sábado, 23 de fevereiro de 2013

Assim nasceram as ciências humanas: arqueologia do pensamento

As palavras e as coisas, escrito em 1966, é o principal livro da carreira de Foucault e, sem dúvida, um dos mais importantes do século 20. Nele, como diz o subtítulo, o filósofo faz uma “arqueologia das ciências humanas[1]” através dos discursos, descrevendo como na modernidade (que ele situa no final do século 18 e início do 19) houve uma mudança na maneira de pensar o mundo. Para mostrar a diferença, o autor recorre a uma exposição dos discursos filosóficos e científicos do período em que chama de Idade Clássica (século 17 e 18), constatando neles uma ausência que marcará a mudança para a modernidade: o homem. Isso mesmo! O homem é um problema recente para os saberes filosóficos e científicos. O homem é uma invenção que data dos séculos 18 e 19. Roberto Machado comenta que “não existe, rigorosamente falando, saberes do homem na Grécia Antiga, na Idade Média, no Renascimento ou mesmo no Classicismo” (2005, p. 85).

Machado aponta que Foucault seguiu uma inspiração de Nietzsche. O filósofo alemão também situava o começo do humanismo no mesmo período no qual surgiu o estabelecimento dos limites para o conhecimento humano com a filosofia de Kant; a ciência positiva independente da teologia; e a Revolução Francesa defendendo os ideais humanos de liberdade, igualdade e fraternidade. Com isso a autoridade de Deus e da Igreja é substituída pela do homem (enquanto consciência e sujeito) e os desejos de eternidade e beatitude (celeste) dão lugar aos de projetos do futuro, de progresso e de bem-estar terrestre. “Deus está morto!” Quando Nietzsche disparou essa hipótese-constatação ele simplesmente expunha o desaparecimento dos valores absolutos, das essências, do fundamento divino e o aparecimento de valores demasiado humanos. Assim, o homem destrona Deus para (tentar) sentar em seu lugar.

O surgimento do homem é concomitante à morte de Deus. Geralmente, no nosso entendimento materialista moderno isto parece sem sentido. Cremos que o homem existe há muito mais tempo e que Deus nunca existiu, pois Ele é apenas uma ideia sem correspondência com a realidade material, porque não podemos “comprová-la” através da experiência empírica científica. Mas o que Foucault justamente quer destacar é que a maneira de pensar desta forma é recente (me refiro ao pressuposto que coloca a experiência acima da imaginação e do pensamento, como se a primeira fosse possível sem as últimas), esta maneira de pensar possui uma história, um começo. Portanto, poderíamos pensar de outro jeito já que a história não é inevitável. Tal maneira de pensar não é natural nem mais verdadeira do que outras que já existiram. Para um homem de Idade Média o que seria mais verdadeiro: Deus ou um telefone celular? Talvez tal maneira de pensar seja mais adequada ao nosso “tempo”, assim como Deus era mais adequado do que o celular no medievo (ora, o que é o adequado senão um enquadrar-se a algo?). Podemos concluir assim que o homem, como é hoje, pode ser ultrapassado, deixar de existir num futuro próximo. [Esse parágrafo é só uma tentativa de desembaraçar algumas leituras apressadas ou ingênuas sobre a constatação de Foucault de que o homem é uma invenção recente. Creio ser, de antemão, uma tentativa já frustrada devido à densidade da obra As palavras e as coisas. Mas, voltemos ao assunto das ciências humanas, tratando de como eram os saberes antes delas surgirem].

As bases para o conhecimento (ou a episteme) na Idade Clássica eram constituídas por uma representação não necessariamente empírica. As coisas eram descritas em suas superfícies e em aparências visíveis através de uma ordenação de signos que funcionavam como substitutos na composição de um quadro, de uma imagem geral, de uma “prosa do mundo”. Os saberes operavam mediados por essa descrição geral e as coisas aproximavam-se ou afastavam-se em relação às suas semelhanças, vizinhanças, simpatias, etc. A “descoberta” do novo era somente adicionada e não destruía ou modificava a ordenação das coisas e dos seres já enumerados. Todos os saberes eram analíticos, ordenação de ideias, de pensamentos, de representação. Os saberes não possuíam níveis, apenas se aplicavam a territórios distintos, eram particulares, enquanto a filosofia se detinha sobre a representação geral.

Conforme explica Foucault, na Idade Clássica “as palavras receberam a tarefa e o poder de ‘representar o pensamento’. Mas representar não quer dizer aqui traduzir, dar uma versão visível, fabricar um duplo material que possa, na vertente externa do corpo, reproduzir o pensamento em sua exatidão. Representar deve-se entender no sentido estrito: a linguagem representa o pensamento como o pensamento se representa a si mesmo. Não há, para constituir a linguagem ou para animá-la por dentro, um ato essencial e primitivo de significação, mas tão-somente, no coração da representação, este poder que ela detém de se representar a si mesma [...]”. Sendo assim “nenhuma fala se enuncia, nenhuma palavra ou nenhuma proposição jamais visa a algum conteúdo senão pelo jogo de um representação que se põe à distância de si, se desdobra e se reflete numa outra representação que lhe é equivalente” (1999, p. 107-108).

Assim como a história natural era uma taxonomia dos seres, a análise das riquezas e a análise dos discursos na época clássica funcionavam sob a lógica da representação. “A análise das riquezas, em vez do trabalho e da produção, tem como fundamento o comércio e a troca. O valor, assim, depende das equivalências e da capacidade que têm as mercadorias de se representarem umas às outras”. Da mesma maneira, a análise clássica do discurso “considera a linguagem como sendo o próprio pensamento, como sendo apenas o que ela diz, em seu funcionamento representativo, explicando a ligação de um signo ao que ele significa não pelas próprias coisas, ou por um mundo, de onde extrairia seu sentido, e sim pela representação” (MACHADO, 2005, p. 87). Ou seja, não há o que pesquisar por trás do discurso, da intencionalidade, do ocultamento, do não-dito, tampouco o lugar social dos “sujeitos” que os expressam, mas somente o que o discurso expressa em si mesmo, o que ele quer dizer dentro daquele quadro geral que é a prosa do mundo.

Como já foi dito, no final do século 18 essa maneira de pensar começa a mudar. É um acontecimento do pensamento! A representação é substituída pelo objeto em-si. Se antes o conhecimento verdadeiro do objeto era impossível, só restando o conhecimento da representação deste, agora “representação” ou, melhor, expressão e objeto são uma coisa só. O conhecimento que era analítico se torna “empírico, sintético; seu objeto é uma coisa concreta, não mais ideal, mas real, uma empiricidade, que tem uma existência independente do próprio conhecimento” (2005, p. 88).

No âmbito dos saberes filosóficos da modernidade, essa virada começa com Kant quando ele sintetiza sujeito transcendental e objeto do conhecimento permeado pelas condições de possibilidade do saber humano no tempo e no espaço. Ou seja, o conhecimento se dá a partir de uma condição temporal e espacial na qual o sujeito conhecedor se “funde” com o objeto conhecível, numa síntese entre uma representação intelectual e uma apresentação sensível. Neste sentido, se separa os níveis dos saberes, de um lado a ciência ligada à empiria, à experiência e à comprovação sensível e de outro a filosofia do sujeito como possibilidade para o conhecimento.

Embora para Kant o sujeito não seja empírico – pois jamais poder ser dado à experiência, justamente por ser ele a condição de possibilidade da experiência, logo transcendental –, as ciências empíricas surgem para entender o que cerca o sujeito, procurando responder o que é a vida (biologia), o trabalho (economia) e a linguagem (filologia). Integrando as três empirias, uma pergunta “antropológica” fica no ar: o que é o homem? Para Foucault, essa pergunta é o maior embaraço da modernidade que ao mesmo tempo abriu precedente para o surgimento das ciências humanas.[2]

Na modernidade, o homem aparece pela primeira vez nos saberes como sujeito e, ao mesmo tempo, objeto do conhecimento; quer dizer, como duplo, o paradoxo do sujeito transcendental-empírico. Nas ciências humanas há uma reduplicação, já que o ser transcendental-empírico quer conhecer o outro ser transcendental-empírico. Acontece que somente é possível responder a pergunta sobre o que é o homem a partir do fundamento dos três saberes empíricos: o homem é pensado como o ser que vive, produz e fala; apreendido como ser finito. Isto é uma novidade em relação à Idade Clássica. A noção de historicidade é introduzida pela primeira vez. À submissão ao tempo histórico se tornou uma das bases do conhecimento empírico. Impondo suas leis ao conhecimento da produção, dos seres orgânicos e dos grupos linguísticos.

Entretanto, a episteme moderna com a “necessidade de interrogar o ser do homem como fundamento de todas as positividades [científicas], não podia deixar de produzir-se um desequilíbrio: o homem tornava-se aquilo a partir do qual todo o conhecimento podia ser constituído em sua evidência imediata e não-problematizada; tornava-se, aquilo que autoriza o questionamento de todo o conhecimento do homem. Daí esta dupla e inevitável contestação: a que institui o perpétuo debate entre as ciências do homem e as ciências propriamente ditas, tendo as primeiras a pretensão invencível de fundar as segundas, que, sem cessar são obrigadas a buscar seu próprio fundamento, a justificação de seu método e a purificação de sua história, contra o ‘psicologismo’, contra o ‘sociologismo’, contra o ‘historicismo’; e a que institui o perpétuo debate entre filosofia, que objeta às ciências humanas a ingenuidade com a qual tentam fundar-se a si mesmas, e essas ciências humanas, que reivindicam como seu objeto próprio o que teria constituído outrora o domínio da filosofia” (FOUCAULT, 1999, p. 447-448).

Foucault aponta que as ciências humanas correm perigo e são perigosas. Por seu caráter de instabilidade e de nebulosidade em definição, elas não participam da tríade dos saberes: ciências matemáticas e físicas, ciências positivas da vida, do trabalho e da linguagem e a reflexão filosófica. Por outro lado, elas se colocam nos interstícios, nas fronteiras entre as ciências exatas, empíricas e a filosofia. É nisto que representam perigo às outras ciências, segundo Foucault, porque qualquer deslize das ciências empíricas (da vida, da linguagem e do trabalho) na delimitação do objeto estudado elas podem escorregar para um antropologismo comum às ciências humanas que coloca o homem como centro absoluto (sem sua definição possuir uma “unidade” já que ele é empírico e transcendental). Mas o apoio em outros domínios do saber, a precariedade e a dificuldades das ciências humanas não é devido à extrema densidade de seu objeto (o homem), nem ao estatuto metafísico ou à transcendência desse homem de que elas falam, porém à complexidade da configuração epistemológica em que estão colocadas, sua relação constante com as três dimensões (exata, empírica e filosófica) que lhes confere seu espaço (1999, p. 491). 

Por outro lado, podemos objetar ou complementar a Foucault, as ciências humanas são perigosas, pois permitem desconstruir o caráter naturalizador e supressor dos outros saberes, questionando ao mesmo tempo suas positividades, no caso das ciências duras, e suas metafísicas e transcendências, no caso da filosofia. Obviamente, é um paradoxo. Já que se apontarem para si mesmas – como objetos –, as ciências humanas podem se autodesconstruir. É sabido que tanto Nietzsche e Foucault ao darem nota sobre a invenção recente do homem disseram que ele estava em vias de se desfazer como um rosto de areia na orla da praia para dar lugar ao ser além-homem. A partir do exposto, a inquietação que surge é a seguinte: caso a profecia nietzschiana se cumpra, no que se transformarão as ciências humanas? O além-homem precisará de uma ciência para dizer o que ele é?

Referências:

CANDIOTTO, Cesar. Notas sobre a arqueologia de Foucault em As palavras e as coisas. Rev. Filos. Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 13-28, jan./jun., 2009.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. Diálogo sobre o poder. In:______. Estratégia, poder-saber: ditos e escritos vol. 4. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

[1] É preciso deixar claro que em Foucault arqueologia não tem relação direta com a arqueologia tradicional que estuda em geral vestígios pré-históricos. Sobre isso o autor diz o seguinte: “Utilizo arqueologia por duas ou três razões principais. A primeira é que é uma palavra com a qual se pode jogar. ARCHE, em grego, significa ‘começo’. Em francês, temos também a palavra ‘arquivo’, que designa a maneira como os elementos discursivos foram registrados e podem ser extraídos. O termo ‘arqueologia’ remete, então, ao tipo de pesquisa que se dedica a extrair os acontecimentos discursivos como se eles estivessem registrados em um arquivo. [Com isso], procuro reconstituir um campo histórico em sua totalidade, em todas as suas dimensões políticas, econômicas, sexuais” (2006, p. 259). Tal investigação das maneiras de pensar só é possível a partir de uma condição histórica que liga a linguagem escrita ao pensamento.  
[2] Embora Foucault não estivesse preocupado em sua pesquisa arqueológica em desvendar as causas, ele deixa algumas hipóteses sobre o porquê do surgimento das ciências humanas: “Certamente, não resta dúvida de que a emergência histórica de cada uma das ciências humanas tenha ocorrido por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica ou prática; por certo foram necessárias novas normas impostas pela sociedade industrial aos indivíduos para que, lentamente, no decurso do século XIX, a psicologia se constituísse como ciência; também foram necessárias, sem dúvida, as ameaças que, desde a Revolução, pesaram sobre os equilíbrios sociais e sobre aquele mesmo que instaurara a burguesia, para que aparecesse uma reflexão de tipo sociológico” (1999, p. 476).

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O (des)embaraço da ciência em Lyotard

Para que a ciência seja aceita em sociedade é preciso que ela possua uma legitimidade, a qual será base para a construção e o funcionamento de inúmeras instituições como, por exemplo, os locais de ensino e de pesquisa. Porém, a ciência não pode construir sua legitimidade a partir de si mesma, porque seus jogos de linguagem são diferentes daqueles que constroem o discurso de legitimidade. Lyotard diferencia o discurso científico do discurso narrativo da seguinte forma: os enunciados do primeiro são necessariamente denotativos, apenas informam, descrevem condições e objetos, enquanto os do último são (especialmente) prescritivos, nele estão contidas as ideias do saber-fazer, do saber-viver, do saber-escutar. O saber narrativo ultrapassa a determinação e aplicação do critério único de verdade – ao qual o discurso científico se restringe –, ele é relativo à determinação e aplicação dos critérios de eficiência, de justiça, de felicidade, de beleza sonora e cromática, etc. (2009, p. 36).

Se o discurso científico é “seco”, “indiferente”, “sem emoção”, “amoral”, ou seja, positivo[1]; o discurso narrativo é um relato que não tem compromisso com a observação empírica utilizada para confirmá-lo ou refutá-lo, ele vincula-se à ordem dos costumes. Podem ser “histórias” populares de sucesso ou de fracasso que instruem ou orientam como devem ser os comportamentos dentro de determinada sociedade, se constituem como consensos[2] (e não verdades) para um povo e uma cultura. Estes sucessos ou fracassos relatados “dão sua legitimidade às instituições da sociedade ou representam modelos positivos ou negativos de integração às instituições estabelecidas” (p. 37). A tragédia do Rei Édipo servirá como um exemplo aqui, mesmo se tratando de um relato ficcional, ela representa como um cidadão grego daquela época deve se portar à instituição-família. No caso, o protagonista tendo matado seu pai, Laio, e se casado com sua mãe, a rainha Jocasta, sem saber que o fazia, após descobrir o fato, teve a nobreza de arrancar seus próprios olhos como forma de punição ou purificação ao incesto e ao parricídio. Esse exemplo é apenas para demonstrar uma obra de arte já baseada em consensos presentes no saber narrativo de uma cultura, e que se expressam, ainda que implicitamente, na linguagem oral.

O saber científico nada tem a ver com o “bom” ou “mau” (adequado ou inadequado) comportamento de alguém; hipoteticamente, no caso de Édipo, se a ciência fosse utilizada pelo Direito, no máximo ela poderia constatar que Édipo possuía filhos com sua mãe fazendo um teste de DNA nas crianças assim apresentadas (claro, se esse recurso fosse possível na época), mas não poderia expressar como verdade o incesto, já que existem técnicas de reprodução sem sexo – tudo a mais que isso entraria na ordem da possibilidade e da verossimilhança (logo, do consenso) e não da “verdade denotativa”. Por mais que Édipo tenha assumido os “crimes” de incesto e parricídio, nem ele mesmo poderia provar o que fez, mas apenas aceitar o consenso da moral (segundo a qual diz que devemos falar a verdade – ainda que não possamos prová-la cientificamente).

Não foi sem propósito que fiz essa longa digressão no texto para voltar à questão da legitimação. Esta “encontra-se, desde Platão, indissoluvelmente associada à da legislação do legislador. Nesta perspectiva, o direito de decidir sobre o que é verdadeiro não é independente do direito de decidir sobre o que é justo, mesmo se os enunciados submetidos respectivamente a esta e àquela autoridade forem de natureza diferente. É que existe um entrosamento entre o gênero de linguagem que se chama ciência e o que se denomina ética e política: um e outro procedem de uma mesma perspectiva ou, se se preferir, de uma mesma ‘opção’, e esta chama-se Ocidente” (LYOTARD, 2009, p. 13). Ou seja, há um embaraço das linhas dos dois tipos de saberes, o científico e o narrativo, pois o narrativo que é prescritivo fornece as condições de produção de verdade para o científico, grosso modo, dizendo o que ele precisa possuir para ser verdadeiro e, logo, ser aceito na comunidade científica.

Este é o ponto que nos interessa neste texto, como já havíamos sinalizado no post anterior, para que a ciência constitua sua legitimação ela entra num paradoxo, pois precisa reconhecer um saber que não considera “verdadeiro” ou “científico”, porém um relato, uma narrativa, uma fábula não-verificável. Assim escreve Lyotard: “[...] o discurso platônico [nos Diálogos] que inaugura a ciência não é científico, e isto à medida que pretende legitimá-la. O saber científico não pode saber e fazer saber que ele é o verdadeiro saber sem recorrer ao outro saber, o relato, que é para ele o não-saber, sem o qual é obrigado a se pressupor a si mesmo e cai assim no que ele condena, a petição de princípio, o preconceito. Mas não cairia também nisto valendo-se do relato? (p. 53)”. A questão da legitimação do saber científico é igualmente resolvida na República de Platão através de um relato: a alegoria da caverna. Esta conta por que e como os homens querem os relatos (as trevas) e não reconhecem o saber (a luz). Por outro lado, esta está intimamente relacionada à questão da autoridade sociopolítica, já que o legislador é o rei, que não por acaso é um filósofo.

Os relatos modernos de legitimação do saber científico

Lyotard (1924-98)
Lyotard descreve dois tipos de relatos de legitimação da ciência produzidos no século 19. Estes tiveram uma influencia considerável sobre as universidades e o funcionamento dos saberes a partir desse período. 1º) Sob um viés mais político, o sujeito do primeiro relato é a humanidade: a heroína da liberdade. Entende-se aqui, humanidade como um conceito que engloba todos os povos, divididos em nações e épocas, agora reunidos numa história universal que marcha rumo ao progresso. Neste relato, defende-se que todos têm direito à ciência, se o povo não é o sujeito do saber científico é porque padres e tiranos impediram-no. Por isso, é necessário reconquistar esse direito. Esse discurso ainda é usado atualmente e justifica a intervenção militar no que Todorov (2012) chamou de “guerra humanitária” – quando, por exemplo, um governante ocidental se coloca como libertador da tirania de um governo teocrático no oriente através da defesa dos direitos humanos “universais”. No plano prático das instituições universitárias, esse relato cuida de “produzir as competências administrativas e profissionais necessárias à estabilidade do Estado” (p. 58) a custo de ignorar que no relato das liberdades o Estado não recebe a legitimidade de si mesmo, mas do povo. Pelo menos em tese, o povo ou a nação, neste relato, fazem os papéis de legisladores da legitimação e de sujeitos do saber científico. Sendo assim, o Estado toma o papel da formação do povo e sua orientação no caminho do progresso; e através da difusão dos saberes autoriza a nação a conquistar sua liberdade.

2º) O segundo relato foi concebido quando o conselheiro do ministério da Prússia, Wilhelm von Humboldt, escreveu o relatório de fundação da Universidade de Berlim em 1810. Segundo o relator, a ciência obedece às suas próprias regras e a instituição científica não possui finalidade determinada, contudo acrescenta que a universidade deve enviar seu material (a ciência) à formação espiritual e moral da naçãoBildung, em alemão. Lyotard questiona este embaraço da ciência com os fins políticos e morais: “O Estado, a nação, a humanidade inteira não são indiferentes ao saber considerado em si mesmo? Com efeito, o que lhes interessa é, como declara Humboldt, não o conhecimento, mas o ‘caráter e a ação’” (p. 59).

Um conflito maior é instaurado nesse relato: a diferença entre o conhecer e o querer. O primeiro está ligado aos enunciados denotativos que emanam do critério de verdade e o segundo orienta a prática ética, social, política através de decisões e obrigações, quer dizer, sob enunciados prescritivos, dos quais não se espera que sejam verdadeiros, mas justos - pois não emanam do saber científico. No entanto, a unificação destes dois tipos de discursos é essencial à Bildung, pois não só espera-se a aquisição de conhecimentos, mas a formação de um sujeito legitimado do saber e da sociedade (p. 60). A este sujeito "universal" Humboldt confere a categorização de Espírito, o qual sintetiza o conhecimento científico e o ideal ético e social numa única Ideia: [...] “assegurando que a pesquisa das verdadeiras causas na ciência não pode deixar de coincidir com a persecução de justos fins na vida moral e política” (p. 60). Um pitaco: não é difícil observar que ainda pautamos nossas condutas muito em cima desses pressupostos que embaraçam a moral à ciência, imbricando-as. Quando o pastor Silas Malafaia diz que a homossexualidade é um comportamento e que ninguém nasce homossexual, nada mais está ele afirmando que a moralidade da tradição cristã é científica. Por outro lado, a resposta do geneticista a ele não foge de uma linha similar, algo assim: “a ciência afirma que cérebros de mulheres homossexuais são mais parecidos aos cérebros de homens heterossexuais do que aos de mulheres heterossexuais; conclui-se, portanto, que a homossexualidade pode ser comprovada pela ciência e por isso moralmente aceita.

Neste tipo de relato do idealismo alemão, o sujeito do saber científico não é o povo, mas o espírito especulativo.  É ele quem conferirá a legitimidade do saber. A filosofia deste relato deve unir os conhecimentos dispersos sob uma totalidade globalizante, num sistema, que foi expresso na Enciclopédia de Hegel na qual cada momento do conhecimento faz parte do devir do Espírito. Esse projeto acaba fazendo um retorno do saber narrativo, que Lyotard chama, neste caso, de metanarração racional. “A enciclopédia do idealismo alemão é a narração da ‘história’ deste sujeito-vida [o Espírito]”. Este sujeito não pode ser verificável, como se disse, ele é especulativo. É como se fosse uma roupa vestida pela humanidade, durante a história universal, e que com o passar do tempo histórico e do nível “cultural” do povo/nação a vestimenta vai se aperfeiçoando através da Bildung. Pode-se considerar o Espírito um metassujeito. “Este relato não justifica a pesquisa e a difusão do conhecimento por um princípio em uso. [...] O idealismo alemão recorre a um metaprincípio que simultaneamente fundamenta o desenvolvimento ao mesmo tempo do conhecimento, da sociedade e do Estado na realização da ‘vida’ de um Sujeito que Fichte chama ‘Vida divina’ e Hegel ‘Vida do espírito’” (p. 62). Aqui o saber encontra sua legitimidade sobre si mesmo, mas isso só é possível quando ele muda do seu jogo de linguagem, ou seja, deixa de ser conhecimento positivo do seu referente e passa a ser o saber dos saberes, por isso, especulativo. “Sob o nome de Vida, de Espírito, é a si mesmo que nomeia” (p. 63).

Dentro deste, agora os discursos de conhecimento sobre os referentes não possuem valor de verdade de imediato, mas somente valor em uma posição dentro da trajetória histórica do Espírito. “Nesta perspectiva, o verdadeiro saber é sempre um saber indireto, feito de enunciados recolhidos e incorporados ao metarrelato de um sujeito que assegura-lhe a legitimidade. [...] Os enunciados são tomados como autônomos deles mesmos, e colocados num movimento onde se admite que eles se engendrem uns aos outros: tais são as regras do jogo de linguagem especulativo. A universidade, como seu nome o indica, é a sua instituição exclusiva (p. 63)”. Esse discurso de legitimação pode ser encontrado, por exemplo, na historiografia, quando se descrevem num percurso histórico as obras que estudaram o mesmo assunto. Entretanto, ele não é restrito à historiografia, pois trabalhos “científicos” do Direito ou até mesmo das ciências exatas constroem uma narrativa falando do tema desde os tempos mais primórdios (partindo do suposto que ciência precisa da justificativa da tradição em totalidade ou realmente seja um Espírito em plena evolução e aperfeiçoamento).

A condição da ciência na “pós-modernidade” para Lyotard

O autor sinaliza que enquanto a legitimação através do relato especulativo, que rege a maioria das instituições universitárias, se encontra abalada devido à fragmentação de sua unidade, sobretudo porque o sujeito não é mais depositário do saber e a tendência é cada vez mais isso diminuir conforme a tecnologia se expande, a primeira versão do relato ganha novo vigor. Em vez do saber encontrar sua validade em si mesmo (como no idealismo alemão) ou no sujeito que se desenvolve atualizando suas possibilidades de conhecimento, agora legitima-se num sujeito prático, que é a humanidade. Em vez da autolegitimação, o princípio de movimento é a autogestão ou a liberdade em sua autofundação. O sujeito é concreto e não mais metafísico, sua epopéia é a da emancipação em relação a tudo aquilo que impede de governar a si mesmo (p. 64). Aposta-se numa ética dos legisladores, não numa exterioridade. Acredita-se que o legislador não é outro senão aquele que como cidadão está submetido à lei e enquanto tal deseja que a lei faça justiça. Tal jogo de linguagem privilegia os enunciados prescritivos.

Lyotard afirma que atualmente não há preocupação em legitimar (somente) os enunciados denotativos, mas especialmente os prescritivos, os que expressam justiça. Assim, “a ciência positiva não tem outro papel senão o de informar ao sujeito prático da realidade na qual a execução da prescrição deve se inscrever. Ele lhe permite circunscrever o executável, o que pode se fazer. Mas o executório, o que se deve fazer, não lhe pertence. Que um empreendimento seja possível é uma coisa; que ele seja justo, outra. O saber não é mais sujeito, ele está a seu serviço; sua única legitimidade (mas ela é considerável), é permitir que a moralidade venha a ser realidade” (p. 65). Por outro lado, os cientistas podem se recusar a prestar serviço ao Estado que considerarem injusto – que não é fundamentado sobre a autonomia da sociedade civil. Ou podem mostrar que esta autonomia não é realizada na sociedade e no Estado. Então, retoma-se a função crítica do saber, mas é necessário considerar que ele não tem outra legitimidade que não seja a de servir aos fins visados pelo sujeito prático que é a coletividade autônoma. Tal saída se mostra interessante, pois ela separa os papéis na tarefa de legitimação, desconstruindo a totalização ou a unificação feita por um metadiscurso que engendrou os distintos jogos de linguagem, do dever e do saber, como se eles fossem um só.

Referências:

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
TODOROV, Tzvetan. Só a ficção nos salva: entrevista com Bruno Garcia. Revista de História, 1/1/2012. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/tzvetan-todorov.



[1] Refiro-me aqui ao sentido de positivismo, de existência, desvinculada de qualquer paixão, moral e ética. E não ao positivo no sentido de que é bom como oposição ao negativo, o ruim. 

[2] Podem ser nomeados como “opiniões comuns” (no grego, doxa).

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Historiografia pós-moderna?

Frank Ankersmit é um historiador holandês que defende (ou defendia) uma escrita da história a partir de pressupostos teóricos e metodológicos pós-modernos. O pesquisador publicou um artigo em 2001, no Brasil, intitulado “Historiografia e pós-modernismo”, do qual eu parto para discutir a questão levantada no título. Esse debate me parece importante porque atualmente tem se usado com frequência o adjetivo “pós-moderno” para desqualificar uma determinada atitude, visão de mundo ou perspectiva de pesquisa de uma série de autores que são muito diferentes entre si. O que mostra uma total falta de critério na análise. Sendo assim, será interessante apresentar os argumentos de um historiador que se caracteriza como pós-modernista.

O conceito de pós-modernidade

Embora o termo já estivesse em uso pela arquitetura e outras áreas, ele se efetivou em 1979 quando foi enunciado pelo filósofo francês Jean-François Lyotard. Para este, a pós-modernidade designa “o estado atual da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século 19” (2009, p. xv). Pensa-se, portanto, na crise dos relatos. Mas que relatos seriam esses? Os relatos são narrativas especulativas que procuram organizar uma sequência lógica dos argumentos para convencer o interlocutor de algo (procura-se o consenso e não a verdade propriamente). A ciência é casuística, aplicando-se às particularidades de cada caso, tratando-os em sua especificidade, e, por isso situa os relatos à margem. Porém a ciência precisa deles para constituir sua fundamentação – de ordem filosófica especulativa. Para suprir a necessidade de um relato que justifique seu procedimento que embasa o saber científico, a ciência cria um metarrelato ou uma metanarrativa. Ou seja, uma grande narrativa (explicativa) generalizante que engloba e submete as pequenas narrativas à sua autoridade. Uma espécie de metafísica da linguagem.

Lyotard diz que para o moderno “a regra do consenso entre remetente e destinatário de um enunciado com valor de verdade será tida como aceitável, se ela se inscreve na perspectiva de uma unanimidade possível das mentalidades racionais: foi este o relato do Iluminismo, onde o herói do saber trabalha por um fim ético-político, a paz universal” (p. xvi). Isso acaba justificando as instituições sociais (o Estado, por exemplo) e o vínculo social (o que é comum entre todos), pois se acredita no metarrelato, numa filosofia da história em direção ao progresso. 

Condição histórica da existência do pós-modernismo

Entretanto, a experiência histórica das duas guerras mundiais, dos totalitarismos e do holocausto pôs abaixo a crença no metarrelato do Iluminismo e, por extensão, a fé que a ciência nos levaria ao progresso ininterrupto. Lyotard, usando a dialética, deixa claro que a ciência criou sua própria contradição ao classificar os relatos como fábulas. Portanto, a pós-modernidade faz parte do processo evolutivo da modernidade, que designa a incredulidade diante das metanarrativas.

Com o tom pesaroso ao anunciar a descrença nos metarrelatos, Ankersmit propõe, de maneira meio desconfiada de si mesmo e resignada à situação histórica, um modelo de escrita do passado mais para sanar um problema que foi colocado pela impossibilidade da história ser uma ciência objetiva, do que para comemorar a libertação das grandes narrativas. O problema para Ankersmit, gerado por esta condição, é que houve um excesso de publicações de pesquisas sobre história nos últimos 150 anos, o qual levou uma diluição do passado. Não temos mais um elo direto com este, porque agora existem muitas interpretações e cada vez mais estas abundam. Nessa profusão de pesquisas e de textos, o passado não existe mais em si mesmo, mas apenas em interpretações. Ele dá o exemplo dos estudos da obra de Hobbes, com suas dezenas de comentadores e intérpretes. São tantas as análises valiosas e distintas que a obra em si se perdeu nesse imenso mar de interpretação. Nem a obra pode ser ainda um meio de arbitrar tais interpretações. O que leva-nos a entender que (para o holandês) era melhor quando existia somente uma interpretação, logo ela não era tratada como “uma interpretação”, mas o acontecimento do passado em si mesmo.[1] Ankersmit cita inclusive um historiador que queria criar uma espécie de teoria da história que estivesse de fora dessa seara de interpretações, para arbitrar sobre elas, mas obviamente este seria somente outro ponto de vista, outra interpretação.

Uma das saídas para o acesso direto com o passado foi trilhada pela Escola dos Annales quando os pesquisadores desta corrente começaram a pesquisar temas nunca estudados. No entanto, isso não durara tanto tempo, pois logo outros pesquisadores se debruçaram sobre os mesmos objetos, criando novas interpretações destes. Então, o jeito é resignar-se mesmo à condição pós-modernista do saber histórico! A impressão que dá é que Ankersmit chega a essa conclusão assim como Walter Benjamin lamentava a perda da aura da obra de arte devido a sua reprodutibilidade técnica e massiva. Vejamos então as perspectivas e possibilidades da historiografia pós-moderna defendida pelo historiador holandês:

Características da historiografia pós-moderna segundo Ankersmit

1ª) A informação se multiplica. Quanto mais interessante ela for, mais outras informações vão ser geradas a partir dela. Isso é o contrário da visão modernista, na qual a informação significativa é a que põe fim às demais análises.

2ª) A desconstrução da causalidade é um procedimento de pesquisa. A relação entre causa e efeito é repensada, não havendo uma necessidade entre as duas. Questiona-se a conexão que o historiador estabelece entre os documentos e os eventos. Considera-se a contingência e o acaso. “A reversibilidade de padrões de pensamento e de categorias de pensamento é enfatizada, sem a sugestão de uma alternativa definida” (p. 119).

3ª) No olhar do pós-modernista, as evidências não apontam para o passado, mas sim para interpretações do passado, pois é para tanto que usamos essas evidências. Para o modernista, a evidência é um azulejo que ele levanta para ver o que está por baixo, para o pós-modernista, ela é um azulejo sobre o qual ele pisa para chegar a outros azulejos; horizontalmente em vez de verticalmente (p. 124).

F. Ankersmit (1945)
4ª) A mentalidade de uma era se revela a medida que entra em contato com outro período. É dada atenção ao não-dito, que remonta um exame psicanalítico. O segredo na personalidade de um indivíduo, de um povo, de um grupo, de uma época, está no que apenas raramente se torna visível por detrás do que normalmente é exposto. A historiografia pós-moderna abre sua tendência a partir da história das mentalidades, segundo Ankersmit. São as migalhas, os pequenos erros e os raros momentos em que o passado se libera, que nos levam a descobrir o que nos é realmente importante. Substitui-se uma história do macro-estrutural por uma história micro-situacional. O autor usa a metáfora da História como uma árvore, assim, ao invés da historiografia pós-modernista almejar descrever e analisar o tronco ou os galhos, como os modernistas tentaram, ela foca nas folhas dessa árvore, fugindo do essencialismo. A preocupação é com o fragmento, com o descontínuo, pois atualmente nos desligamos do contexto histórico, e também como já foi dito, porque parte do pressuposto de que a escrita da história não é chegar ao tronco da árvore, o que seria ilusório, mas apenas nas folhas que logo serão arrancadas pelo vento. Exemplos de historiadores dessa linha: Carlo Ginzburg, Natalie Zemon Davis, Le Roy Ladurie, Georges Duby (p. 128).

5ª) O pós-modernista quer entender como a ciência e a informação científica funcionam, não criar regras para elas, muito menos checar a relação delas com a sociedade. A historiografia pós-moderna não rejeita a científica, mas chama atenção para seu ciclo vicioso, que quer que acreditemos que nada existe fora dela. Mas, fora dela estão todos os domínios, significados e propósitos históricos (2001, p. 133).

6ª) Os relatos sobre o passado possuem natureza metafórica e não literais. É que o foco não está mais no passado em si, mas na incongruência entre passado e presente, entre linguagem que usamos para falar do passado e o passado em si. Tal afirmação é fundamentada porque, segundo Ankersmit, a escolha das palavras e da forma pela qual o texto histórico é construído faz com que ele possua uma opacidade similar a do texto literário, ele atrai a atenção para si mesmo, em vez de atrair atenção para uma realidade fictícia ou histórica por trás do texto. Sob esse viés, a (escrita da) história estaria próxima da arte, pois ela não somente representa a realidade, como também a substitui, criando uma pseudo-realidade que está dentro da realidade. Enquanto isso, o texto se afastaria da linguagem da ciência, que tem a pretensão de ser transparente e de centralizar as interpretações numa só – objetivo almejado pela historiografia moderna que se mostrou fracassado.[2]

7ª) Chegou o momento de pensar sobre o passado, mais do que de escavá-lo e investigá-lo, sobretudo, juntando as peças dos últimos 150 anos de pesquisa histórica (p. 131).

Pitacos safados!

Primeiro gostaria de salientar que existem diferenças consideráveis entre o pós-modernismo descrito por Ankersmit e o que se chama de Teoria Francesa ou de pós-estruturalismo de autores (pelo menos os que conheço um pouquinho) como Deleuze, Rancière, Foucault – mesmo entre estes há diferenças importantes. Por isso, pretendo num próximo texto mostrar em linhas gerais tais diferenças entre o pós-modernismo e o pós-estruturalismo.

O texto de Ankersmit apresenta pontos interessantes, como, por exemplo, pensar uma maneira criativa, honesta e humilde de escrever a história frente às impossibilidades do conhecimento imediato do passado, isto é, do que de fato ocorreu independente de interpretações – diferente do que a maioria pensava no séc. 19 (e muitos ainda hoje). Entretanto, ele esbarra numa série de dificuldades em estabelecer critérios para o tipo de historiografia que designa como pós-moderna. A mais gritante foi, sem dúvida, a inclusão de autores na lista pós-moderna como Ginzburg, Duby e Natalie Davis, e vertentes como a história das mentalidades (integrada aos Annales).

A micro-história de Ginzburg não rompe com a história social, apenas faz um recorte diferente do objeto de pesquisa, que parte da vida de um indivíduo, de um grupo, de uma obra para entender e descrever a série de relações estabelecidas com um contexto histórico ao qual está ligado. Portanto, não está “desligado” do contexto, tampouco pensa em estudar o particular separado de sua articulação com o universal. A circulação de conhecimento, informação e costumes entre “cultura popular” e “cultura erudita” defendida por Ginzburg pretende desenhar uma totalidade a partir de um fragmento, por isso parte da folha (verde e firme) para compreender os galhos e o tronco, se utilizarmos a metáfora de Ankersmit.[3]

A questão que liga ao contexto histórico também pode ser aplicada à historia das mentalidades, uma vez que esta não rompe com o procedimento, nem com a perspectiva de história do século 19 – vincular pessoa, obra e época: esta última categoria como uma série de acontecimentos ligados por uma relação de causa e efeito. Nesse caso, explicando de maneira bem didática, o método para compreensão do passado é feito a partir de uma descrição geral da cultura em totalidade (de uma classe ou de um grupo numa época e num lugar) para submeter tudo o que é produzido ali como pertencente ao conjunto descrito. Duby, por exemplo, biografa Guilherme Marechal para chegar ao conjunto de pensamentos e comportamentos comuns de uma classe de cavaleiros da Idade Média. Febvre, fundador da Revista dos Annales, já fazia história das mentalidades quando disse que não era possível Rabelais ser ateu no século 16; simplesmente porque as pessoas não se colocavam a pergunta sobre a existência ou não de Deus, os utensílios mentais (nos dizeres de Chartier) da época não proporcionavam qualquer possibilidade de alguém ser ateu.[4] Esse tipo de pesquisa não tem nada de fragmentário, de contingente ou de descontínuo.

Se os pós-modernistas acreditam que a informação significativa produz outra diferente, duvido muito que Ginzburg aceitaria uma interpretação distinta que procure compreender o que aconteceu com seu biografado Menocchio sem levar em consideração dois acontecimentos “macros”, a invenção da imprensa e a reforma protestante (desconstruindo suas análises). Mais do que isso, Ankersmit diz que a história social é essencialista, pois quer reconstruir o passado a partir de evidências, e por isso se distancia do pós-modernismo, porém inclui uma autora da história social na lista dos pós-modernos (Natalie Davis). O mesmo pode se aplicar ao programa dos Annales que prende fazer uma história total ou história síntese (que engloba sociedade, cultura, economia, linguagem, etc.), mesmo escolhendo temas antes não-estudados, concebe a articulação dos mesmos a uma totalidade. Nesse sentido, fica ainda a pergunta: quais são os critérios plausíveis para se definir uma historiografia pós-moderna e quem seriam seus representantes?

Referências:

ANKERSMIT, Frank. Historiografia e pós-modernismo. Revista Topoi, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 2, p. 113-135, mar., 2001.
LYOTARD, François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
RANCIÈRE, Jacques. A poética do saber: sobre os nomes da história. Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, vol. 1, n. 15, p. 33-44, out., 2010.
SADER, Emir. As palavras e as coisas. In: Carta Maior, 22-03-2007.

[1] Para Rancière há um problema sério quando se confunde realidade histórica com verdade histórica, pois a realidade é o que aconteceu de fato, é o passado, seu acesso é (im)possibilitado pela linguagem (imagética, escrita) que mostra e oculta ao mesmo tempo o fato. No entanto, às vezes a interpretação presente no texto historiográfico, que faz uma série de conexões nem sempre necessárias ou inevitáveis, acaba sobrepondo-se à própria realidade, tornando-se mais real que esta, quando, por exemplo, aceita-se uma verdade histórica de um evento e não questiona-se se poderia ter sido diferente ou ocorrido uma outra coisa que não tem nada a ver com o que foi escrito e consentido pela comunidade. A revolução francesa pode ser um exemplo nesse caso, segundo o autor. Ver: RANCIÈRE, J. A poética do saber: sobre os nomes da história. Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, vol. 1, n. 15, p. 33-44, out., 2010. [2] Concordo em certa medida com a afirmação de Ankersmit, sobretudo acerca da escolha dos meios descritivos ou da presença destes de maneira meio que inconsciente feita pela subjetividade do historiador ou do jornalista, por exemplo. Não pude esquecer-me do texto que li recentemente de Emir Sader sobre a escolha estratégica de como contar uma notícia, por mais imparcial que ela possa parecer em sua narração. Mas desconfio se houve algum dia um texto que fosse realmente neutro, talvez por não existirem outros sobre o mesmo assunto ele podia se passar de neutro. Neste caso, ao contrário de Ankersmit que pensa o excesso de informações uma falta de civilização, eu acho mais interessante essa quantidade em abundância das interpretações do que só haver uma que passe a ilusão da realidade tal qual aconteceu. Deixo o link do texto de Emir Sader. Vale muito à pena conferir, até porque se notarem bem o jornalista também defende uma posição bem clara: http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=104 (SADER, E. As palavras e as coisas. In: Carta Maior, 22-03-2007). 
[3] Mais sobre a biografia de Ginzburg em: Da (im)possibilidade de historiar uma vida. 
[4] Essa questão foi discutida em outro texto do blog, chamado "Sobre anacronismo".
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