sábado, 23 de março de 2013

Passado, História, Historiografia e Teoria da História

Buscando satisfazer a curiosidade da maioria dos leitores do blog, que não são historiadores, escrevo esse post com o intuito de traçar uma breve introdução sobre os significados das palavras elencadas no título acima, mais ou menos da maneira como elas são compreendidas pelo conjunto de profissionais da área de História (professores, pesquisadores e estudantes). Frequentemente usados no Tempos Safados, os sentidos de tais conceitos não possuem consenso entre os historiadores. Entretanto, na tentativa de uma explicação didática, descreveremos algumas possibilidades de emprego.

Passado

Em termos gerais, o conceito de passado pode ser compreendido da forma como é expresso pelos dicionários. Designa toda a série de acontecimentos físicos, geológicos, químicos, sociais, culturais, econômicos, políticos, psíquicos, morais, individuais e etc., sejam eles vivenciados, experimentados e/ou sentidos pelos seres vivos ou ocorridos com qualquer tipo de matéria deste planeta: uma chuva, a erupção de um vulcão, a formação ou o derretimento de uma geleira, uma síntese de moléculas, uma formiga carregando uma folha recortada, um golpe de Estado, a invasão de um território, a escritura de um livro, a leitura desse mesmo livro, um bate-papo na mesa do bar, uma partida de futebol, um nascimento, uma morte, uma briga, um pensamento, um sorriso, um aroma, um olhar... Ou seja, tudo o que aconteceu a partir de um corte imaginário que se faz no tempo entre o presente e o passado, entre o agora e o outrora. Não há uma organização natural entre estes acontecimentos, tampouco uma hierarquia de importância entre eles. Pois, embora possamos acreditar que uns dependem de outros, é a mente humana treinada para fazer uma retrospectiva memorial que constrói uma necessidade verossímil entre causa e consequência: sentido. De toda forma, é humanamente impossível recuperar o passado em sua totalidade ou sequer saber e conhecer sobre tudo o que aconteceu. O passado é caótico, em excelência.

História

Comumente, diz-se que a história é a narrativa composta pelos registros e relatos do passado sobre os humanos, e não o passado relativo a quaisquer seres vivos e matérias no universo. Mas há controvérsias, pois, caso contrário ninguém (historiador ou não) escreveria uma História do planeta Terra ou do Universo. No entanto, fujamos dos embaraços maiores e voltemos aos menores, pois nem tudo o que dissemos, no parágrafo anterior, sobre o passado é de concordância de todos os historiadores. Existem muitos pesquisadores que acreditam haver uma sequência causal necessária entre os eventos do passado na qual uns acontecimentos são mais importantes que outros. E que, por isso, o trabalho dos historiadores é descobrir e demonstrar essa sequência através de escassos ou abundantes fragmentos produzidos no passado que chegaram até o presente.

Os historiadores, então, transformam estes fragmentos em documentos (as chamadas fontes históricas) e tentam extrair respostas destes – como numa espécie de interrogação jurídica. Este trabalho é desenvolvido por todos os profissionais da área. Nem o historiador mais ousado defende a possibilidade de produzir história sem fonte. Entretanto, a maneira como esta fonte é trabalhada divide os historiadores em diferentes concepções. Alguns historiadores acreditam, por exemplo, que as fontes históricas permitirão a reconstrução do passado tal qual aconteceu, seja descrevendo-as sem lhes acrescentar nada, e/ou fazendo-as uma crítica interna e externa, e/ou tentando lhes extrair o “não-dito”, e/ou entendendo-as dentro de um processo histórico longo. Outros historiadores dividem passado e história completamente, o primeiro é o que se passou, e o segundo é o que é escrito sobre o que se passou. Não acreditam que seja possível “reconstruir” o passado, mas construir a história sobre o passado. Isto significa que para estes o passado compõe a história, mas não se reduz a ela e jamais pode ser substituído por ela. Por isso, a história é sempre reconstruída, reescrita, repensada.

Historiografia

Suspendamos por um instante a separação que fiz entre passado – relato do que ocorreu com qualquer coisa/ser – e história – do que se passou com os humanos! Historiografia é um termo ambíguo, porque se pensarmos que o passado não existe e que somente o que temos são relatos sobre o passado – isto é, história(s) de humanos ou não –, então, historiografia designa justamente a (1º) escrita da história com seus procedimentos e métodos próprios, e não qualquer relato narrativo oral e memorial.[1] Assim, poderemos separar História de Historiografia. Bom, todavia se nem todos os relatos sobre o passado puderem ser chamados de história, até porque não só os saberes populares, mas também outras áreas do conhecimento constroem estas narrativas escritas e faladas, então pode ser dito que (2º) Historiografia é sinônimo de História – enquanto um conjunto de procedimentos e métodos reunidos com a pretensão de escrever a(s) verdade(s) sobre o passado ou, para ser mais específico, sobre um objeto, um tema, um recorte de tempo que já passou.

Contudo, há outra possibilidade de uso feita pelos historiadores, talvez a mais comum.  Para chegar até ele preciso me esquivar em um exemplo de acontecimento extremamente problemático: A Revolução Francesa. A partir de algum momento depois de 1789 “consolidou-se” uma noção geral de acontecimento da Revolução Francesa. Antes de ocorrer isso houve uma narração escrita ou oral de determinados eventos escolhidos, reunidos e interligados para compor o que conheceríamos mais tarde como Revolução Francesa.  Embora tenha havido inúmeras narrações e interpretações do acontecimento “Revolução Francesa”, hoje quase ninguém discute mais se ela existiu. Assim, há uma “História da Revolução Francesa” partindo do suposto de que ela realmente aconteceu. Constitui-se indiscutível para a academia de História (instituição). Entretanto, é frequentemente discutida a Historiografia da Revolução Francesa em qualquer trabalho que proponha pesquisar e escrever a História da Revolução Francesa, pois, neste caso, a Historiografia (3º) designa todos aqueles trabalhos que se dedicaram à escrita da História da Revolução Francesa e com os quais o pesquisador se vê impelido a dialogar, a ler, a problematizar, a contrapor, a concordar, etc. Isso permite, inclusive, pesquisar e escrever uma História da Historiografia – um campo já existente dentro da universidade.

Quando eu disse que a Revolução Francesa era um acontecimento extremamente problemático, lembrei-me de Jacques Rancière – um filósofo que pesquisa História – advertindo que atualmente tem se confundido, através da historiografia, realidade histórica com verdade histórica. Isto é, pode-se objetar que só é possível reunir, classificar e interligar eventos para formar o que chamamos de Revolução Francesa a partir de uma construção de enredamento apropriado da narrativa literária. Por isso, chamar de Revolução essa série de eventos, na qual os atores históricos não sabiam que estavam fazendo e que teve como desfecho o império de Napoleão, não constitui uma “autoevidência histórica”. Assim, a realidade histórica é a série de acontecimentos do passado que podemos entrever de alguma maneira pelos registros do período. Outra coisa é a verdade histórica que é um consenso provisório (e retórico) formado pelos pesquisadores de história e, geralmente, aceito pela sociedade. A verdade histórica pode ser revogada, desconstruída, reinventada, a partir de novas leituras e interpretações aos registros ou apagamentos e esquecimentos dos mesmos. A própria história está sempre sendo “reescrita”.

Teoria da História

Este termo pode designar tanto (1º) as diversas concepções de movimento da história, caso acreditemos que o passado possui uma direção organizada imanente (princípio) que se desloca através de uma determinada maneira (meio) para um determinado lugar no futuro (fim), quanto (2º) as pesquisas que visam compreender, refletir e problematizar (e às vezes propor) sobre o ofício do historiador, suas ferramentas metodológicas, seus procedimentos de estudo, seus lugares de fala, a relação com seus pares e com a sociedade, a composição de sua narrativa, os conceitos empregados, isto é, tudo o que está relativo aos modos pelos quais os historiadores produzem/escrevem história. Neste último caso, um trabalho de Teoria da História pode focar sua pesquisa a um autor, uma obra, uma revista de história acadêmica, uma corrente de pensadores, uma escola de historiadores, etc.

No primeiro caso, a Teoria da História, frequentemente, coincide com uma Filosofia da História, que é, grosso modo, um arranjo metafísico, um sistema de pensamento que defende a existência de um movimento, progressivo ou cíclico, único e totalizante sobre todo o passado. Pode ser uma marcha para um fim glorioso, a qual lembra bastante o princípio do cristianismo de juízo final. Pode ser uma marcha para um cataclismo (para uma desgraça), um choque de civilizações que ocorre(rá) de tempos em tempos. Mas também pode ser mediado pelo princípio do acaso, da contingência, de que a história não caminha para nenhum lugar definido, ou de que ela não caminha, apenas acontece e se vivencia. Para escapar dessa coincidência de sentidos entre Filosofia e Teoria da História, eu prefiro empregar o termo Historiografia aqui no blog quando quero descrever as reflexões desenvolvidas sobre a pesquisa e escrita da história, mas também para me referir ou percorrer a história da historiografia. 

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Estou certo de que deixei muitas lacunas durante o texto, sobretudo porque preferi não usar referências direcionadas para orientá-lo a fim de deixar a linguagem mais clara e a didática mais eficaz. Espero ter ao menos tirado algumas dúvidas maiores e instigado a curiosidade para o aprofundamento de quem se interessa pelo tema. Se quiserem fazer perguntas sobre podem usar o espaço aqui embaixo que tentarei responder. Deixarei abaixo uma lista de obras importantes para aqueles que querem se aprofundar no tema, mas que não foram necessariamente usadas para embasar o meu post.

Recomendações bibliográficas:

BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BRAUDEL. Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2000.
DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru-SP: Edusc, 2003.
DROYSEN, Johann Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2009.
JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Editora Contexto, 2001.
HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LANGLOIS, Charles; SEIGNOBOS, Charles. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946.
LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL, Jacques (Dir.). A nova história. Coimbra: Almedina, 1990.
MALERBA, Jurandir (org.). Lições de história. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da história. Campinas: Pontes/Educ, 1994.
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Cadernos da UNB, 1982.
______. O inventário das diferenças. São Paulo: Brasiliense, 1983.
WHITE, Hayden. Metahistória: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1995.

[1] A memória é outra via de acesso ao passado, às vezes usada como documento pela a história, mas que não pretendo tratar neste post para não embaralhar ainda mais a cabeça dos leitores (e nem a minha).

terça-feira, 12 de março de 2013

Teoria, prática e limite na “operação histórica” de Certeau

Historiador francês do século 20, erudito e jesuíta, Michel de Certeau é um nome bastante conhecido na academia. Em 1974, ele publicou um texto chamado “A operação histórica”, que pela densidade e aridez linguística tira o sono de muitos estudantes de História. Apesar de Certeau ser bem recebido por historiadores de diferentes perspectivas teóricas, seu texto, ainda que lido com frequência, é pouco “refletido” e colocado em prática. O post que se segue pretende ser uma resenha comentada de tal texto.

Do que trata o texto de Certeau em linhas gerais? O autor pretende situar e descrever a particularidade do ofício do historiador através de uma reflexão teórica sobre o lugar social a partir do qual o pesquisador de história atua e escreve, como também por meio de uma descrição das práticas, das técnicas, dos métodos e dos procedimentos utilizados no trabalho histórico. Isto é, o que faz o historiador quando “faz” história? O aspecto mais interessante a se perceber é que Certeau usa o processo de análise comum a um trabalho histórico aplicando seus métodos ao próprio “trabalho do historiador”. Quer dizer, é como se um historiador historiasse o trabalho de outro historiador, descrevendo e pensando os bastidores da produção da “obra” historiográfica. O primeiro passo, nesse caso, é ligar as práticas e as ideias a um determinado lugar. Para Certeau esse é um gesto típico de historiador, para o qual compreender é estabelecer uma análise localizável. Caso contrário “cederia a um álibi ideológico se, para estabelecer o estatuto do seu trabalho, recorresse a uma verdade formada e recebida fora dos caminhos pelos quais, em história, todo sistema de pensamento está referido a ‘lugares’ sociais, econômicos, culturais, etc.” (1988, p. 17).

O lugar social do historiador não é exclusivamente um ambiente físico – uma instituição acadêmica isolada, por exemplo. Mas a comunidade de pesquisadores, a profissão, o posto de estudos e de ensino – uma “área” que está submetida a opressões e ligada a privilégios, formando uma particularidade. É a partir desses lugares e envolto a tais pressões que os métodos de trabalho são fabricados e instaurados. Quando uma pesquisa não atenta a tais regimentos, procedimentos e métodos específicos desse lugar social, (in)variavelmente ela é marginalizada ou excluída. Podemos recorrer ao exemplo de diplomatas ou jornalistas que escrevem sobre história. Alberto da Costa e Silva (2006), que escreve sobre história da África, é relativamente bem recebido por historiadores devido seus métodos e seu rigor próprios de uma pesquisa acadêmica, enquanto isso, Laurentino Gomes (2010), que versou sobre a história da Independência brasileira através de uma narrativa importada do romance literário, é totalmente desconsiderado pelos historiadores, porque apesar de se apoiar numa série de fontes históricas, não usou os critérios de pesquisa adequados, nem uma construção textual semelhante a que é empreendida no lugar social do historiador.

O trabalho do historiador, tendo o texto como produto final, contém o não-dito, e este é importante para entendermos a construção da pesquisa. A tal história “objetiva” do século 19 e sua concepção do fato histórico preconcebido foi desmontada quando se colocou a objeção de que a subjetividade do historiador interferia na escolha do assunto e dos “fatos”. Entretanto, a defesa da neutralidade da ciência à política garantiu por certo tempo que a “pluralidade de escolhas dos intelectuais” fosse a única aceita. Se por um lado essa divisão (ciência – política) colocava um limite a pretensão do saber, por outro ela tornava incontrolável a um grupo de pessoas. Contudo, no século 20, introduziram-se as técnicas de uma disciplina e os conflitos sociais no exame de uma estrutura epistemológica. Sobretudo, porque a função social da história está ligada ao grupo de historiadores, às práticas e leis do grupo e às intervenções no jogo de forças públicas, na política.

Assim, a instituição histórica é o produto de um lugar. Tais lugares que até os séculos 17 e 18 eram ainda espaços em branco marcam a origem das ciências modernas. Foi a partir desse período que surgiram assembleias, redes de correspondência e círculos de sábios formando um conjunto de pessoas e práticas que constituiriam esses lugares. Com Bacon e Descartes houve uma despolitização dos saberes, um recuo nos negócios públicos e religiosos, instituindo um lugar científico. Deste modo, fundou-se uma instituição social associada a esse novo saber – uma sociedade de estudos, com linguagem própria, que se renova. Ainda que alguns pesquisadores defendam que o texto e o ofício científico são suficientes em si mesmos, obedecendo a regras próprias, isto não os impede de articular sobre o que eles não dizem – sobre o corpo de pesquisadores e práticas que falam a sua maneira. Há, portanto, uma relação de comunicação com esse lugar de onde o texto é produzido.

Michel de Certeau (1925-1986)
Desde o século 19 na França existe uma concepção de que a teoria não deve expressar o que se faz na prática. Sobre tal concepção Certeau escreve o seguinte: “Assim, falar-se-á de ‘métodos’ mas sem o impudor de evocar seu valor de iniciação a um grupo (é preciso aprender ou praticar os ‘bons’ métodos para ser introduzido no grupo), ou sua relação com uma força social (os métodos são meios graças aos quais se protege, se diferencia e se manifesta o poder de um corpo de mestres e de letrados). Estes ‘métodos’ esboçam um comportamento institucional e as leis de um meio (1988, p. 24). Contudo, o autor aponta que isso não invalida o saber científico. Pelo contrário, as pessoas que pensam assim, na verdade, defendem então uma ciência neutra ou “autônoma” em relação à sociedade. Não há, para Certeau, uma separação entre história das ideias científicas e uma análise social da ciência. Elas estão imbricadas num encontro entre teoria e prática. Da mesma forma, a expressão “os historiadores na sociedade” demonstra que o pesquisador é um ser que vive, pensa, fala, escreve a partir de relações sociais, culturais, políticas, econômicas, linguísticas, sendo por isso influenciado pelas mesmas. Para Certeau, por exemplo, não é por acaso que no período entre guerras a história social teve uma virada à economia, trata-se da “influência” da crise de 1929, por outro lado, a ascensão de uma história cultural está diretamente relacionada à expansão da Indústria Cultural e das mídias de massa. Portanto, o lugar é o que permite e o que interdita o que pode ser dito. O lugar é uma condição para que dela surja alguma fala com relação ao corpo social, e a interdição são as impossibilidades de falar relativas aos limites do próprio corpo social. Talvez por isso os trabalhos de história sobre literatura, de certos autores, encontrem tantas dificuldades em adestrar os enunciados (que mais parecem sonhos) para exaurir significações de realidades sociais já aceitas.

Após discorrer sobre o lugar social, finalmente Certeau fala das práticas historiográficas. Estas também possuem relação direta com o lugar social. Isto é, as técnicas de produção da história são fabricadas a partir de um lugar e de um tempo específicos. O estabelecimento de fontes ou a redistribuição do espaço é uma operação técnica na qual o historiador transforma um objeto em documento através da seleção e da reunião. Esse exercício pode servir tanto para manter seguro o poder de uma dinastia, por exemplo, expressando que alguns objetos reunidos num arquivo são a verdade da tradição de um povo como acontecia nos séculos passados, quanto para estabelecer um quadro estatístico através do computador selecionando diversos conflitos e guerras após a criação da ONU em 1948 com o intuito de desmontar um “modelo discursivo hegemônico” de que a fundação do órgão internacional promoveu a paz entre as nações.

No primeiro caso, funciona um tipo de história que pretende excluir acidentes, descontinuidades, diferenças e exceções em prol de um projeto político coeso e conservador. No segundo, uma história que faz aparecer as diferenças mostrando o desvio ao modelo – antes essa atividade historiográfica agia para desestabilizar ou apontar os limites de um modelo criado pela história tradicional, atualmente ela pode construir modelos a partir de um a priori para sua própria pesquisa, depois aferir ou testar os limites desse modelo mostrando as diferenças e atribuindo posteriormente significado aos resultados. Contudo, tanto uma operação histórica quanto a outra promove uma articulação entre natureza e cultura, porque transforma objetos naturais em culturais, modificando assim a paisagem. O passado deixa de ser um dado e se torna um produto. Um exemplo hipotético: pode ser natural para um homem chinês comer gafanhotos e escorpiões, ele nem reflete sobre seu ato alimentar, porém o historiador pode usar esse “dado” como “documento” mostrando que a prática de comer insetos/aracnídeos é recente na China e remonta um período de conturbação política em que a população passava fome.

Para Certeau, a história não tem mais a função social de prover a sociedade de representações globais de sua gênese, de mostrar o Espírito da Época ou a mudança oculta no corpo social, tampouco a função totalizante de dizer o sentido à sociedade como fazia no século 19. Agora o historiador trabalha sobre o limite, experimentando os modelos sociológicos, econômicos, psicológicos e culturais através de testes de (in)validades. A concepção do “fato” histórico, que se colocava às vezes como verdade supressora de outros fatos e de outras verdades, uma vez desmontada, volta à tona (com Paul Veyne) na medida em que ao invés de comprovar um modelo, como era antigamente, agora promove um desencaixe, não é mais totalidade, mas diferença. Sendo assim, a história tendo especialidade no particular concebe a posição deste enquanto limite do pensável. Através do particular o historiador pode demonstrar o limite do generalizável introduzindo interrogações e significações referentes aos atos, aos indivíduos e a tudo que foge ao discurso e ao saber – assim como fez Veyne (2010) que, apesar de lançar inúmeras hipóteses, não soube explicar por que o imperador Constantino se tornou cristão em 313. Por último, para Certeau a história deve introduzir-se no passado a partir de uma diferença, de uma alteridade. “[...] o passado é, inicialmente, o meio de representar uma diferença. A operação histórica consiste em recortar o dado segundo uma lei presente, que se distingue do seu ‘outro’ (passado), distanciando-se com relação a uma situação adquirida e marcando, assim, por um discurso, a mudança efetiva que permitiu este distanciamento” (1988, p. 40). Ao falar do passado como diferença, a história mostra seu presente no qual é escrita, mostrando uma ausência no passado e um limite no interior do presente do qual é possível ultrapassar.

Pitacos safados!

Exposição de Fernando Pessoa(s)
O texto de Certeau é, além de instrutivo, propositor. Sua proposta de praticar uma história usando o particular como limite-teste para as generalizações ou as formalizações me parece uma maneira interessante de usar essa arma contra o próprio Certeau. Quando ele escreve que o modo de procedimento próprio da pesquisa em história é ligar as ideias, as coisas, os objetos aos lugares ele está corroborando numa cristalização de como deve ou não trabalhar os profissionais da área, como se os métodos do historiador não pudessem ser outros já que acompanham a descontinuidade do tempo. Quer dizer, se resolvo analisar um livro escrito por Fernando Pessoa, esta só é uma pesquisa histórica (verdadeira sobre o passado) a partir do momento em que conecto as práticas, as ideias, os instrumentos linguísticos usados pelo autor a um determinado lugar social? Um conjunto de escritores? Uma escola literária? Uma universidade? Uma cidade? Um país? Uma época (que em vez designar o tempo geralmente é descrita como um ambiente)? Sabemos que Fernando Pessoa tinha mais de cem heterônimos, todos eles diferentes, com pensamentos distintos, estilos de linguagem diferentes, nesse caso como juntar tudo numa coisa só e ligar esta coisa a um lugar? Como apontou Bourdieu (1998), será que isso não é utilizar a ilusão de um nome próprio para conferir sentido e coesão? Talvez isto demonstre apenas que o “modelo” da operação histórica possui um limite e ele seja, acertadamente, o particular.

Referências:

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J. ; FERREIRA, M (Coord.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 183-191.
CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques (comp.). História: novos problemas. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1988, p. 17-48.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
GOMES, Laurentino. 1822. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.  
VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
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segunda-feira, 4 de março de 2013

Fim da escola: o começo da liberdade? Notas de Durval M. Albuquerque Júnior

O historiador brasileiro Durval Muniz Albuquerque Júnior argumenta que se concordarmos que atualmente vivemos uma condição histórica pós-moderna é preciso então que repensemos as instituições sociais criadas durante a modernidade e que ainda vigoram. O pressuposto é que a modernidade (do séc. 18 e 19) fundou determinadas instituições sociais baseando-se num projeto político-filosófico que não nos diz respeito mais.[1] No âmbito educacional, qual projeto seria esse? A educação das pessoas para que elas atingissem um grau superior de racionalidade tal qual fosse possível sua emancipação e autogoverno, ou, sendo mais otimista, que nossas relações sociais passassem a ser baseadas na liberdade, igualdade e fraternidade. Isto nada mais é que a tentativa da criação de sujeitos orientados pela razão, que supostamente levaria a sociedade a uma marcha ao progresso tecnológico, científico, crítico e social em todos os sentidos. Esses projetos políticos, filhos do Iluminismo, preencheram as agendas tanto de liberais, quanto de socialistas, comunistas, anarquistas e etc. A escola dentro do projeto liberal ou humanista tende, em tese, a este ideal.

Entretanto, alguns acontecimentos históricos como as duas grandes guerras e a ascensão dos regimes totalitários (provocando especialmente o holocausto) mostraram que a agenda moderna, que colocava uma fé demasiada na “racionalidade humana” para atingir um progresso ininterrupto ou chegar a um final “feliz” da história, tinha formulado mal seus cálculos. Diante disso, cabe-nos refletir sobre o papel que a escola cumpre atualmente e o que ela precisa mudar para continuar funcionando; já que instituições sociais criadas na modernidade (como o manicômio e a prisão) têm sua validade questionada na pós-modernidade. Cabe-nos, igualmente, repensar o trabalho do professor enquanto sujeito que pretende formar alunos, enfrentando uma crise da escola e uma desvalorização profissional que não deixa de ser o reflexo do desencaixe dos mesmos na atual sociedade.

Neste sentido, Albuquerque Júnior faz inicialmente uma historicização da criação da escola na modernidade. Vinculada a seu projeto humanista e liberal, seu papel era tornar o homem dono de si e do mundo, um cidadão apto para atuar e trabalhar dentro de uma ordem estabelecida burguesa, respeitar normas e valores comuns, hierarquias, autoridades e assimilar saberes instrumentais. O nascimento da escola coincide com o solapamento da educação da criança antes centrada na família. Isto é, neste momento, o Estado toma da família o papel de educar e formar cidadãos. É mais fácil desde cedo introjetar as maneiras pelas quais as pessoas devem se portar em adequação às regras coletivas (governamentalidade), formando indivíduos massificados. O saber escolar é um saber elitizado, pouco afeito às realidades sociais das classes baixas. Com isso, é inevitável o surgimento de diversos conflitos dentro do ambiente escolar na medida em que a escola toma o papel de educar inclusive os filhos das classes pobres. As experiências de vida dessas pessoas se chocam com os valores e comportamentos transmitidos pela escola, sobretudo, porque a escola foi uma instituição social inicialmente projetada para preparar a elite dominante para ocupar os cargos de administração do Estado. Já no século 20, ela precisou formar também uma mão-de-obra especializada para prover as empresas capitalistas. A partir de então, ela passa a funcionar como uma empresa preocupada, em primeiro lugar, com os lucros. Os alunos, da mesma forma, apropriam-se de igual maneira. Concluem um curso somente para obter um diploma que vai permiti-los ingressar ao mercado de trabalho, sem sequer se preocuparem com a instrução reflexiva e crítica que o saber pode lhes proporcionar.

Albuquerque Jr. (1961)
No Brasil durante muito tempo a escola serviu apenas a uma elite branca e rica. Negros, mulheres e pobres eram excluídos. Somente após os anos 50 a educação foi se abrindo para a massa e chegando à zona rural. Diz-se que a qualidade da educação tem piorado desde então. Como já foi exposto acima, isso pode ser explicado pelo choque entre a particularidade dos saberes escolares e a heterogeneidade (diferentes concepções de mundo, valores e perspectivas diversas) do público atendido. Por outro lado, numa sociedade informatizada como a nossa, na qual há uma circulação veloz de informação e de conhecimento através das mídias (rádio, TV, Internet), a escola vai perdendo seu poder de sedução, até mesmo para muitos professores que a enxergam agora como uma mera obrigação.

Mas será mesmo que a escola está em crise? Foucault diz que desde a inauguração da prisão, ela é contestada sobre sua funcionalidade e eficácia. A instituição prisional é fundamentada no discurso segundo o qual promoverá à ressocialização e à recuperação de presos, mas para o autor a função dela não é a que está expressa em tal discurso - e é por isso apesar de ser “ineficiente” ela continua funcionando. Entre outros, o papel da prisão não é para os que estão lá dentro. Mas para os que estão de fora. Para impor medo aos cidadãos que lhe são exteriores. Neste sentido, será que, apesar de todo o discurso humanista, a função da escola não é também a de estabelecer hierarquias e autoridades através da coerção e perpetuar o modelo social excludente? Seria uma ingenuidade nossa não perceber esta intenção política? “Realmente, parecemos acreditar que a educação escolar resolveria os problemas sociais, os problemas políticos, os problemas de cunho moral e ético pelos quais passamos. Da mesma forma que receitamos o trabalho como um poderoso antídoto contra, o que consideramos ser, os problemas de nossa sociedade, sempre fazemos o mesmo com a educação. Embora saibamos que a escola que temos não agrada a ninguém que está dentro dela, continuamos contraditoriamente achando que ela é a solução para os problemas de quem dela está excluído” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 13).

Neste sentido, Albuquerque Júnior apresenta uma proposta radical aos professores. Estes devem questionar a própria escola, o ensino escolar, a escolarização e a noção de formação escolar que é naturalizada. Esse seria o primeiro passo para que as práticas e as maneiras de ensinar sejam transformadas. Aliás, a própria ideia de “formação” deve ser aí problematizada, pois ela foi transportada da história natural evolucionista para o campo humano. Segundo Albuquerque Júnior, deve ser recusada “a idéia de que cabe ao processo educacional, que cabe à escola, e nela ao professor, dar forma a esta matéria disforme, esta matéria plástica, esta matéria infante, que é a criança. [Pois] A escola seria assim lugar de modelagem de corpos e espíritos, de construção de perfis, de personalidades, de caracteres, de almas e mentes” (p. 08). Este pressuposto informa sua concepção conservadora que busca adequar os sujeitos a um processo já previamente estabelecido em que eles apenas ocupariam funções para fazer girar a máquina; posto que formar nada mais é que colocar um corpo em uma forma pronta.

Por outro lado, “embora muitas pedagogias que se nomeiam críticas tenham pensado a instituição escolar como um lugar onde se poderiam formar agentes críticos da realidade social, sujeitos descomprometidos com a ordem vigente, sujeitos capazes de transformar a realidade social, esbarram na própria aporia de se pensar uma pedagogia crítica: uma pedagogia crítica é possível? Como uma maquinaria de práticas e discursos que visam enformar ou formar alguém, como um conjunto de prescrições pode levar alguém a ser crítico, se a crítica nasce da possibilidade de ser deseducado, mal educado, da capacidade de se deformar, de propor e adquirir novas formas de subjetividade em descompasso com as modelizações subjetivas que a escola e os modelos pedagógicos nos tentam ensinar?” (p. 09).

Sob esse modelo homogeneizante “a escola está se tornando um lugar de zumbis, de professores e alunos autômatos, que não sabem direito por que estão ali, mas que apenas executam rotinas, como peças de uma grande máquina, que assim como na fábrica moderna, não sabem sequer qual o produto final que estão produzindo. A desmotivação, a falta de adesão às atividades escolares, a falta de se colocar à disposição para o que aí ocorre, demonstram claramente esta robotização da atividade escolar. [...] Os agentes da vida escolar adoram o aluno quieto, disciplinado, certinho, autista, catatônico, deserotizado. O aluno padrão, que não se singulariza, aquele que não se importa de ser apenas mais um, uma cifra, um número de matrícula, um nome a mais na lista de chamada. Os agentes escolares adoram alunos que não querem aparecer, que não querem se destacar, ou que se destacam por serem obedientes, por seguirem todas as ordens, por não reclamarem, por serem bem adaptados à cultura escolar” (p. 10-11).

Por isso, em vez de um professor que forme, é preciso um que deforme, que instaure inclusive um questionamento sobre os códigos sociais de sua própria formação, problematizando-os, aferindo seus limites. Um ensino que deforme colocará em xeque os valores preconizados no passado, desconstruirá verdades absolutas e naturalizadas, promoverá dissensos e rebeldias, abrirá o “eu” para invenção e para o cuidado de si a partir de seus próprios valores e escolhas livres, permitirá a coexistência e abertura ao diferente, ao “outro”, desestabilizará hierarquias e continuidades, deslocará o professor do centro do saber, colocando em seu lugar o aluno, estabelecendo assim uma relação na qual um aprenderá com o outro. 

Contudo, isso não acontecerá simplesmente com o aumento do salário dos professores, tampouco com a instrumentalização tecnológica e estruturação material do ambiente escolar, pois uma escola não é feita apenas de paredes, tetos, quadros, gizes e computadores. Pelo contrário, existe “uma cultura, um conjunto de concepções filosóficas, políticas, pedagógicas, éticas, econômicas, jurídicas que a instituem e constituem. A escola é uma rede de relações humanas com todas as dimensões que estas compreendem” (p. 12). E, portanto, uma simples reforma não seria suficiente para promover uma transformação completa. Enquanto instituição social, a escola deveria desaparecer. Refletir sobre esse fim é a condição de criar novas maneiras de promover o ensino.

Resenha de:
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Por um ensino que deforme: o docente na pós-modernidade. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/por_um_ensino_que_deforme.pdf Acesso em: 02 de fev. 2013.

[1] Os projetos político-filosóficos que fundaram diversas instituições estão diretamente relacionados a questão dos relatos de legitimidade tratados no post O (des)embaraço da ciência em Lyotard.
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