segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Realismo do nada e o fim da política: niilismo atual segundo Rancière

“Irmãos, a terra onde ancoramos não é a Terra Prometida onde devem se realizar as maravilhas de Icária; nossos modestos trabalhos nem mesmo representam seu esboço e, contudo, Icária existe. A Icária orgânica com seu regime comunitário, o sistema de igualdade, a ordem, a harmonia, a poderosa concentração de forças e de aptidões de cada um concorrendo para a felicidade de todos; ela existe finalmente, com sua incessante tensão para o progresso material, intelectual e moral pelo trabalho, o estudo e a prática da Fraternidade”.

Antecipação de Icária por Prosper Bourg, joalheiro, poeta e cantor. In: Le Populaire, 4 nov. 1849 (apud RANCIÈRE, 1988, p. 354).

Utopia: fundando Icária

Em meados do século 19, em plena efervescência do movimento socialista no mundo, um grupo de operários franceses viaja para a América a fim de fundar Icária. Icária é um lugar num livro, Voyage en Icarie [1840], do escritor Etienne Cabet. Antes de perceberem a dessemelhança entre o matagal que lá encontram no fundo do Texas e a descrição paradisíaca do livro, eles dizem “Icária existe pois está em nossos corações”. Desde então os homens de ciência e os partidários de um socialismo científico zombam destes sonhadores. Mas aqueles que zombaram, hoje zombados são. “Ah, esses ingênuos”. Não há socialismo que resista a um século e meio de história, camarada. Há o socialismo real, mas este está longe do “utópico” projetado, por exemplo, pelos cientistas do marxismo. Oito anos após A noite dos proletários [1981], Rancière reflete sobre Icária num texto em que relaciona política e historiografia ao niilismo contemporâneo: à sanha daqueles cuja teoria é assinalar o fim e o desaparecimento de algo que, segundo os mesmos, nunca começou ou apareceu. Neste post escrevo sobre o enunciado do fim da política.

A familiaridade do enunciado niilista do fim da política e da lógica discursiva da real política (Realpolitik) não é mero acaso. Ambas estão prontas para decidir que não há nenhuma decisão a ser tomada. O mercado já decidiu antes: questão pragmática. Temos que adequar a administração das coisas às demandas da esfera econômica, dizem. Há uma necessidade que não pode ser ignorada, asseveram. A política é substituída pela economia. Como queriam os liberais. Como queriam/previam os comunistas da ciência de Marx e Engels. A despeito da comemoração vitoriosa da democracia representativa do mundo capitalista sobre o totalitarismo (leia-se aqui bolchevismo soviético), o Ocidente tomou para si o princípio do inimigo outrora derrotado. Impondo à coesão social a necessidade do desenvolvimento das forças produtivas ou, em outras palavras, dizendo ser preciso primeiro fazer crescer o bolo para depois reparti-lo. “Sob o termo consenso a democracia é concebida como o regime último da necessidade econômica. Um certo marxismo tornou-se assim a legitimação última da ‘democracia liberal’”, aponta Rancière (1996, p. 367).

Viajemos à Grécia antiga. A decisão que antecede à possibilidade do litígio político e de sua operação essencial, isto é, a anarquia, dissipa a política em seu sentido mais latente senão caracterizador. Se, como escreve Platão, Sócrates é o único ateniense a fazer política, aquele que faz “política de verdade”. Então a política grega, obviamente alheia de Sócrates, é para Platão um mau começo, um começo sem arkhé (o princípio que governa). Esta an-arkhé da política leva dois nomes bem conhecidos: demos e democracia. O primeiro de uma unidade que não é una. O segundo de um exercício da política que não é o funcionamento de nenhuma arkhé. Platão resume estas à insensata decisão da assembleia que agrada ao povo. A boa política ou a política verdadeira seria aquela cuja ação faz a comunidade basear-se em sua própria medida: o consenso. Em outros termos, o fim da má política é o fim de toda a política. Já Aristóteles, não. Este não quer exterminar a má política porém regulá-la. Quer que o povo veja e reconheça seu poder, aceite a distribuição e não coloque o litígio. Deste modo, aristotelicamente a “melhor democracia” será aquela em que o demos for menos capaz de coincidir com ele mesmo na assembleia. É o mesmo regime em que o povo está ocupado demais com seus afazeres para participar de alguma decisão nessas câmaras do poder público (RANCIÈRE, 1995, p. 231).

Para Rancière, a política é paradoxal. O fim da política é a regulação contínua de seu duplo nascimento. (1º) Há política porque há demos, o dispositivo de uma esfera de aparência do povo, de uma conta ímpar que faz valer a maioria pelo todo e os pobres pela comunidade e de um litígio ligado ao nome do povo. (2º) E há política – uma arte e uma ciência, talvez até uma filosofia política – porque há o pensamento e uma vontade de verdade, de uma medida e de uma unidade da comunidade que substituem a anarquia democrática. O paradoxo da política é portanto a inclusão de seu fim.  

Tal paradoxo é a condição que a mantém viva. Sua morte ou seu fim é a contraposição de sua aparência com sua verdade científica. A metapolítica vem ceifar a política quando denuncia o desvio do povo de si mesmo como sinal de sua não-verdade. Haja vista que o povo nunca coincide com a arkhé da comunidade, há duas maneiras de praticar esta anomalia: a política democrática e a metapolítica científica. Enquanto a política democrática sabe desta dinâmica e a usa para jogar, para mostrar o desvio e o dano, exigindo uma reparação qualquer (reivindicação); a outra, a metapolítica científica, usa este desvio como o segredo que seu saber vem descobrir e com isso se impor, arbitrando e dando fim ao jogo.

Isto é, a política democrática trata a diferença do povo a si mesmo através do litígio. Não há exatamente uma necessidade de ensinar ao interlocutor a diferença entre o fato e o direito, o formal e o real, o cidadão ideal e o homem rico ou miserável. Estas coisas são tratadas sob sua redoma (a política). Por outro lado, a metapolítica-social científica, cuja versão mais acabada é o marxismo, apesar de também possuir lugar na diferença do povo consigo mesmo, interpõe tal diferença como segredo. Segredo este que, de certa forma, a política democrática faz vistas grossas para continuar jogando. A metapolítica científica põe um verdadeiro povo como verdade oculta do povo aparente e se institui, ela mesma, como o saber dessa verdade oculta. A partir do sintoma entre o real e uma aparência, o real precisa operar a supressão da aparência. Ou seja, o sintoma desta não-verdade, é a diferença do povo soberano consigo mesmo.  

O litígio como sintoma ou sintoma como litígio? Enfim, esses contrários se juntam na era revolucionária: tanto o movimento operário e social quanto o socialismo foram feitos com estes dois procedimentos. Por um lado, a política democrática interpreta a diferença no sentido da ação que dá presença a um texto; por outro, a metapolítica científica interpreta como sintoma essa interpretação teatral. “A conjunção abarca uma representação do tempo: um tempo orientado, em ambos os casos, pela realização imanente de seu fim, seja este o cumprimento da promessa democrática ou o desencanto de seu devaneio, o telos visado pelo tratamento democrático da diferença ou do fim da utopia. E o conceito moderno de História é o conceito da unidade dos dois, de um movimento e de uma ciência”, escreve Rancière (1995, p. 235).

Existem pelo menos duas versões deste tema do fim. A primeira é a hegeliana-escoteira, representada da melhor forma por Francis Fukuyama. Nela o fim aparece como triunfo planetário da democracia, capaz de prover comida para todos e também de satisfazer o desejo de reconhecimento com o qual o todo se identifica. E a segunda é a versão realista do fim do século 20. Esta, em vez da realização do fim (de maneira objetiva), apresenta a ausência de todo fim, de todo e qualquer telos da História, o fim das políticas de telos e de suas promessas. Este nada mais era, segundo tal versão, do que uma aparência cuja existência veio suprimir em algum momento a própria aparência, uma mentira que veio desvelar a mentira e levar a política a sua verdade. O exemplo principal está em François Furet, cuja obra sobre a Revolução Francesa nos dá a notícia de que tudo tratou-se de uma ilusão. A ilusão que nos fez pensar esta revolução como o começo de um tempo. Porém se este tempo estava destinado a professar a verdade da revolução, esta verdade é sua ausência ou, melhor dizendo, sua inexistência. “A democracia excepcional hoje teria esgotado o ciclo de seus mitos e voltaria a encontrar o comum da democracia, a democracia normal ilustrada pela tradição anglo-americana” (RANCIÈRE, 1995, p. 235).

Assim, a democracia normal seria a real, na medida em que o povo não tem mais aparência de povo. Não tem litígio. Caímos na era do realismo: na qual as aparências não se voltam a mais nenhum outrem para serem suprimidas. “Anulação da não-verdade que não entrega mais verdade”. Por fim, o fim das ilusões de esquerda. Mais do que isto, a repetição do cenário em que cada força faz o contrário daquilo que pensa fazer, como ficou consagrado no 18 Brumário de Luis Bonaparte de Marx.

“A lógica marxiana do hieróglifo, que chama outra leitura do sentido e da história, tornou-se a prova por ausentamento do sentido. O realismo se gaba de ter suprimido as existências inexistentes, proclama o reino das coisas sob as palavras, sem as palavras. Mas as coisas sem as palavras são o inominável ou o impredicável, o visível exibido em toda parte que não entrega mais nenhum sentido senão o do fim. A retirada das palavras revela-se a retirada das coisas. Exibido em toda parte, o visível deixa com isso de valer como prova ou objeto de julgamento, como poderia ilustrar o estranho argumento do advogado dos policiais espancadores de Los Angeles diante do filme acabrunhador de uma testemunha do acontecimento: o filme, afirmaram eles, exprimia a realidade tal como a testemunha a percebera. Não exprimia o real dos policiais empenhados na ação” (RANCIÈRE, 1995, p. 237).

O realismo é a supressão do jogo da aparência e do real. Nesta casa onde a política se entrelaçava com seu fim. O que se opõe a este jogo é a submissão do real a categoria do possível. Política do possível: o realismo da ultra-política. O realismo não é o partido do real, mas do possível. Ele proclama a caça às entidades inexistentes, aos mitos e às utopias. Mas o que ele quer é o próprio real conforme a factualidade do “já existe” e o fim do acontecimento. A subtração das novidades cujo resultado é zero. O nada.



Referências:

RANCIÈRE, Jacques. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras/ Brasília: Ministério da Cultura/ Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, p. 367-383.
RANCIÈRE, Jacques. Enunciados do fim e do nada. In: Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
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segunda-feira, 7 de setembro de 2015

7 de Setembro: independência aos gritos ou a invenção de um marco


"A chegada de despachos de Lisboa que revogavam os decretos do príncipe regente, determinavam mais uma vez seu regresso a Lisboa e acusavam os ministros de traição deu alento à ideia de rompimento definitivo. A princesa Dona Leopoldina e José Bonifácio enviaram às pressas as notícias ao príncipe, em viagem a caminho de São Paulo. As recomendações ao portador de que arrebentasse uma dúzia de cavalos se fosse preciso, para chegar o mais rápido possível, indica o interesse de José Bonifácio em apressar a independência e fazer de São Paulo o cenário da ruptura final.

Alcançado a 7 de setembro de 1822, às margens do Riacho Ipiranga, Dom Pedro proferiu o chamado Grito do Ipiranga, formalizando a independência do Brasil".

Boris Fausto, História do Brasil, 1995, p. 134.

Assim, num livro didático destinado a estudantes do ensino médio, das universidades e “com esperança de atingir o público letrado em geral”, é descrito o marco da independência do Brasil por um dos historiadores brasileiros de maior renome. A cena, cuja alusão aparece inclusive no início do hino nacional, tornou-se recorrente na maior parte da historiografia sobre o período. Sabe-se que os governos do século 19 se utilizaram de muitos recursos para forjar uma identidade nacional, como símbolos materiais e imateriais capazes de fortalecer o nacionalismo e instituir o Estado-Nação. Então cabe perguntar se este evento teria mesmo ocorrido. Nestes tempos de império do meme e do humor, outra versão do episódio ficou famosa. Aquela em que Laurentino Gomes, um jornalista produtor de livros de romance histórico, vende a imagem de Dom Pedro, montado numa mula e não em um alazão reluzente, voltando de São Paulo e parando a cada 15 minutos, nas margens de qualquer córrego, por conta de uma diarreia homérica.

A despeito destas versões, nem a epopeia nem a comédia parecem sobreviver ao contraste com a pesquisa documental sobre o episódio. Simplesmente não há documentos confiáveis sobre tal. Pelo menos esta é a conclusão do artigo de Maria de Lourdes Viana Lyra, publicado na Revista Brasileira de História, em 1995, do qual faço resumo neste post. Tratado como um marco fundador da nacionalidade brasileira desde 1829, a autora pretende informar a seus leitores sobre a construção da memória do Sete de Setembro. Aqui interessa saber como e quando o Grito do Ipiranga virou símbolo da proclamação de independência. Adiantando: provavelmente no momento em que se precisou gritar, às vezes sutilmente, para garantir a boa imagem do imperador como herói e imprimir na alma dos brasileiros a identidade da nação.
   
Obra "Independência ou Morte" (1888) do artista Pedro Américo. Foi encomendada pela Família Real com objetivo de homenagear a monarquia, encontra-se em São Paulo no Museu do Ipiranga ou Paulista.

Conjuntura histórica da independência

A partir de 1808 o Brasil tornou-se sede do governo imperial português. Recusando a imposição de Napoleão para bloquear comercialmente a Inglaterra, a Corte portuguesa fugia das tropas francesas e da possível destruição de sua monarquia. Esta data marca também o fim da condição do Brasil como simples colônia. Oficializada em 1815, a ex-colônia sobe à categoria de reino. O Brasil passa pela primeira vez a ser considerado “o país” do futuro. A mudança significa que não há mais um pacto de exclusividade comercial com a “metrópole”, mas sim liberdade econômica e política; obviamente desde que isso não conflita com os interesses do Império ou da aristocracia lusa (LYRA, 1995, p. 175).

Até aí tudo bem. O problema é que em 1820 rebenta em Portugal uma revolução liberal. Causada justamente pelo pauperismo industrial e comercial como consequente resultado, entre outros fatores, da mudança da sede da monarquia de Lisboa para o Rio de Janeiro. Os revolucionários exigiam a restauração da sede na Europa, bem como o retorno das autoridades reais. Tal exigência esbarrava justamente no projeto do reformismo ilustrado de Portugal, que era o de construir uma unidade do Império Ultra-Marino tanto política, como nacional: Portugal, Brasil, Algarve passariam então à condição de Estados iguais “unidos pelos interesses recíprocos e pelos laços de solidariedade nacional”. Ademais, os revolucionários reivindicavam a queda da monarquia absolutista e a instituição do parlamentarismo a fim de que pudessem alterar os rumos da política imperial através de representantes de grupos mercantis e da aristocracia agrária. Eles entendiam a mudança da sede da monarquia para o Brasil como um evento que transformara Portugal numa mera província ou, pior, em colônia do Brasil.

Foi este confronto de interesses que fez com que os grupos dominantes no Brasil declarassem a independência do país. Contudo isso não acontece da noite para o dia. Em janeiro de 1821 as elites econômicas portuguesas reunidas nas Cortes de Lisboa deliberaram pela instituição da Monarquia Constitucional com o objetivo claro de promover a regeneração das forças produtivas do Reino europeu. Daí em diante as províncias coligadas (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais) formaram regimentos militares em defesa da causa do Reino do Brasil. Inicialmente, embora criticassem as posições da Cortes Gerais e Constituintes de Lisboa, os brasileiros estavam hesitantes e ainda defendiam a unidade imperial da qual se sentiam integrados. Depois, desde janeiro de 1822, sobretudo com o Dia do Fico, conferiram ao príncipe regente Dom Pedro o título de “Defensor Perpétuo do Brasil” e declararam a independência política-constitucional. Isto quer dizer apenas que exprimiam a intenção de ruptura da unidade e independência das Cortes Constituintes, porém, não em relação ao rei nem à nacionalidade portuguesa. Foi somente na segunda metade deste ano de 1822, com o acirramento do conflito entre os dois reinos, que o discurso tornou-se mais incisivo e determinado para a completa independência brasileira.

Sobre a data exata da independência há muitas referências desencontradas em documentos da época, como notícias de jornais e correspondências entre autoridades. Mas sabe-se que não existe no ano de 1822 nenhuma referência ao evento que se tornou conhecido na memória e no imaginário nacional: o Grito de Independência às margens do Rio Ipiranga feito por Dom Pedro especificamente no dia 7 de Setembro do mesmo ano. Nem em jornais, nem em discursos e documentos oficiais, tampouco em cartas. Tudo não passou de uma construção posterior, uma invenção.

Lyra apresenta ocasiões diversas que foram referidas como marcos da independência.

Em outubro de 1822, o jornal Correio Brasiliense publicou o Decreto de 1º de agosto como registro formal da Independência. Neste documento Dom Pedro apontava que em razão do Brasil já ter proclamado sua independência política-institucional o mesmo havia convocado por voto unânime uma Assembleia Constituinte. E mais: por considerar o rei Dom João VI em cárcere dos revolucionários “declarava inimigas as tropas que, vindas de Portugal, pretendessem desembarcar nos portos do Brasil”. Lyra acha significativa a postura do jornal sobretudo se levado em conta que não havia menção ao “Manifesto aos brasileiros”, datado do mesmo dia 1º de agosto. Este último documento, cujo conteúdo também discorria sobre a independência política do Reino do Brasil mas protegendo os vínculos da fraternidade portuguesa, foi bem mais divulgado pela historiografia. O jornal carioca Regulador Brasileiro, também em outubro de 1822, apontava outro documento como declaratório da independência. Trata-se do “Manifesto das Nações” de 6 de agosto. Entretanto, ainda que proclamasse a independência política do Brasil, este documento reivindicava “a condição de reino irmão e a permanência da justa reunião de todas as partes da monarquia debaixo de um só rei” (p. 179).

O Espelho, jornal de circulação no Rio de Janeiro e ligado aos grupos do governo, registrou em 13 de setembro a entrada de Dom Pedro na cidade de São Paulo no dia 25 de agosto onde foi recebido com festejo nas ruas. Conta também sobre sua participação em cerimônias religiosas. Em 14 de setembro é noticiado que o príncipe chegara no Rio de Janeiro, porém nada se fala sobre o tal 7 de Setembro. Este jornal inclusive omite a chamada “proclamação aos paulistas” do dia 8 de setembro, discurso no qual Pedro se despede dos paulistas, prescreve a união como único dever de todos os brasileiros no momento em que a pátria estava ameaçada de sofrer uma guerra e conclui com a recomendação do lema “Independência ou morte”, mas sem fazer qualquer referência ao suposto acontecimento da tarde anterior às margens do Ipiranga. Ao contrário disso, dizia que em face das notícias chegadas de Lisboa, o momento exigia “madureza”. Em 20 de setembro, a manchete do mesmo jornal era: “Independência ou morte! Eis o grito acorde de todos os brasileiros”. Nesta matéria criticava a atitude das Cortes portuguesas por terem sacrificados os laços de solidariedade entre dois hemisférios, afirmava que finalmente os brasileiros haviam percebido de uma vez por todas que uma nação rica não pode ser escrava de uma pobre e, por fim, comemorava a adesão da província de Pernambuco “à santa causa do Brasil”. 

A decisão de ruptura absoluta aparece mais explicitamente na carta que Dom Pedro envia a seu pai Dom João IV em 22 de setembro de 1822. “Nesta carta, o príncipe regente – avisando que escrevia ‘esta última carta sobre questões já decididas pelos brasileiros’ – insultava com veemência ‘os infames deputados europeus’ e defendia o princípio de justiça que cabia ao Brasil de se levantar revolucionariamente contra as mesmas Cortes” (LYRA, 1995, p. 182). Escreve ele por fim: “Triunfa ou triunfará a independência brasílica, ou a morte nos há de custar”. Esta correspondência do dia 22 de setembro era uma resposta irada à carta de 3 de agosto enviada por Dom João cujos dizeres comunicavam as decisões das Cortes de Lisboa e orientavam o príncipe a obedecer tais ordens. Trata-se da mesma carta que a historiografia faz referência como causadora da reação do príncipe em 7 de setembro, montado num cavalo, de onde fez ressoar seu brado retumbante de “Independência ou morte!”

Também em 22 de setembro o Senado da Câmara do Rio realizou eleições para escolher deputados que formariam a Assembleia Constituinte. Há comemorações pela independência neste dia. No dia anterior o Senado da Câmara do Rio marcara a aclamação do rei para a data de seu aniversário, 12 de outubro. E assim ocorre. Dom Pedro é aclamado imperador do Brasil. Ocorrem festividades com arcos ornamentados e fogos de artifício. Diferentemente do dia 7 de setembro, esta data é bastante noticiada em jornais da época, marcando também a mudança da condição de Reino para Império.  

As representações de 7 de Setembro como marco da independência

Apenas em maio de 1823, durante a “Fala” de abertura dos trabalhos da Constituinte, Dom Pedro afirma que teria sido ele mesmo o responsável pela decisão de ruptura absoluta da unidade imperial. No discurso ele cita sua viagem a São Paulo dizendo ser no sítio do Piranga onde proclamada foi a independência. Apesar disso seguia o impasse para a aprovação do reconhecimento da independência do país, afinal Brasil e Portugal seguiam com as relações diplomáticas rompidas, ainda em guerra.

O reconhecimento foi feito somente em 1825, com a assinatura do Tratado de Paz e Aliança, texto redigido com tom conciliatório. Ao contrário de boa parte de documentos que instituem a emancipação revolucionária de uma ex-colônia, o Tratado tem caráter de concessão. Neste o rei de Portugal, Dom João VI, concede a soberania do Brasil reconhecendo seu filho, Dom Pedro, como imperador. Isto substituía o princípio de “aclamação dos povos” datada de 12 de outubro de 1822 (p. 190). E havia sido resultado da disputa entre dois projetos de emancipação, mediada pela Inglaterra que, inclusive, foi paga por este serviço.    

Potência política da época, a Inglaterra foi escolhida como mediadora das negociações de paz entre Brasil e Portugal e, com o objetivo de garantir seus interesses, aconselhou Dom Pedro a negociar com cautela em vez de exigir prontamente de Portugal o reconhecimento da independência. Dom Pedro aceitou. A concessão seria a melhor saída para a Inglaterra pois impedia que houvesse uma reunificação futura, a qual parte dos gestores políticos portugueses desejava no momento. Para Portugal, havia uma condição: o tratado devia reconhecer a legitimidade do rei Dom João que, aliás, primeiro seria nomeado imperador do Brasil e logo depois faria a concessão a seu filho, o príncipe herdeiro. A nossos olhos, uma burocracia. Aos deles, a conciliação das partes interessadas na retomada do projeto imperial ultramarino (p. 191). Após breve litígio os representantes brasileiros conseguiram apenas mudar o termo “concessão” pelo “reconhecimento” da Independência, o que em verdade pouca diferença fazia no caráter geral do texto. 

Finalmente algum Sete de Setembro! Foi o dia da celebração oficial da assinatura do Tratado de Paz e Aliança (em 7 de setembro de 1825) no Rio de Janeiro. Só a celebração, diga-se, pois a assinatura é datada de 29 de agosto. Enfim, com direito a pompa e junto ao corpo diplomático da Inglaterra, da França e da Áustria, o imperador anunciou ao povo o reconhecimento da independência, e em gesto teatral e simbólico disse o já famoso “Independência ou Morte!”

A despeito da festa, pairava no ar um clima de desconfiança sobre o imperador cuja imagem estava desgastada naquele momento. Para os brasileiros, as decisões de assentir às exigências dos portugueses para uma emancipação nada revolucionária ou democrática alimentava a possibilidade de restauração com a metrópole, indesejada principalmente porque Portugal voltava a ser um regime absolutista. Além disso, havia suspeitas de que Dom Pedro não era tanto assim um defensor perpétuo da causa brasileira, já que ele havia dissolvido a Constituinte e instaurado o tal Poder Moderador. Portanto impunha-se a ordem do dia a necessidade de recuperar a imagem positiva de Dom Pedro. Foi a partir de então que começaram a surgir referências ao 7 de Setembro como um marco grandioso e heroico.

O jornal Diário Fluminense, publicado em 7 de setembro de 1825, saudava a assinatura do tratado dizendo que o festejo coincidia com o dia do aniversário da Independência. A inglesa Maria Grahan, que trabalhava para a princesa, em seu diário publicado tempos depois fez referência ao dia 7, misturando-o com a “Fala” do imperador em maio de 1823 e acrescentando floreios. Em 1826 uma lei promulgada em 9 de setembro incluía o dia 7 de Setembro ao calendário de festividades nacionais, juntamente com outras datas.

No mesmo ano é publicado um documento cabal para a construção da memória do dia 7, o Relato do Padre Belchior. Primo de José Bonifácio e deputado constituinte por Minas Gerais, o padre havia sido companheiro de viagem de Dom Pedro no momento do famoso Grito da Independência em São Paulo. Em seu relato, Belchior diz que ele não só leu as cartas de Dom João, da princesa, de José Bonifácio e de Chamberlain para Dom Pedro no dia 7 de Setembro, mas também lhe aconselhou a declarar independência. Aceito o relato do clérigo, outros mais foram acrescentados posteriormente como referências básicas para a historiografia. O do Coronel Marcondes, de 1862 (sobre o qual Laurentino Gomes se baseia), e o do Tenente Canto e Mello, de 1865, ambos presentes na comitiva do príncipe regente. As incongruências e contradições entre os três relatos foram consideradas aceitáveis devido à distância temporal dos fatos na memória das testemunhas.

Escrita por José da Silva Lisboa entre 1827 e 1830, a obra História dos principais sucessos do Império do Brasil foi a que deu a narrativa do dia 7 de Setembro a forma definitiva. Lisboa, o Visconde de Cairu, foi um dos primeiros brasileiros a conquistar título de nobreza. No início de sua obra ele diz que foi incumbido pela ordem superior de escrever a história do Brasil. No volume de 1829 o autor dedica um capítulo a viagem de Dom Pedro a São Paulo sem no entanto mencionar o dia 7. Páginas depois ele retorna ao tema da independência inserindo a descrição hegemônica do evento e incluindo desta vez o povo que, além de aplaudir efusivamente o regente, ainda o aclamou naquele momento como imperador do Brasil. Em 1830 ao publicar outro volume, Silva Lisboa dedicou um capítulo inteiro ao dia 7 de Setembro, integrando a “Fala” de maio de 1823 ao acontecimento e dizendo ao cabo que este era o marco definidor da nacionalidade brasileira. Nada mais fez do que sintetizar todos os eventos numa só imagem. Os governantes curtiram.

Em 1827 começaram a chover referências da imprensa ao 7 de Setembro. E este vai se impondo ao imaginário cada vez mais conforme os anos passam. Foi necessário não um, mas vários “gritos” para comunicar a tal independência. Viajantes que escreveram suas memórias de passagem pelo Brasil (desde 1829) já aceitam o fato como inconteste. Na segunda metade do século foram construídos em São Paulo monumentos em homenagem ao Imperador Dom Pedro I na Praça Tiradentes (1865) e ao patriarca da independência José Bonifácio no Largo do São Francisco (1872), bem como o Monumento do Ipiranga (1885). Símbolos da conquista de uma liberdade  a qual celebramos ainda hoje. Liberdade, porém, ao povo tão vazia quanto à ocorrência do evento outrora transformado em marco histórico.

Referências:

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1995.
LYRA, Maria de Lourdes Viana. Memória da Independência: marcos e representações simbólicas. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 29, p. 173-206, 1995.
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terça-feira, 18 de agosto de 2015

História dos Estados Unidos por René Rémond: resumo das primeiras colônias à independência

A faixa litorânea atlântica da América do Norte demorou a ser colonizada caso a comparemos com as terras meridionais e centrais. O Canadá já havia sido ocupado pelos franceses desde o século 16 e a Flórida anexada ao império espanhol. Este atraso se deve em parte à geografia da costa, ora pantanosa ora rochosa cujo acesso ao interior era dificultado, mas também ao clima (às vezes glacial, às vezes sufocante) e à ausência daquilo que atraia os colonizadores: especiarias e metais preciosos. Mesmo atrasada, a Inglaterra (que aliás emergia como uma nova potência colonial) levou a melhor sobre todos seus concorrentes (franceses, espanhóis, holandeses e suecos), conseguindo eliminá-los mediante negociação ou guerra e tornando-se dona de toda a costa.  

A primeira colônia anglo-saxônica no Novo Mundo foi Jamestown, fundada em 1607. A época colonial (1607-1763) da história dos Estados Unidos da América prenuncia muitas características até hoje atuais. “O país recebeu deste período o legado de uma população, de uma sociedade, de uma economia, de uma mentalidade, de uma parte de suas instituições políticas, de suas tradições jurídicas e instituições judiciárias, e também alguns de seus problemas” (p. 01). Embora seja sempre narrada a história dos 120 peregrinos que chegaram a bordo do famoso navio Mayflower em 1620 vindos das Províncias Unidas, o povoamento deste território não foi nada homogêneo. Para falar apenas do núcleo principal, havia ingleses, escoceses, galeses mas também alemães, suecos e até franceses (estes últimos eram sobretudo protestantes fugindo da intolerância católica). Separadas por relativas distâncias entremeadas por florestas, savanas e tribos indígenas, formaram-se três tipos de colônias, todas elas independentes entre si.

No grupo da Nova Inglaterra havia quatro: New Hampshire, Massachusetts, Connecticut e Rhode Island. Possuía uma economia composta por agricultura, pecuária, pesca, comércio e indústria em fase inicial. O puritanismo era a religião hegemônica. Muitas destas pessoas haviam saído de suas terras natais para não conflitar com os ordenamentos de um príncipe que não professava a mesma religião que a delas. Estado e igreja para eles estava intimamente ligados e a religião regia não somente a vida pública, mas também a vida privada. Diante deste fato era comum que ocorresse intolerância contra os que agiam em desacordo aos costumes da comunidade. Foi numa das colônias da Nova Inglaterra que aconteceu a chamada caça às bruxas de Salem. Porém a religião também teve seus pontos positivos. É na Nova Inglaterra que os primeiros colégios foram fundados. Inicialmente com o objetivo de formar ministros clérigos, as sementes das futuras universidades do Leste foram plantadas (Havard por exemplo é de 1636). Por influenciar também a vida política, a religião calvinista formou hábitos democráticos. As igrejas eram administradas livremente pela comunidade. Isso fez com que as decisões sobre o lugar onde viviam também fossem participativas. Boston, já com 20 mil habitantes no século 18, é a cidade símbolo das colônias da Nova Inglaterra: “atividade econômica diferenciada e lucrativa, índole religiosa, prática democrática, tradição intelectual... foi uma das primeiras cidades a pegar em armas pela independência” (p. 6-7).  

Composto por cinco colônias, o grupo do Sul era bem distinto ao da Nova Inglaterra. São elas: Maryland (homenagem dos católicos à Virgem Maria), Virgínia (homenagem à rainha Elizabeth I, a “Rainha Virgem”), Carolina do Norte e do Sul e Geórgia (homenagem ao rei George I). Sua densidade populacional era menor, com poucas cidades, devido ao fato de viverem exclusivamente da terra. A economia se baseava no sistema plantation: grandes propriedades monocultoras (de tabaco, arroz, índigo e depois algodão) onde a mão de obra constituía-se por escravos e os produtos eram destinados especialmente ao comércio exterior. Os escravos vinham do tráfico negreiro da África e desde o século 18 eram mais numerosos do que os homens livres. Da escravatura obviamente germinava a vulnerabilidade desta sociedade cujos fundamentos e gostos eram aristocráticos. Além disso, estava seu sucesso sujeito às condições atmosféricas e às tribulações do comércio em terras alhures. Diferentemente da “democrática” Nova Inglaterra, e também devido ao abismo social entre fazendeiros e escravos, a oligarquia governava a colônia a seu bel-prazer.      

Entre estes dois grupos que geralmente os livros didáticos de história descrevem apenas como as do sul e as do norte, havia também o grupo das colônias intermediárias: Nova York, Nova Jersey, Delaware e Pensilvânia. Estas não se assemelhavam a nenhum dos dois grupos anteriores (menos ainda com as do Sul) e também eram menos homogêneas do que os demais. Nova York vivia vestígios de sua antiga colonização, chamava-se inicialmente Nova Amsterdã, e Delaware tinha lá sua herança social dos ex-colonos suecos. Foi o inimigo comum que fez com que se unissem as treze colônias (divididas por Rémond em três grupos). O primeiro inimigo comum foram os indígenas, poucos porém perigosos – pelo menos até o momento em que armas de fogo foram aprimoradas. O segundo, os franceses, que já estavam no Canadá há tempos e podiam espremer os anglo-americanos em direção ao mar em busca de mais terras. Todavia eram apenas sessenta mil, no século 18, e, além disso, espalhados. Já os súditos britânicos passavam de um milhão e meio. Veio a guerra dos Sete Anos. E então os habitantes das treze colônias ajudaram sua metrópole a derrotar os franceses em suas terras. Foi bom para os dois lados. Por um lado a Inglaterra protegeu a tomada de sua colônia. Por outro os anglo-americanos ganharam experiência em conflitos bélicos. George Washington conquistou notoriedade ultramarina ao liderar batalhões.

A independência (1763-1783)

A independência foi o processo indireto da vitória da metrópole inglesa e suas colônias contra a França, na medida em que apenas treze anos separam a eliminação do perigo francês, em 1763, do rompimento das colônias americanas com a Coroa britânica, em 1776. No entanto, após o término da Guerra dos Sete Anos, nada indicava este acontecimento ou sequer alguém entre os anglo-americanos o desejava. Então quais foram suas causas? Primeiro, a vitória mostrou aos americanos que eles tinham força e não precisavam mais da presença de soldados ingleses em seu solo, pois podiam prover sua própria segurança. Segundo, diante das dívidas de guerra, a Inglaterra impôs uma série de medidas vexatórias contra os colonos. Ao aplicar novos impostos e a exclusividade do pacto colonial (cuja obrigação da colônia era a de comercializar somente com a metrópole), a Coroa desagradou todos os americanos e sobretudo “uma classe de negociantes, armadores e marinheiros que tinham baseado sua fortuna no comércio com as Antilhas francesas e espanholas” (p. 16). Mais do que isso os americanos esperavam que o Oeste lhes fosse concedido após a vitória da guerra, porém, o governo de Londres decidiu agradar seus novos súditos, os canadenses, proibindo a infiltração de colonos americanos em tais terras.

Os novos impostos oneraram os colonos e puseram uma discussão em pauta: o governo inglês teria direito de cobrar estes tributos tendo em vista que estavam em desacordo com um valioso princípio constitucional inglês segundo o qual nenhum novo imposto pode existir sem o consentimento dos representantes? Os ingleses achavam que sim, pois o Parlamento de Londres representava todos os súditos. Os americanos achavam que não, já que não havia gente de seu povo nesta câmara e somente suas assembleias podiam autorizar o imposto em seus nomes. “O ponto de vista do governo londrino ameaçava o poder de controle de que estas haviam gradualmente se apoderado: após sua autonomia comercial, as colônias viam agora ameaçada sua autonomia política” (p. 17). Diante do impasse, em 1770, a metrópole resolveu ceder e retirou todos os novos impostos, com exceção da Lei do Chá. Isso não bastava para os colonos, uma vez que não colocava em xeque o direito. Quer dizer, continuavam dependentes do humor arbitrário de Londres. Parece mesmo que, na medida em que se viam dentro de uma perspectiva coerente ao legalismo britânico, os colonos não podiam aceitar tal coisa. Isto é, “incapazes de obter da Grã-Bretanha a aplicação dos princípios constitucionais ingleses, não podendo ser totalmente ingleses, os colonos e seus descendentes preferirão ser apenas americanos” (p. 17).

Porém, até aceitar este sentimento, fazendo da impressão uma realidade política, levou tempo. Para ser mais claro: depois do fracasso de várias tentativas de conciliação. A opinião sobre a secessão dividia-se tanto de um lado quanto de outro do Atlântico. Muitos americanos ficaram apreensivos diante da eminência de ficarem sós, bem como tinham a certeza de que não seriam capazes de romper à força o laço entre colônia e metrópole. Porém, embora não houvesse nesta altura um órgão legítimo que concentrasse e exprimisse as vontades dos colonos, a partir de 1773 surgiram alguns eventos imprevisíveis cujos desencadeamentos encaminharam de modo quase inevitável para uma guerra de independência. “Esses episódios constituem os anais gloriosos da liberdade americana” (p. 18).

Em 16 de dezembro de 1773, cinquenta colonos se fantasiaram de indígenas e invadiram um navio da Companhia das Índias Orientais no porto de Boston. Feito a incursão, eles lançaram ao mar toda a carga de chá ali presente. As autoridades locais se mantiveram passivas, mostrando-se coniventes com a ação. Prontamente o governo londrino respondeu lançando cinco decretos que arruinaram o comércio da cidade e cercearam as liberdades dos cidadãos de Massachusetts. Pretendia com esta medida punir de forma exemplar, entretanto, não contavam que as outras colônias iriam apoiar o Estado onde aconteceu a revolta. Meses depois, em setembro de 1774, seguindo ideia de Franklin, representantes das treze colônias se reuniram no chamado primeiro Congresso Continental da Filadélfia. Neste encontro ainda não estava em pauta a independência nem sequer a formação de um governo comum, era tão somente para encontrar os meios adequados para conquistar o reconhecimento de seus direitos frente ao estado de coisas. Mas isso alimentou elementos para a construção de um movimento insurrecional: comitês de correspondência formavam redes continentais; armas foram reunidas; milícias foram treinadas; legislaturas revolucionárias surgiram; multiplicavam os panfletos e jornais. “A revolução americana foi a primeira na qual a imprensa desempenhou um papel importante” (p. 19).

A Coroa inglesa começou a se mexer para evitar a revolta. O general inglês que comandava em Boston tentou tomar um depósito de armas em Concord. Os americanos descobriram e então ocorreu o confronto conhecido como a fuzilaria de Lexington. Meses depois, em Bunker Hill, outro conflito fez com que a infantaria inglesa perdesse por volta de mil soldados. Entre estes dois combates, aconteceu o segundo Congresso Continental da Filadélfia. Desta vez decidiu-se formar um exército continental cujo comando ficaria a cargo de George Washington. “Escolha decisiva: a independência americana, a confiança dos insurgentes no êxito de sua casa, sua reputação além dos mares, deveram mais ao desinteresse desse homem, às suas virtudes cívicas e militares, do que a todo e qualquer outro fator. Daí em diante, a independência estava adquirida nos fatos, mesmo antes de ser reivindicada”, escreve Remond (p. 20).

No ano seguinte, mais precisamente em 4 de julho de 1776, veio a público a Declaração de Independência, data que viria a ser comemorada religiosamente ano após ano nos Estados Unidos. Ao fundamentar no direito a insurreição e enunciar um sistema de valores seguidos pelos homens de Estado, o texto da declaração formou a base da filosofia política do povo americano. Ele surge antes da Declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão e constitui a origem de dois movimentos históricos, sobretudo por se tratar da primeira vez em que uma nação proclamava princípios fundamentais a respeito de uma sociedade política. “Por um lado, era a primeira vez que colônias se emancipavam: a sublevação americana anunciava, assim, por antecipação, todos os movimentos de independência colonial. Implantou no âmago da mentalidade americana o reflexo anticolonialista. [...] Por outro lado, foi a origem da onda revolucionária que, reatada e ampliada pela Revolução Francesa, iria derrubar, um após outro, os regimes estabelecidos até a Revolução Russa de 1917: a Revolução Americana é, simultaneamente, a mãe das revoluções e dos movimentos de independência” (p. 21).

Depois de proclamada a independência restava conquistá-la na prática. E esse processo durou longos sete anos. A dificuldade era mais do que justificada, afinal, os britânicos contavam com um exército regular e equipado, enquanto os colonos apenas com um exército improvisado composto por voluntários; metade combatentes, metade agricultores, com um olho na guerra, outro em seus negócios. Diante da falta de disciplina militar, podiam abandonar o front quando quisessem. Mais do que isso, a ausência de recursos era patente, as colônias não possuíam indústrias e o Congresso Continental da Filadélfia não tinha legitimidade para cobrar impostos. Sendo assim, precisavam de aliados. Mas quem poderia por frente a uma potência marítima como a Inglaterra senão a França, inimiga de outrora que ajudaram a combater? Pois foi esta mesma. Franklin foi quem negociou a aliança. Os franceses forneceram dinheiro, armas, um corpo expedicionário, uma esquadra e a aliança espanhola. Dois episódios mostraram o sucesso desta empreita. A capitulação de uma coluna inglesa em Saratoga, em 17 de outubro de 1777, quando os americanos encurralaram-na num terreno plano, marcou a assinatura do tratado. Cinco anos depois, em 19 de outubro de 1782, outra capitulação, desta vez de uma guarnição entrincheirada em Yorktown.

Já quase totalmente resolvidos os problemas militar e diplomático, faltava resolver o problema político. Esta foi uma questão responsável por arrastar durante tanto tempo a guerra de independência. Sim, pois como levantar um exército, contratar alianças, contrair empréstimos diante do fato de não existir uma autoridade política? Mesmo o Congresso Continental não dispunha de um poder de coerção para forçar todos os Estados a aderir a suas decisões. E os Estados declarados independentes não queriam alienar suas autonomias. Foi Washington o responsável por suprir a falta de uma autoridade funcional. A Inglaterra concordou em negociar em 30 de novembro de 1782, a guerra estava acabada. Em 3 de setembro 1783 uma negociação geral com franceses e americanos em Versalhes encerrou o certame completamente. Finalmente a metrópole reconheceu a independência das treze colônias. A história destas estava apenas começando: “a história de uma nova América independente, ao mesmo tempo prolongamento da Europa e separada dela, herdeira da Inglaterra e nascida de uma rebelião contra seu governo” (p. 23).

Referências:
RÉMOND, René. História dos Estados Unidos. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 
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