sábado, 15 de junho de 2013

Lulismo: populismo, psicologia dos pobres e hegemonia às avessas

Dando continuidade ao post anterior, O Lula de Perry Anderson,  vou descrever e comentar as análises histórico-sociológicas com as quais o historiador inglês dialoga em seu artigo “O Brasil de Lula”, pontuando os tópicos mais pertinentes.

A questão do populismo

Segundo Anderson, para Fernando Henrique Cardoso e seguidores, ainda dominantes na intelligentsia e na mídia brasileira, Lula encarna as tradições mais retrógradas do continente sulamericano, sendo nada mais que uma variante do populismo demagógico encarnada na figura de um líder carismático que despreza tanto a democracia quanto a civilidade, e que conquista as massas com caridade e bajulação. Daí surge comparações a dois políticos populistas do meio do século 20, Getúlio Vargas e, o argentino, Juan Domingo Perón. Entretanto, o historiador trata de delimitar as diferenças entre eles próprios e também as de Lula para com ambos.

A retórica discursiva de Vargas era paternalista e sentimental, enquanto a de Perón era exaltada e agressiva. Ambos possuíam relações distintas com as massas. Vargas incorporou trabalhadores recém-urbanizados ao sistema político para constituir seu poder. Estes eram beneficiários passivos de seus cuidados através de uma legislação trabalhista protecionista e de uma sindicalização castrada de cima para baixo. Já Perón energizou os trabalhadores como combatentes contra o poder oligárquico através de uma militância sindicalista que até o sobrepôs. Vargas “apelou às imagens lacrimosas do ‘povo’, enquanto Perón conclamou a ira de los descamisados – os sans-cullotes locais, os sem camisas, em vez de calças” (ANDERSON, 2011, p. 33). A catapulta de ascensão de Lula foi bem diferente. Para o historiador, este esteve ligado ao movimento sindical e a um partido político moderno mais democrático do que qualquer coisa de Vargas e Perón; ainda que o PT tenha se reduzido a uma máquina eleitoral já em 2002. Ao contrário dos outros dois presidentes, a marca do governo de Lula foi a desmobilização popular. Sindicatos e movimentos sociais, atuantes na primeira candidatura de Lula em 1989, perderam representatividade e força. O MST foi praticamente ignorado. As formas de clientelismo típicas do populismo clássico não foram reproduzidas pelo PT. O programa “Bolsa Família, por exemplo, é administrado de forma impessoal, livres dos sistemas capilares do clientelismo” (2011, p. 34).

A psicologia dos pobres

A segunda possibilidade de análise do governo Lula trazida por Anderson é a do cientista político André Singer, que foi porta-voz de Lula no primeiro mandato. Para o autor, a composição dos pobres no Brasil se dá por um subproletariado que representa 48% da população. Esse estrato social é movido basicamente por duas emoções: (1ª) esperança de que o Estado possa moderar a desigualdade; (2ª) medo de que os movimentos sociais possam gerar desordem. Podemos ver este último como ilustração do enorme sucesso que as grandes mídias, sobretudo, através de programas policiais pró-repressão, possuem junto ao público de baixa renda. Frequentemente, manipulando as informações para jogar a população contra as manifestações e movimentos sociais que reivindicam melhorias das condições políticas e civis em benefício da própria população.

No Brasil, a instabilidade é um fantasma para os pobres, seja ela em forma de luta armada, inflação dos preços ou ações bruscas da indústria. Enquanto a esquerda não compreendeu isso, a direita cooptou seus votos para o conservadorismo, aponta Anderson. Isto fica mais compreensível se pensarmos a estratégia de Collor em 1989 ao acusar Lula de extremista. Ou as eleições de 1994 e 1998 quando o controle da inflação encabeçada por FHC garantiu a vitória do PSDB. No entanto, Lula só entendeu isso em 2006. Os números das eleições demonstram que, em 89, Lula obteve vitória no sul do país, com 51%, e derrota no nordeste, com 29%. Já em 2006, ele ficou com 46% no sul e 77% no nordeste. Desta maneira:

“A ortodoxia econômica do primeiro mandato de Lula e, em menor grau, a mais contínua cautela de seu segundo mandato eram, portanto, mais do que simples concessões ao capital. Ela respondia às necessidades dos pobres que, ao contrário dos trabalhadores no emprego formal, não podem se defender da inflação, e repudiam as greves ainda mais do que os ricos, como uma ameaça à vida cotidiana. Assim, vindo depois de FHC, Lula cortou a inflação ainda mais, mesmo quando se dedicava a estimular o consumo popular, tornando-se o pioneiro da ‘nova via ideológica’ com um projeto que unia a estabilidade de preços à expansão do mercado interno. Por isso, Singer sugere, ele demonstrou sua sensibilidade tanto ao temperamento das massas como à cultura política do país em geral, cada qual marcada a seu modo por uma longa tradição brasileira de evitar o conflito”, pondera Anderson (2011, p. 34).


Perry Anderson
Um adendo: o que chama atenção na análise acima de Perry Anderson é a repetição da imagem de passividade ainda forte sobre os movimentos de massa no Brasil. Não são apenas os brasileiros que se auto-identificam como politicamente apáticos, os estrangeiros também repetem essa característica sobre nós. Na quarta-feira passada, o jornal espanhol “El País” noticiou as manifestações contra o aumento dos preços nos transportes públicos dizendo que o movimento fez algo que nem os escândalos recentes de corrupção conseguiram fazer, levar o povo brasileiro a manifestar-se nas ruas. Sobretudo por isso, a classe média que é mal acostumada com protestos está aplaudindo a truculência da polícia, salienta o jornal. Boa parte dos historiadores tenta desconstruir a imagem política do brasileiro que acabou se cristalizando e que possui uma intenção de que o povo aceite sua condição desde berço. O trabalho de Maria Tereza Chaves de Mello, A república consentida (2007), é um exemplo deste tipo de produção intelectual. A autora mostra que, referente à proclamação da república, a frase de Aristides Lobo segundo a qual “o povo assistiu àquilo bestializado”, ganhou uma interpretação de raiz monarquista e depois foi difundida pelos intelectuais desiludidos com a república. Assim, o “bestializado” que era sinônimo de surpreendido, passou a ser de passivo. Neste sentido, é preciso tomar cuidado ao acreditar demais nas generalizações que são feitas sobre um coletivo, bastante heterogêneo, que vivenciou inúmeras experiências históricas de paz e de conflito. Até mesmo na Revolução Francesa ou Americana, houve pessoas e grupos que ficaram em suas casas, que se mostraram indiferentes à situação, e isso é completamente comum em qualquer levante. No mais, a dinâmica da política brasileira de “massas” deve ser compreendida de maneira distinta a da europeia, mas isso não significa que ela seja nula. A história dos movimentos sociais desde o início da república desmentiria qualquer generalização neste sentido. Pessoas foram às ruas! Pessoas lutaram!

Depois dessa digressão, voltemos às análises de Anderson. O historiador considera que Lula pode ser uma espécie de herdeiro de Vargas na medida em que tenta conciliar capital e trabalho, explorar circunstâncias externas em prol do desenvolvimento interno e conectar-se com as massas, oferecendo proteção através de autoridade. No entanto, isso ocorre de uma forma diferente que a de Vargas, especialmente por possuir raízes populares. O fato de ter sido um imigrante e de seu compromisso democrático confere a ele legitimidade maior como “defensor dos pobres” do que a de um fazendeiro rico do sul (Vargas). Apesar de Lula se identificar com Kubitschek em vez de Vargas, é com Roosevelt que André Singer o compara. Para o cientista político, ambos transformaram um cenário político com um pacote de reformas que acabou elevando milhões de trabalhadores sob pressão e empregadores em apuros à condição de ocupantes da classe média. Singer destaca também a forte oposição conservadora a ambos os presidentes. Sobre isso, Anderson chama a atenção para a atuação da imprensa anti-lulista.

É que enquanto a imprensa estrangeira (por exemplo, Economist e Financial Times) ronrona satisfeita com as políticas pró-mercado e com a concepção construtiva da presidência brasileira, garantindo estabilidade e prosperidade capitalista, o leitor da Folha e do Estadão parecem estar vivendo em um mundo diferente: “Normalmente, em suas colunas, o Brasil estava sendo mal governado por um grosseiro aspirante a caudilho, sem a menor compreensão dos princípios econômicos ou respeito pelas liberdades civis, uma ameaça permanente à democracia e à propriedade privada” (2011, p. 36). Mas o que a mídia brasileira escrevia sobre Lula pouco acontecia de fato. A razão das críticas era outra. Mas qual seria ela já que Lula continuou provendo os banqueiros e empresários?

Para Anderson, desde o término da ditadura, era a imprensa que decidia quem seria o candidato eleito à presidência. O caso de Collor na Rede Globo foi emblemático. Quem não se lembra dos debates montados para erguer o candidato? No entanto, Lula quebrou esse ciclo com o carisma junto às massas. E a mídia ficou ressentida. As críticas a Lula encontraram acolhimento em parte da classe média. Não porque sob seu governo este estrato social havia perdido poder, coisa que nunca tivera. Mas por ter perdido status. Não só porque o presidente agora era um ex-operário de chão de fábrica que apanhava da gramática. Mas também porque empregadas domésticas, porteiros e trabalhadores braçais (a ralé) estavam agora adquirindo bens de consumo até então privilégios dos instruídos. O resultado disso foi o que Élio Gaspari chamou de “demofobia”. Aversão ao povo. Coisa que existe ainda em peso em nossa sociedade. A gritaria contra o vídeo da mãe que reclama do valor do Bolsa Família por não conseguir comprar uma calça jeans (de 300,00 contos) para sua filha faz parte deste sentimento/pensamento. “Pobre não pode comprar calça de 300 reais. Nem viajar, nem comprar casa, nem ir ao shopping. Deve se preocupar somente com seu trabalho, saúde e educação”. Ainda que seja absurda a reclamação da mãe, ela evidencia uma sociedade formada por desejos de consumo, estimulada pela propaganda, por objetos materiais que são aceitos como sinal de reconhecimento social. É o capitalismo criando suas contradições, engolindo o próprio lixo que vomitou na sociedade. De todo modo, este caso específico não deve servir para deslegitimar o programa social que funciona somente como um paliativo de urgência, fraco, mas melhor que nada.

Perry Anderson mostra que o empresariado nada deveria ter do que reclamar de Lula; já que o governo beneficiou os proprietários fazendo circular dinheiro com programas e financiamentos e reduziu impostos em momentos delicados. A Bovespa superou todas as bolsas entre 2002-10. Houve também um crescimento do agronegócio. Se alguém pode ter críticas a fazer a Lula estas são mais legítimas quando vem da esquerda, do que da direita. Especialmente porque algumas pesquisas mostraram que a desigualdade social promovida sob seu governo pode ser ilusória, tendo em vista que apesar da renda das classes baixas ter subido, houve um aumento ainda maior àqueles que possuem renda elevada. Além do que, os critérios que o governo utiliza para enquadrar a chamada “nova classe média” são bastante questionáveis.

Hegemonia às avessas

A terceira e última análise interpretativa sobre o governo de Lula vem do sociólogo Chico de Oliveira. Em princípio, ele não contesta a tese da psicologia dos pobres desenvolvida por Singer, nem as melhorias de vida a estes trazidas pelo presidente. Porém, Oliveira se concentra mais no tipo de relação de Lula e seu eleitorado e a adequação às leis internacionais próprias que regem o mercado. Na verdade, trata-se de uma crítica contumaz ao lulismo. Para Oliveira, a globalização do século 21 impediu o projeto inclusivo de desenvolvimento nacional. A chamada terceira revolução industrial, ligada à ciência e tecnologia, exigiu investimento em pesquisas e impôs patentes que impossibilitaram a transferência de seus resultados à periferia do sistema, especialmente ao Brasil que investe pouco em pesquisa e desenvolvimento. Assim, houve uma migração das fábricas para as transações financeiras e para a extração de recursos naturais, e da mineração e do agronegócio para a exportação. Tudo para adequar-se ao cenário mundial. A primeira operação acaba desviando o investimento da produção; a segunda leva o Brasil de volta “aos ciclos anteriores de dependência de produtos primários para o crescimento” (2011, p. 40). Contudo, para este acordo com o capital, foi preciso um ajuste na dinâmica destes setores. O resultado é uma transformação das estruturas pelas quais Lula chegou ao poder. Partido e sindicatos se moldaram como aparatos do poder. Os quadros do PT colonizaram a administração pública sobre a qual o presidente tem direito de nomear 20 mil empregos bem remunerados. A liderança da CUT virou encarregada do maior fundo de pensão do país. Sindicalistas se tornaram administradores de concentrações de capital do país. Militantes se transformaram em funcionários desfrutando das vantagens que um cargo público oferece. A classe trabalhadora terminou desconectada do Partido. Mercado e burocracia são engolidos numa só bocada. Esse novo tipo de poder incrustado seria um ambiente natural para a corrupção, segundo Oliveira.

A relação de Lula com as massas era agora uma hegemonia às avessas, pois: “se para Gramsci a hegemonia em uma ordem social capitalista era a ascendência moral dos proprietários sobre as classes trabalhadores, garantindo o consentimento dos dominados à sua própria dominação, no lulismo, os dominados haviam invertido à fórmula, obtendo o consentimento dos dominantes para sua liderança da sociedade, apenas para ratificarem as estruturas de sua própria exploração” (ANDERSON, 2011, p. 40-41). A comparação mais apropriada aqui é com os governos sulafricanos de Mandela e Mbeki, onde o regime de apartheid havia terminado, os donos da sociedade eram negros, porém os domínios do capital e suas misérias continuavam os mesmos de outrora. E se o começo do artigo de Anderson começa com uma saudação a Lula, o fim já demonstra uma desconfiança a sua proposta social de governo, sobretudo porque o presidente gosta de utilizar a frase segundo a qual ele diz que “é fácil cuidar dos pobres”. As medidas políticas de Lula têm pouco ou nenhum custo para os ricos, por isso aparece uma percepção de que a desigualdade social e econômica em vez de ter diminuído, tem sido mascarada. Por fim, questiona Anderson, afinal que projeto é esse de distribuição sem redistribuição e de progresso sem conflito?

Referências:

ANDERSON, Perry. O Brasil de Lula. Revista Novos Estudos, nº 91, nov. 2001, p. 23-52.
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV/Edur, 2007.

2 comentários:

  1. Bacana a análise. Só uma observação: tanto a Economist quanto o Financial Times são londrinos.

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    1. Obrigado pela observação, Léo. Passou batido essa. Vou consertar.

      Abraços!

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