravadora: Deck disc, 2004.
RATOS de Porão. Escravo da TV. Álbum: Anarkophobia. Faixa: 05 (lado B). Gravadora: Eldorado, 1991.
TITÃS. Televisão. Álbum: Televisão. Faixa: 01. Gravadora: WEA, 1985.   



quinta-feira, 9 de agosto de 2012

África e identidade negra pelo conceito de representação de Roger Chartier

Na produção do historiador francês Roger Chartier, o conceito de representação está entre os mais importantes. O autor recorre ao dicionário de Furetière (1727) para descrever dois significados de representação: 1ª) a representação faz ver uma ausência, “o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é representado”; 2ª) noutra acepção, “é a apresentação de uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa”; quer dizer, são modos de exibição. Na primeira é um instrumento que substitui o objeto ausente, capaz de repô-lo na memória e de “pintá-lo” como é. É o caso dos bonecos de cera que representavam os monarcas mortos em seus velórios. Outros têm uma relação meramente simbólica, como o leão, símbolo do valor. “Uma relação decifrável é, portanto, postulada entre o signo visível e o referente significado – o que não quer dizer, é claro, que é necessariamente decifrado tal qual deveria ser” (CHARTIER, 1991, p. 184). Isso coloca em discussão as maneiras comunicativas de compreensão dos significados referentes através dos signos visíveis, abrindo um leque para múltiplas apropriações.

Porém, o maior problema é a segunda acepção, quando o signo toma o lugar do significado, onde a substituição pela imagem se torna a verdade do objeto. Pensando o jogo de forças na constituição dessas relações cognitivas, as possíveis incompreensões da representação podem acontecer por falta de “preparação do leitor” ou pela extravagância de uma relação arbitrária entre signo e significado – que põem em discussão as condições de produção das equivalências admitidas e partilhadas. As formas de teatralização social da vida no Antigo Regime mostram o quanto isso pode ser perverso. Todas visam fazer com que a coisa não tenha existência a não ser na imagem que exibe, e a representação mascare ao invés de pintar adequadamente o que é referente. Aqui os signos são destinados a produzir ilusão.

Por isso a representação – e as disputas por ela – tem um valor relevante no Absolutismo europeu. Os médicos e os juízes se apresentavam bem trajados, com suas togas, pantufas e vestimentas nobres, para impor respeito e fazer crer sobre seus poderes de cura e de decisão sobre a vida dos homens. Essa luta por dominação e autoimposição, ao invés de recorrer à força, recorre à aparência – dominação através da violência simbólica. Chartier compreende três maneiras possíveis para a articulação do conceito de representação coletiva: 1ª) o trabalho de classificação, através das ferramentas intelectuais, que possibilita a construção da realidade pelos diferentes grupos sociais que a compõem; 2ª) as práticas que visam reconhecer uma identidade social, uma maneira própria de ser no mundo, de significar simbolicamente um estatuto e uma posição; 3ª) e as formas institucionalizadas nas quais as “esperas do poder político” – e seus responsáveis – classificam, marcam, delimitam de modo visível a existência de um grupo, de uma comunidade, de uma classe.

A história cultural abre-se para pensar a construção das identidades sociais como resultados de relações de força entre os que têm o poder de classificação, de aceitação e de resistência dentro da comunidade. Mas também, outra na qual o grupo confere a si mesmo, produz para si numa demonstração de unidade. No trabalho de entender o ordenamento, a história cultural rompe com a (noção “materialista” de) dependência do econômico que rege a história social, mas retorna ao social ao tentar compreender a produção simbólica de posições e relações construídas para cada classe, grupo ou meio, de suas identidades (1991, p. 183).

Campesinos franceses representados por Julien Dupré
As representações coletivas são “instituições sociais” forjadas pelos agrupamentos humanos que constroem através delas suas matrizes de entendimentos e de classificações da realidade. Contudo, as percepções do social nunca são discursos neutros, pelo contrário, querem impor sua autoridade à custa dos outros, ou justificar suas escolhas e condutas. Configura, por isso, relações de poder e de dominação, assim como nas lutas econômicas (2002, p. 17). O trabalho com o conceito de representação confere a possibilidade de apreender a maneira como um grupo reconhece e simboliza o outro. Chartier, por exemplo, analisa documentos paroquiais que interrogavam sobre as práticas de leitura entre os camponeses franceses do final do século 18 e início do 19. Nos questionários os clérigos consideravam as bibliotecas rurais (particulares) como expressões da ignorância e do atraso cultural dos moradores dos campos. Em suas opiniões e descrições “editadas” sobre as obras lidas (contos de fadas, feitiçaria, aventuras ficcionais e livros religiosos) e sobre os modos de leitura dos campesinos (ou “analfabetos desinteressados”, ou sobre leitores incompetentes que repetiam várias vezes certos trechos em voz alta), os eclesiásticos reafirmavam suas superioridades intelectuais e a também a necessidade dos “homens letrados” cumprirem a missão de levar aos incultos o mundo das leituras de “grande valor” – num período de modernização pós-revolucionária na França. O historiador utiliza tais documentos não para apreender diretamente as práticas de leitura dos camponeses, mas para compreender o modo como os clérigos cultos representavam a classe campesina francesa daquele período.

Daqui é possível extrair o entendimento de que não existe consenso no mundo como representação, ele está em constante mudança, é um campo aberto de luta entre os grupos sociais e seus membros. Por isso, é preciso que o pesquisador não seja ingênuo ao trabalhá-lo, mas também que as pessoas participantes dele não aceitem as maneiras unívocas, generalizadas e impostas de representar algo ou alguém; ou seja, entendendo que essa representação é intencional e interessada, porque foi construída socialmente visando atingir algum fim que não raras vezes ultrapassa o próprio entendimento imediato do indivíduo que a “reproduz”. Isso quer dizer que o “simbólico” participa de maneira ativa sobre o “real”, construindo a própria possibilidade de existência do “real”. Tem, às vezes, mais importância que o “material”. Afinal, como escreve Durkheim (1981, p. 57): “Uma bandeira não é mais do que um pedaço de pano; o soldado, entretanto, morre para salvá-la”.

Dakar, Senegal, África.
O valor do simbólico e, por extensão, da representação coloca em discussão questões da identidade negra na contemporaneidade. Como toda identidade social, a negritude é uma representação coletiva forjada, inventada, instituída na comunidade. Certos historiadores africanos, inclusive, advogam que o “negro” foi uma invenção dos europeus para impor a superioridade de seus valores fazendo a clássica alusão as luzes e as trevas; que remonta o mito da caverna de Platão. As luzes (o europeu, o branco, a clareza) “representando” o conhecimento, o sol que alimenta a vida na Terra e a visão das formas sensíveis; e as trevas (o africano, o negro, a escuridão) o atraso, a ausência de conhecimento e de razão. Anderson Oliva (2003), um historiador brasileiro, fez um trabalho sobre a representação da África nos livros didáticos, e mostrou que preconceitos do senso comum (como aquele que imagina a África como um zoológico aberto misturado com safari onde os africanos correm desesperados de leões famintos no meio dos capinzais) são muito similares ao dos escritores de livros didáticos. Boa parte deste imaginário foi construída pela literatura científica europeia que representava a África como o continente de povos sem história, bárbaros e atrasados, numa tentativa de afirmar sua superioridade e justificar o colonialismo e neocolonialismo que foi empreendido lá.

Como não podia deixar de ser, a imensa maioria dos africanos discorda dessa representação da África, ou seja, não se reconhecem como seres famélicos, aidéticos e assolados pela seca durante 365 dias do ano. Mas outra maioria, sobretudo de “herdeiros étnico-africanos”, concorda com a sua “representação” por negro, principalmente nos países ocidentais onde a “população negra” sofre discriminações.  Só que invés de assumi-la como sinal do atraso ou da marca divina do pecado – fazendo referência bíblica à Cam, filho de Noé, que após ter visto seu pai bêbado e nu foi amaldiçoado –, defendem-na com orgulho e utilizam-na para afirmar a necessidade de reparação histórica ao agravo causado pelas dominações físicas e simbólicas que, convenhamos, ainda estão por toda parte.

Recentemente aconteceu um episódio em que mostra o “preconceito de cor da pele” e a representação do negro como um ser inferiorizado. Na Rússia, torcedores atiraram bananas dentro do campo de futebol onde estava o jogador brasileiro Roberto Carlos. A menção simbólica é clara: associar o negro ao macaco, rebaixá-lo a condição de “não-homem”. Num mundo sem cultura, ou sem esse histórico cultural de menosprezo ao negro que foi construído (e pode por isso ser desconstruído), o ato desses torcedores não teria sentido algum, seria um ato banal como lançar copos de água dentro do campo, mas por conta da comunicação construída entre símbolos específicos (macaco=banana; macaco=ser-inferior-ao-homem; macaco=negro), o conceito de representação se faz inteligível e bastante claro em sua intencionalidade: excluir os inferiores do espaço da polis, da cena política, retirá-los do lugar comum entre os homens que falam e possuem logos (conhecimento). Pois como adverte Aristóteles, o homem é um animal político porque possui logos. O macaco não o possui, então ele não faz parte da comunidade (lugar dos comuns).

Maus (no alemão "ratos"): romance gráfico de 1986
Essa nítida tentativa de dominação simbólica como forma de exclusão mediada pela representação pôde ser vista também no nazismo, onde os “arianos” descreviam os judeus como seres inferiores, raças medíocres que atrasavam a evolução da nação germânica. Eles eram descritos não como homens, nem como macacos, mas como ratos. Essa classificação era utilizada como a representação dos judeus que devia vigorar na sociedade e que, por sua vez, poderia vir a justificar a matança desses seres. Afinal é preciso matar os ratos, pois eles nos transmitem doenças! Aí vem toda associação simbólica com a história da peste bubônica (ou da peste negra: vejam que ironia!) que dizimou um terço da população europeia a partir do século 14. O autor americano de HQ’s, Art Spielgeman, soube ilustrar com maestria a “ratização” dos judeus pelos nazistas. E aqui, novamente, a exclusão da cena política é clara. O judeu é reduzido a uma condição de “não-homem” e por isso impedido de participar da polis. Isso é um homem? Perguntou anos depois um sobrevivente de Auschwitz. Mas ele se referia a condição dos judeus nos campos de concentração ou a humanidade desumanizada dos nazistas?

O conceito de representação de Chartier quer fazer saltar aos olhos daqueles que entendem que o mundo está condicionado a uma existência puramente natural e biológica. Vamos nos questionar sobre o “homem negro”. Ela é biológica e natural? A meu ver não. A própria condição instituída e categoria “homem” é bastante frágil, abstrata, representada e, por isso, ligada a cultura. Para Foucault o homem é uma invenção recente da modernidade, inaugurada no momento em que se muda a maneira de olhá-lo, sendo tratado como um sujeito e um objeto passível dos saberes e dos poderes que governam o mundo. Para Stirner o homem é uma alienação fabricada para afastar o “eu” dos seus próprios interesses, é uma abstração linguística que não pode exprimir quem somos a menos que decida o que nós precisamos e como devemos agir. E o negro? Tanto pior. Há variações enormes sobre essa “representação”. Meu grande amigo historiador João Gabriel do Nascimento se representa como negro perante a sociedade, mas não teve sua representação bem aceita em uma viagem à Bahia, em contrapartida quando foi ao Chile só faltou acusá-lo de africano nato – ele conta. Na África a disputa entre as etnias rivais Tutsi e Hutus é bem conhecida, e os Tutsi consideram-se superiores, inclusive, por seu tom de pele mais claro – nada incomum para uma região que participou da colonização belga que distribuiu o poder político muito em função desse critério. Como se nota, essas categorizações se relacionam com inúmeras especificidades. O próprio jogador Roberto Carlos aqui no Brasil não é identificado como negro, porque embora tenha traços físicos “africanos”, possui um tom de pele ainda mais claro que o de João.

Como a representação é um aspecto cultural fragmentário e interessado que envolve e atravessa diversas lutas políticas pelo símbolo, me parece que a estratégia mais viável de lidar com ela é manter uma vigília incessante e não acreditar nessas “instituições” além de sua provisoriedade histórica. Por mais natural, inocentes e antigas que as representações pareçam nunca podemos aceitá-las como verdades absolutas e inamovíveis, pelo contrário, é necessário questionarmos com frequência, através de uma investigação detalhada, acerca de quem somos para nós e para os outros e como manipulamos (e somos manipulados pelos) os signos para comunicarmos sobre a realidade.

Referências:

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CARVALHO, F. A. Conceito de representações coletivas segundo Roger Chartier. Revista Diálogos. Maringá, PR: UEM, v. 09, n. 01, p. 143-165, 2005.
CHARTIER, R. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002.

CHARTIER, R. O mundo como representação. Revista Estudos Avançados, vol.5 n.11, São Paulo, p. 1742-191, Jan./Apr., 1991.

DURKHEIM, E. Sociologia. Organizador da coletânea Jose A. Rodrigues. São Paulo: Ática, 1981.
OLIVA, A. História da África nos bancos escolares: representações e imprecisões na literatura didática. Revista Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, n. 3, p. 421-461, 2003.

sábado, 4 de agosto de 2012

Cartas contra Bakunin

As desavenças e os conflitos entre Bakunin e Marx são bem conhecidos na história do movimento socialista. O lugar principal desta briga aconteceu dentro da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Uma instituição fundada em 1864, que reunia diversos ativistas (de esquerda) de toda a Europa e visava à organização da classe trabalhadora para a luta política. Havia uma grande diversidade de ideias e práticas entre os membros da AIT e o dissenso era inevitável. Os congressos recebiam delegados, representantes escolhidos em assembleias pelos trabalhadores de inúmeras nacionalidades e regiões, que debatiam e decidiam os rumos e as estratégias do movimento operário; como a própria função da AIT. A entrada de Bakunin em 1868 acirrou a disputa entre duas tendências no seio da Primeira Internacional: o socialismo marxista (centralista) e o coletivismo revolucionário (descentralista e autonomista).

Apesar de desde o início a maioria dos delegados da AIT compor-se por mutualistas inspirados nas ideias de Proudhon (falecido em janeiro de 1865), Marx e Engels conseguiam, relativamente, controlar o Conselho Geral que regulava algumas ações importantes da organização. No entanto, o carisma e o ímpeto do russo Mikhail Bakunin começaram a ofuscar o brilho dos socialistas alemães, a ponto de atrapalhar seus planos referentes às manobras políticas da AIT. Bakunin não aceitava que a instituição se transformasse num partido político unificado e defendia a autonomia das federações que a integravam. Marx acusava o russo de fazer “anarquia no seio da classe operária” (o título de “anarquistas” foi conferido pelos marxistas aos coletivistas revolucionários, que, em certas ocasiões, assumiram-no) e de conspiração contra a própria Internacional. Após muitas intrigas e discussões, Marx e seus seguidores conseguiram no congresso de Haia em 1872 (setembro) expulsar Bakunin e Guillaume – ambos coletivistas. As cartas que apresento neste post são anteriores a este acontecimento, elas explicam as razões da divergência às ideias de Bakunin e ilustram de maneira sucinta o imbróglio entre marxistas e “anarquistas”. Uma foi escrita por Marx a Friedrich Bolte em 23 de Novembro de 1871 e a outra por Engels em 24 de Janeiro de 1872, endereçada ao italiano Theodor Cuno. Vou tentar descrever os pontos principais de ambas as cartas.

Karl Marx (1818-1883)
Marx diz a Bolte que é preciso o partido continuar sólido e atuante enquanto as classes operárias não estiverem amadurecidas. Quando isso ocorrer, aí os partidos tornar-se-ão reacionários e dispensáveis aos desejos socialistas. Neste ponto, Marx está se referindo diretamente às críticas de Bakunin que era contra constituição de um partido na Internacional. Marx adverte que a luta da AIT é também uma luta interna contra os “dissidentes” e que o Conselho Geral (encabeçado por ele) estava equilibrando esse jogo. Demonstra que, no começo, os proudhonianos eram a hegemonia na Primeira Internacional, mas que surgiram os coletivistas e positivistas que se opuseram a eles. Cita o caso de Lassalle da federação alemã, que a seu ver era um sectário preocupado com questões pessoais; e Bakunin, “homem sem nenhum conhecimento teórico” que intentou fundar uma outra organização no seio da AIT, a Aliança da Democracia Socialista, para controlar a propaganda científica da Internacional e criar uma Segunda Internacional que funcionasse a seu gosto.

O programa de Bakunin, segundo Marx, estava carregado de ideias pequeno-burguesas. Marx resume tal programa da seguinte maneira: igualdade das classes; abolição do direito de herança (para o alemão essa ideia não passava de uma tolice de Saint-Simon); o ateísmo como dogma obrigatório para todos da Internacional; e, como princípio central, a abstenção à política (ideal baseado em Proudhon).

Essa carta foi escrita logo após o desenvolvimento de um sério conflito. Em meados de 1871, o Conselho Geral fez uma reunião secreta em Londres na qual ficou determinado que a AIT ia constituir um partido único, tal fato, por sua vez, retirava a autonomia das federações que integravam o movimento operário. Imediatamente as federações dissidentes a esta decisão, que sequer participaram da reunião, emitiram através de uma circular (de 12/11/1871) sua contrariedade a tais decisões e convidando demais federações para se unirem acerca dos princípios de autonomia. Guillaume (2006, p. 28) que participou do acontecimento escreve o seguinte: “A sociedade futura, dizia a circular, será a universalização da organização que a Internacional apresentar. Devemos, pois, ter o cuidado de aproximar o mais possível esta organização de nosso ideal. Como poderá uma sociedade igualitária e livre surgir de uma organização autoritária? É impossível. A internacional, embrião da futura sociedade humana, deve ser, desde agora, a imagem fiel de nossos princípios de liberdade e de federação e repelir de seu seio qualquer princípio que tenda para o autoritarismo e a ditadura”. Aqui, numa clara a alusão contrária às ideias de Marx sobre a “ditadura do proletariado” e a centralização da revolução em torno de uma vanguarda partidária. Marx acusa Bakunin de ser o arquiteto por trás deste movimento que ele chama de “complô”. E num tom de convite a Bolte, reitera que a AIT “transferida” para Nova Iorque não cometerá os mesmos erros que a europeia, que permitiu a concatenação deste “golpe” desde o início. Porém, a associação “fundada” em solo estadunidense não aceitará dissidentes, os expulsando caso necessário. Possivelmente Marx já tinha em mente o que aconteceria após a expulsão de Bakunin e Guillaume (ocorrida em 09/1872), ou seja, por falta de contingente e legitimidade, a impossibilidade de a AIT continuar na Europa.

A carta de Engels a Cuno também faz parte desse jogo de conquista de simpatizantes. Como tática, a descrição dos acontecimentos e o ataque direto a Bakunin, chamando atenção do destinatário para tomar precaução com todos que estavam ao lado do russo. Engels apresenta a proposta política de Bakunin como uma teoria que mescla o proudhonismo e o comunismo. O ponto principal de seu proudhonismo é dizer que o “maior mal não é o Capital, não é, portanto o antagonismo de classe que o desenvolvimento social cria entre capitalistas e operários assalariados, mas sim o Estado”. Enquanto Bakunin acha que o Estado é o criador do Capital, que o capitalista o possui por conta do Estado, os socialdemocratas concordam conosco (no caso o socialismo inspirado em Marx) de que o Estado é apenas um aparato criado para proteger os privilégios das classes dominantes – donos de terras e capitalistas. Enquanto a saída para Bakunin é acabar com o Estado para derrubar o Capital, nós acreditamos que é preciso acabar com o Capital, que é a concentração dos meios de produção nas mãos de poucos. Quando isso acontecer o Estado cairá sozinho, afirma Engels. Para os alemães, antes de uma abolição do Estado deve haver uma revolução social que transformará todo o modo de produção mediado pela supressão do Capital.

Bakunin defende que não se deve manter o Estado sob qualquer forma de governo, por isso prega a abstenção política nas eleições. Seu programa tem como estratégia fazer propaganda dos ideais coletivistas, desacreditar o Estado e organizar-se (Engels talvez se refira a autogestão nesta passagem). Quando houver conquistado a maioria dos operários então os organismos estatais serão liquidados. O Estado abolido será substituído pela organização da Internacional. Portanto, Engels acredita que Bakunin advoga que a AIT não foi criada para a luta política, mas para substituir o Estado – consideração bastante polêmica e pouco sustentável.

Engels (1820-1895)
Engels aponta que a teoria de Bakunin é tão radical e tão simples que pode ser aprendida em cinco minutos. Por isso, encontrou rápido acolhimento entre advogados e médicos na Itália e Espanha. Mas é fraca entre a classe trabalhadora, pois esta é uma classe política por natureza que não quer abandonar sua tradição e seus assuntos (possivelmente reformistas: melhorias nas condições de trabalho, aumento salarial, partidarismo, etc.). Para o alemão, pregar o abandono da política é o mesmo que deixar a classe proletária nas mãos dos padres e dos burgueses.

Na sociedade idealizada por Bakunin – segundo Engels –, não haverá autoridade, entretanto o russo não diz como os cidadãos devem se comportar para continuar o funcionamento das fábricas, das ferrovias, dos transportes marítimos sem uma vontade que decida em última instância e em única direção. Cada indivíduo e comunidade serão autônomos, mas ele (Bakunin) não diz como vai funcionar se pelo menos um, numa comunidade de dois membros, não renunciar parte de sua autonomia. Temos que considerar que, para além do desconhecimento de Engels sobre a proposta coletivista de Bakunin, há também nessas críticas intenções tácitas de desmerecer o outro para afirmar a superioridade de seus ideais. Mas, não queremos preencher as lacunas apontadas por Engels neste post, nosso interesse é somente descrever os posicionamentos de Marx e Engels para explicitar os choques principais e as tensões políticas na história da esquerda.

Por fim, Marx e Engels acusam a teoria de Bakunin de ser um zero a esquerda, onde o que importa é a prática (o que não deixa de ter certa verdade), mas que utiliza seus preceitos para esconder seus interesses pessoais. Engels, ainda, menciona o vínculo de Bakunin com Nechaiev, o terrorista que é uma das figuras mais obscuras e controversas do movimento anarquista. Para denegrir a imagem dos “bakuninistas”, Engels afirma, por último, que apesar de reivindicarem a abstenção política, eles estavam naquele momento fazendo propaganda para o retorno de Napoleão III ao trono, como única saída para arrancar o general Thiers do poder francês.

Leia também: "Liberdade para Bakunin"

Referências:

As duas cartas podem ser encontradas no site marxists.org, porém eu utilizei uma versão em espanhol da obra A liberdade de Bakunin, no qual elas aparecem em anexo no princípio do livro.

BAKUNIN, Mijail. La liberdad. Kolectivo Conciencia Libertaria. Traducción: Santiago Soler Amigó. Digitalización: KCL. Disponível em: http://www.kclibertaria.comyr.com/lpdf/l141.pdf
GUILLAUME, James. Bakunin, por James Guillaume. In: BAKUNIN, Mikhail. Textos anarquistas. Seleção e notas Daniel Guerin; tradução de Zilá Bernd. Porto Alegre: L&PM, 2006.
JOLL, James. Anarquistas e anarquismo. Lisboa: Dom Quixote, 1964.  
PRÉPOSIET, Jean. História do anarquismo. Coimbra: Edições 70, 2007.
Real Time Analytics