quarta-feira, 27 de junho de 2012

Da (im)possibilidade de historiar uma vida


Há cerca de um mês me deparei com um post interessante da colega e jornalista Renata Arruda. Em Prosa Espontânea: de volta ao passado, ela expôs um reencontro com escritos de sua pré-adolescência, os quais transmitiam aspectos de sua vida naquele momento. Ela fez um balanço temporal deixando entrever a possibilidade daquela garota de alguns anos atrás ser uma pessoa bem diferente do que ela é na atualidade (ou sequer ter existido), especialmente se considerarmos sua mudança da maneira de pensar a vida. Imediatamente, me lembrei da discussão que corre solta entre historiadores sobre o gênero biográfico; sobretudo, com a contribuição de pesquisadores como Bourdieu, Foucault e Barthes acerca da “simulação” biográfica – e da presença da ficção na escrita de uma vida.

Numa entrevista recente, Benito B. Schmidt (um importante historiador-biógrafo brasileiro) considerou que a atenção dada ultimamente a este tipo de produção historiográfica é relativa à valorização do indivíduo e do cotidiano da vida privada, associada ao desejo de espionar a vida alheia pelo “buraco da fechadura”. Em grande medida, esta situação histórica é explicada pela falência (ou descrédito) dos projetos universais que se baseavam na ação de sujeitos coletivos, como o povo, o proletariado, o partido e a vanguarda intelectual. Mas, como chegamos nesta condição contemporânea?

A partir de 1930, durante o período de “combate pela história científica”, a Escola dos Annales criticou as biografias de figuras heroicas, pois estas dissociavam o personagem do caldo cultural que nutria sua existência. Em contrapartida, usou as biografias para reconstruir contextos históricos de uma determinada sociedade, classe ou cultura; ainda flertando com a noção de sujeito coletivo baseada numa ‘mentalidade’ como substrato cultural. Em tese, o indivíduo biografado funcionava como uma espécie de janela para olharmos o funcionamento da dinâmica social do período no qual ele viveu. Por exemplo, para compreender questões e aspectos ligados a Ordem dos Cavaleiros Templários durante as cruzadas na Idade Média, podia se recorrer a historiar a vida de um dos cavaleiros, para representar sua classe e descrever as relações com a sociedade e o tempo num determinado contexto medieval.

Outra maneira de uso da biografia, na tentativa de reconstruir um dado contexto social e cultural, é praticada pela micro-história. De acordo com Alexandre Avelar (historiador do gênero biográfico), esta modalidade utiliza a história da vida de um indivíduo que não é um representante do conjunto da sociedade, mas que possui pensamentos e ações que vão contra as regras sociais hegemônicas (2011, p. 143). O pesquisador do microcosmo procura compreender os conflitos e as experiências-limites de uma vida que demonstram aspectos culturais que passam despercebidos dos olhares dos historiadores, por estarem de alguma forma naturalizados na sociedade pesquisada. Estas preocupações também estão presentes nos trabalhos de história social de E. P. Thompson. O historiador pesquisou rituais de humilhação pública na sociedade inglesa moderna para extrair deles as regras culturais contra as quais eles atentavam. “A importância desses rituais reside no fato de que, identificados quais tipos de conduta (serviu, marital, pública) ofendem a comunidade, revelam-se também as normas dessa comunidade” (2001, p. 249).

O maior exemplo de uma biografia histórica nos moldes da micro-história foi escrita por Ginzburg em O queijo e os vermes. O livro, que já se tornou clássico do gênero, conta a história de Menocchio, um moleiro italiano que viveu no século 16. A primeira diferença da maioria das biografias está justamente no interesse à vida de uma pessoa comum. Entretanto, apesar de “comum”, Menocchio não representava o pensamento da comunidade na qual vivera. O moleiro construiu uma explicação bastante peculiar para o surgimento do mundo (cosmogonia): “’No princípio este mundo era nada, e [...] a água do mar foi batida com a espuma e se coagulou como queijo, do qual nasceu uma infinidade de vermes; esses vermes se tornaram homens, dos quais o mais potente e sábio foi Deus’: foram mais ou menos essas as palavras ditas por Menocchio” (GINZBURG, 2006, p. 103). Imaginem falar coisas deste tipo na época de caça às bruxas, em plena política de contrarreforma da Igreja Católica! Menocchio ainda foi além, questionando a autoridade dos líderes e de rituais específicos que constituíam dogmas da Igreja. Mesmo se declarando cristão, depois de uma série de interrogatórios, de torturas e de prisões, a “Santa Inquisição” resolveu executar o moleiro. Entretanto, Ginzburg quer deixar claro que Menocchio não estava a frente de seu tempo; que sua existência só foi possível pela invenção da imprensa (que possibilitou a circulação de textos heréticos e críticos) e pela reforma protestante via anabatistas e luteranos. A própria singularidade do personagem parece ficar cada vez mais apagada na medida em que Ginzburg vai relacionando as opiniões do moleiro, expressas nos interrogatórios, aos diversos livros sobre religião que Menocchio ou teve acesso, ou poderia ter tido contato com alguém que os leu. No fim, Ginzburg mostra que houve outras pessoas como Menocchio (inclusive moleiros do mesmo período) que pensavam de maneira se não igual, muito parecida. Embora, entendamos que o trabalho de Ginzburg foque na reconstrução dos conflitos existentes num período de efervescência religiosa, passando do micro para o macrocosmo, o autor acaba desconsiderando o elemento humano da criação de algo totalmente novo; assim como foi possível a existência dos livros com os quais Menocchio tivera contato. Quer dizer, quem foi o primeiro a pensar diferente e escrever esses pensamentos? Deve ter existido vários Thomas Edison na história. Ou qualquer um de mesma cultura poderia ter inventado a lâmpada em sua época? Em todo caso, parece absurdo falar de ‘singularidade’ como algo recorrente, já que o singular é um.

Justamente por levar em consideração as questões referentes à criação, à contingência, ao acaso e à complexidade da realidade, alguns autores expuseram críticas as narrativas históricas que pretendem reconstruir ou representar uma vida através da escrita explicada pela síntese de muitas determinações coletivas. Boa parcela destas contribuições parte de uma releitura das críticas de Marx, Nietzsche e Freud às noções de sujeito universal em Hegel e de consciência “absoluta” em Descartes, mas também da impossibilidade de exprimir linguisticamente a fluidez do real.  No texto A ilusão biográfica, o sociólogo Pierre Bourdieu coloca que a primeira “abstração” da biografia é acreditar que a vida tem uma história. Ou seja, que ela possui um caminho orientado, seja do vício a virtude ou da esperança a tragédia. O problema, neste caso, é supor que existe uma essência por trás de tudo que regula os acontecimentos – como o famoso “desde pequeno”. O historiador preocupado, por exemplo, em explicar porque Caco Barcellos se tornou um famoso jornalista, buscará registros de sua infância e adolescência que comprovem seu interesse “desde sempre” pela informação e pela reportagem (quem sabe dizendo que ele era um menino muito fofoqueiro na escola), e talvez, abandone desenhos de aviões em seus cadernos, porque afinal de contas ele não virou aeronauta. Segundo Bourdieu: “produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar” (1998, p. 185). É preciso tratar o real como algo “descontínuo, formado por elementos justapostos sem vazão”, todos eles únicos e difíceis de apreender porque são imprevisíveis e aleatórios. O que o historiador faz - como considera Avelar (2011) - é tentar encontrar um sentido para a vida do biografado, e mais, construir um texto que fundamente este sentido baseando-se em documentos sobre a vida da pessoa.

Sobre a questão da fundamentação em documentos, Foucault aponta a impossibilidade de recontar uma vida baseando-se neles, pois quais os resquícios que devemos considerar ou relevar? É possível que, para Foucault, a ideia de sujeito seja absurda, porque somos pessoas completamente diferentes conforme o passar do tempo e das interações sociais. Assim, os sujeitos são produzidos e se produzem incessantemente de formas completamente novas conforme as relações de poder que os atravessam. Sua exposição relembra a clássica frase de Heráclito: “não podemos entrar no mesmo rio duas vezes”, pois no segundo momento que entrássemos seríamos pessoas diferentes e o rio também já seria outro, porque é fluxo. Entretanto, existem estratégias vinculadas as instâncias do poder que pretendem determinar uma existência. É desta maneira que Foucault pretendeu mostrar o caso de um parricida no livro Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (que virou filme na França), ao contrapor o discurso médico, o discurso jurídico e o do próprio assassino. Embora eles estivessem falando do mesmo assunto, a vida de Pierre Rivière a partir da relação com seu crime, numa tentativa de decidir o destino do assassino (se mandado para uma cadeia ou para um hospício), os discursos se contradiziam parecendo tratar-se – às vezes – de pessoas distintas (um doente desde a infância, um homicida cruel ou um homem comum cometendo um ato absurdo). Muitas críticas foram feitas a Foucault porque o filósofo não comentou os discursos apresentados. Mas esta ausência se ancora na coerência da própria proposta do autor para este trabalho, que era mostrar como funcionam os mecanismos de poder que localizam uma existência para poder dominá-la, tratando o homem como objeto do saber. Caso Foucault tivesse feito comentários, explicações ou defesas de Rivière, teria cometido o que acabara de denunciar, que é o falar pelos outros.

Mais do que admitir a imprecisão de contar uma vida através da narrativa, o trabalho de Foucault demonstra como essa construção linguística pode servir a propósitos políticos que pretendem assegurar uma verdade utilizada para o governo das pessoas (como no caso dos loucos e dos presos). No entanto, tais estratégias seriam não só intencionadas como também mentirosas, pois “o filósofo francês rejeita uma universalidade, uma autonomia plena de consciência e uma liberdade de ação abstrata tal como se postula em diversos discursos biográficos, pois nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Não há, portanto, uma identidade esquecida, sempre pronta a renascer, mas um sistema complexo de elementos múltiplos, distintos que nenhum poder de síntese domina” (AVELAR, 2011, p. 151). Algumas instituições criadas no social dão a ilusão de uma continuidade ou de uma essência do indivíduo; o caso do nome próprio é uma delas, conforme salienta Bourdieu. O nome próprio e a autoria são instâncias que podem visar a regulação e a culpabilização dos sujeitos, mas são impressões frágeis diante das transformações operadas numa vida. Com base nas arguições de Foucault e Barthes para desestabilizar o aspecto temporal de causa e efeito, o ser vivente está em constante invenção de si mesmo. Nossa existência é descontínua, pois como cantou Alanis: “somos arranjos temporários”.


Referências:

AVELAR, Alexandre. Figurações da escrita biográfica. Revista ArtCultura. Uberlândia, v. 13, n. 22, p. 137-155, jan.-jun., 2011.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J. ; FERREIRA, M (Coord.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 183-191.
FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio do século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
MORISSETE, Alanis. No pressure over cappuccino. Faixa 03. Álbum: Alanis Unplugged, 1999.
SCHMIDT, Benito B. Entrevista com Benito Bisso Schmidt por Manuela Areias Costa. Revista Cantareira. Rio de Janeiro, 15ª edição, jul.-dez., 2011.
THOMPSON, Edward Palmer. Folclore, antropologia e história social. In:______. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 227-268.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Relações da forca: o historiador como policial e juiz, em Ginzburg

O texto que se segue não é precisamente uma resenha. É um comentário acerca da discussão levantada em Relações de força: história, retórica, prova. Livro no qual o historiador italiano Carlo Ginzburg critica os pesquisadores ligados à filosofia nietzschiana. Inicialmente vou apresentar as ideias gerais de Ginzburg nesta obra.

Caçoando dos genealogistas da história, o autor procura construir sua pesquisa através deste método de análise que alude o livro Genealogia da moral de Nietzsche, e que Foucault retomou em seus trabalhos sobre história. Não por acaso, os dois estão entre os alvos de Ginzburg. A lista negra contém ainda os nomes de Roland Barthes, Paul De Man, Jacques Derrida, Marcel Proust e, principalmente, o de Hayden White (marcado em negrito).

O que Ginzburg pretende comprovar é que retórica e prova não se excluem. Pelo contrário, segundo o autor o uso da retórica na escrita da história é o recurso mais realista que existe. Em sua “genealogia” ele remonta a Retórica de Aristóteles para dizer que o uso do discurso na “arte” do convencimento, através da filosofia aristotélica, não funciona do mesmo modo que o dos sofistas. Pois para Aristóteles a prova e a verdade constituem os fundamentos principais para a persuasão, enquanto, por outro lado, os sofistas procuravam convencer manipulando os afetos do interlocutor. Por exemplo, no livro Górgias de Platão, Sócrates denuncia a retórica como a arte de enganar, comparando-a a outras formas de "adulação". Cálicles, um personagem áspero que aparece no diálogo socrático e que defendia o domínio dos fracos pelos mais fortes conforme a lei natural, mostra que a retórica é apenas um modo de "amenizar ou disfarçar" a natureza (physis) através da lei (nomos). Para Ginzburg, Cálicles revela Nietzsche a ele mesmo. Contudo, ainda segundo Ginzburg, o filósofo alemão teria esquecido que a Retórica de Aristóteles rompeu com a explicação de Platão e com a utilização dos sofistas. Assim, o grego teria deixado uma definição de historiografia que possibilita sua legitimidade e utilidade na política: a) pode ser reconstruída a partir de rastros e indícios; b) implicam conexões necessárias (tecmeria) que possuem certeza; c) fora destas conexões naturais os historiadores se movem no âmbito do verossímil, nunca da certeza – mesmo que nos textos historiográficos essa distinção desapareça (p. 57-58).

O historiador italiano defende, portanto, que a retórica da tradição aristotélica tem nas provas seu conteúdo central, por isso o discurso histórico deve se basear nela. No entanto, o problema é que tanto a retórica, como a história mudaram seus sentidos após a leitura de Aristóteles feita por Cícero na Antiguidade (romana). A tradição aristotélica teria sido recuperada somente em 1440, quando através do contato com a obra de Quintiliano (um seguidor da retórica aristotélica), Lorenzo Valla escreveu Discurso sobre a falsa e enganadora doação de Constantino, com o objetivo de demonstrar a falsidade do documento que autorizava a doação de terras à Igreja, supostamente assinado pelo imperador Constantino no século IV. Neste escrito, conforme Ginzburg conta, Valla misturou diálogos “imaginários” com pesquisa séria e diálogos verdadeiros. Mas o importante foi que demonstrou empiricamente que o documento era falso, pois, ainda que usasse trópicos de persuasão, estes serviam ao propósito da verdade.

Num trecho curioso Ginzburg usa Momigliano para comparar o historiador a um policial e a um juiz: “Diferentemente de Munz, eu não fico aborrecido com o fato de que isso sugira uma semelhança com o trabalho de um policial (ou com um juiz)”. Ginzburg reitera: “Juízes e historiadores se associam pela preocupação com a definição dos fatos, no sentido mais amplo do termo, incluindo tudo o que se inscreve, de alguma forma, na realidade. [...] Juízes e historiadores estão vinculados pela busca de provas. A essa dupla convergência corresponde uma divergência em dois pontos fundamentais. Os juízes dão sentenças, os historiadores não; os juízes se ocupam apenas de eventos que implicam responsabilidades individuais, os historiadores não conhecem essa limitação” (p. 62).

A metralhadora retórica: Ginzburg sugere que o congresso realizado de 1966 em Baltimore foi o início dos ataques do "giro-linguístico" à narrativa histórica (mas se esqueceu de dizer que, pelo menos, desde Wittgenstein [1922] a filosofia já se mexia neste sentido). A proposta do evento era o progresso do estruturalismo francês ou seu sepultamento. Segundo o italiano, na ocasião uma reinterpretação de Nietzsche por Derrida possibilitou que este autor se libertasse do "niilismo triste, negativo e culpado"; isso teria sido usado, então, para o mesmo se autodesculpar do nazismo e dos crimes que cometera, utilizando a proposta do esquecimento - defendida pela filosofia "pequeno-burguesa" de Nietzsche. O mesmo teria servido a Paul De Mann, um "nazista duas caras". Entretanto o esquecimento não teria sido capaz de redimir a nietzschiana e feminista Sarah Kofman (na imagem) que, vivendo atormentada por sua infância judia, se suicidou no 150º aniversário de Nietzsche. A ironia é que, ao dizer que o problema dos críticos linguistas consiste em eles acharem não ser possível distinguir "juízo de fato" e "juízo de valor", Ginzburg acaba "acusando" a si mesmo, já que mistura tais juízos sobremaneira em sua obra.

Vamos ao que interessa! Se o historiador italiano queria mesmo fazer uma genealogia histórica, acredito que se esqueceu das características mais cabais para realizá-la. A pesquisa genealógica empreendida por Nietzsche quis descrever o "nascimento" de algo que se tornou naturalizado, isto é, a moral judaico-cristã. Por isso é justificado seu interesse em narrar a revolta dos escravos hebreus contra os egípcios, uma revolta baseada na inversão dos valores morais aristocráticos que existiam no período. Foucault, partindo do pressuposto nietzschiano segundo o qual a verdade é fruto de uma construção linguística e social que, pelas relações de poder, se impõe sobre outras, quis pesquisar como algumas verdades, que fundamentam a civilização ocidental moderna, foram construídas no e pelo "discurso" - conceito que não pode ser reduzido "a linguagem" e que se aproxima mais de "quadros formais através dos quais algo se torna enunciável e visível, se inscrevendo na realidade"). Ou seja, para remeter ao título de uma de suas obras, Foucault pretendeu descrever como se deu o pacto impossível das palavras com as coisas. Por isso, trata-se de não pesquisar “o saber” separado, como fez Ginzburg, mas entender sua relação direta com “o poder” que o afirma como verdade. Talvez Ginzburg teria feito um trabalho bem mais interessante se tivesse pesquisado como foi possível a institucionalização do saber histórico, diretamente atrelada a busca de verdade como função assumida de especialistas autorizados pelo Estado e por uma comunidade "aristocrática". Por outro lado, compreendo que se ele o fizesse denunciaria sua própria miséria humana. Parece, portanto, muito mais coerente proteger a corporação e a continuidade de uma série de coisas que sua genealogia ocultou.

A crítica de Ginzburg aos nietzschianos (se assim podemos chamá-los) está calcada num preceito moral que já acompanhava a retórica aristotélica. “Vocês são os maus, eu sou o bom. O que defendo é correto e verdadeiro, e vocês defendem a mentira”. O que fazer então? Mandar os mentirosos e impuros para o paredão, como faziam os "antigos juízes"? Afinal a noção de prova, tão cara a Ginzburg, usada no discurso do convencimento, estava atrelada a condição moral do próprio orador, como nos diz Aristóteles: “As provas de persuasão fornecidas pelo discurso podem ser de três espécies: umas residem no caráter moral do orador; outras, no modo como se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar” (2005, p. 96). Esta pequena citação só "confirma" a tese de que a interpretação pode se sobrepor às fontes – que inclusive são também construídas por perspectivas. Ainda conforme nos diz Aristóteles, pelo modo como dispõe o ouvinte é possível convencê-lo pela emoção causada. Pois, foi exatamente o que fez Ginzburg com muitos historiadores que sequer leram White, mas o odeiam simplesmente porque lhes fizeram críticas a respeito da ingenuidade no manejo de algumas técnicas de seu ofício. Desse ressentimento brota uma disposição para somente dar ouvidos às críticas desonestas de Ginzburg a White.

Digo "desonestas" porque muitas das acusações são relativas a coisas que White não escreveu. Em "Todo mundo odeia o White", post que resenha um texto do autor, tento mostrar um pouco disso. Porém, é mais cômodo lermos apenas o Ginzburg e chamá-lo de erudito. A meu ver, o problema crucial deste debate, para além dos princípios filosóficos antagônicos de cada autor, está no uso da verdade que se faz e não em sua existência/negação. Saber que o holocausto existiu é uma coisa, agora se apoiar no genocídio para justificar a criação do Estado de Israel, por exemplo, é outra. Todos nós estamos carecas de saber (e o Foucault também) que os líderes israelenses fazem coisas tão desumanas contra os palestinos quanto os nazistas fizeram ao seu povo. Esse movimento nos mostra como funciona a relações de forças dos discursos e as relações de forca que atravessam o uso político de uma “verdade histórica”.

Referências:


ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.
GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica e prova. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
**Muitos pontos apresentados neste texto surgiram das discussões no grupo de estudos “Os malditos” na UFU.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

“Todo mundo odeia o White”: ficção na narrativa histórica

É possível construirmos um conhecimento sobre o passado nos baseando em resíduos que chegam até nós no presente? Registros, documentos, monumentos e vestígios podem demonstrar que existiram pessoas, acontecimentos, instituições e processos reais no passado? Estas evidências podem nos fornecer informações relativamente precisas? Dispondo de métodos científicos, conforme cada cultura e época, podemos transformar essas informações em conhecimento útil para nossas vidas? O teórico literário Hayden White responderia “sim” para todas estas questões. Então porque muitos historiadores lhes fazem críticas tão pesadas – algumas inclusive desonestas – e rejeitam sua obra como um material importante para o estudo da história? Embora eu tenha algumas ressalvas às considerações de White, acredito que esse ataque à obra do teórico se deu por um fator específico: objeção à necessidade de pensar diferente. Sair do ritual burocrático e reprodutivista é uma emergência não apenas na história, mas na vida. Hayden White (e o giro-linguístico) ao colocar um desafio para o ofício do historiador, também deu a estes profissionais uma ótima oportunidade de mudança. Mas que desafio oportuno é esse? Nas linhas a seguir percorro algumas das questões apresentadas no texto: Teoria literária e escrita da história, publicado pela revista Estudos Históricos em 1994.

A discussão sobre a presença (intrínseca) da ficção na história não significa a impossibilidade de sabermos verdades sobre o passado. Essa questão é dirigida a um produto específico do saber histórico: o texto historiográfico. Mais precisamente: a narrativa que compõe o discurso histórico. Este é o objeto de pesquisa de Hayden White. O autor não questiona a tangibilidade da realidade histórica, mas os instrumentos que mediam esse conhecimento. Tudo porque a história (que não é o passado desenrolado, vivenciado e experimentado) só pode ser lida; mas, sobretudo, antes disso, precisa ser escrita. Portanto, a re-experiência com a história é dependente do modo diferenciado com que lidamos com a linguagem.

A problemática de White se desenrola justamente sobre o uso que o historiador faz da linguagem como mediação para o conhecimento histórico e para a representação do passado. A preocupação crucial de sua obra é entender a forma, crendo que ela é indissociável e interfere de modo cabal no conteúdo. “A linguagem nunca é um conjunto de formas vazias esperando para serem preenchidas com um conteúdo ‘factual’ e conceitual ou para serem conectadas a referentes [apontadores para ‘coisas’ fora do texto, segundo Saussure (2006)] pré-existentes no mundo, mas está ela própria no mundo como uma ‘coisa’ entre outras e já é carregada de conteúdos figurativos, tropológicos e genéricos antes de ser atualizada numa enunciação qualquer” (WHITE, 1994, p. 27). Portanto, a linguagem é também um produto cultural específico de cada sociedade numa dada época; permite “liberdades controladas” e possui regras próprias que são diferentes dos acontecimentos desencadeados na realidade. Podemos entender a colocação de White como um puxão de orelha nos historiadores (modernos) que patinaram em seu próprio terreno: ao se preocuparem em entender a historicidade de seus “objetos de pesquisa” esqueceram, até certo ponto, de problematizarem a própria historicidade dos meios com os quais transmitiam suas pesquisas; acreditando que a linguagem era um meio natural e transparente tanto para a representação do passado, como para expressão de seus pensamentos sobre os eventos narrados.

White faz uma diferenciação entre evento passado e evento histórico (ou evento e fato). Tudo o que aconteceu é do âmbito dos eventos passados, mas apenas o que é resgatado é histórico. No livro Meta-história, ele chama esses eventos do passado de crônica, que seria o que o historiador reúne e atribui mais ou menos a um acontecimento, um pertencimento, uma época e etc. Entretanto, a conectividade entre esses eventos seria concebida através de procedimentos discursivos, como a estória e o enredamento (processo de enredo), que são as construções ordenadas – causa e efeito – ou relacionamentos de outro tipo entre eles mediados por uma trama ou gênero (estória romanesca, comédia, tragédia e sátira). Acontece que, apesar de lidar com o conhecimento histórico, a informação sobre os eventos históricos em si não é histórica, segundo White. São ferramentas e modos de construção textual meta-históricos, similar as estruturas linguísticas utilizadas numa ficção literária.

Mais do que isto, esse discurso histórico não produz informação nova sobre o passado. Qualquer informação nova ou velha é recolhida no trabalho prévio do historiador quando busca a verdade resgatando informações esquecidas ou suprimidas (neste primeiro processo um ofício parecido com o do jornalista e do detetive). Portanto, tais informações são uma pré-condição para a existência do discurso histórico. Só que, o mais interessante, segundo White, é que os direcionamentos dos referentes para o histórico são exercidos pela narrativa. É ela que “encanta” o texto criando a noção de histórico, como uma máquina de girar fotogramas (princípio do cinema) “imita” o movimento. Neste processo, a função da narratividade mistura discurso científico e literário, literal e figurativo, sendo impossível dissociá-los. É verdade que alguns historiadores acreditavam (e ainda acreditam) na capacidade de distinguir o discurso factual e conceitual do linguístico e literário, mas, para White, isso foi uma tentativa de afirmar o caráter de verdade de seu ofício, assegurando-o em elementos das ciências exatas.

White não diz que história e literatura são as mesmas coisas. “O discurso literário pode diferir do discurso histórico devido a seus referentes básicos, concebidos mais como eventos ‘imaginários’ do que ‘reais’, mas os dois tipos de discurso são mais parecidos do que diferentes em virtude do fato de que ambos operam a linguagem de tal maneira que qualquer distinção clara entre sua forma discursiva e seu conteúdo interpretativo permanece impossível” (1994, p. 28). Essa aproximação se dá na medida em que existe mais interpretação do que descrição e explicação no discurso histórico. E ainda porque ao explicar um evento do passado, o discurso histórico recorre a informações geralmente contidas no próprio texto; ocorrendo uma tentativa de convencimento auto-referencial. Durante a narrativa, o historiador usa mais elementos trópicos (referentes à própria linguagem enredada) do que lógicos que, por sua vez, causam não apenas verossimilhança, mas também prazer ao leitor (o que está longe de ser um problema).

O encadeamento dos eventos na estrutura da obra – começo, meio e fim; desfechos e viradas; nó e desfecho – são operações da escolha e da perspectiva do historiador e interferem sobremaneira na composição representativa do passado. É o historiador que escolhe o enredamento dos eventos. “Existiria uma estória intrinsecamente trágica ou depende da perspectiva?”, questiona White. Enredando, os tropos são operados na história. “Isso acontece porque as histórias não são vividas, não existe uma estória ‘real’. As estórias são contadas ou escritas, não encontradas. E quanto à noção de uma estória ‘verdadeira’, ela é virtualmente uma contradição em termos. Todas as histórias são ficções. O que significa, é claro, que elas só podem ser ‘verdadeiras’ num sentido metafórico e no sentido em que uma figura de linguagem pode ser verdadeira” (WHITE, 1994, p. 32).

É preciso, portanto, que se atente para a diferenciação entre realidade passada e discurso historiográfico. Os eventos do passado não são fatos históricos a não ser que sejam feitos, por isso a necessidade de não confundir fatos com eventos. Os eventos acontecem, os fatos são constituídos pela descrição linguística. Segundo White, “acontece uma pane na consciência histórica quando se esquece que a ‘história’, no sentido tanto de eventos, como de relatório de eventos, não acontece apenas, e sim é feita” (p. 36). Contudo, o autor não defende a inexistência da linha que separa narrativa histórica e ficção literária, mas ela é tão tênue quanto impossível de ser detectada. O aspecto figurativo e ficcional dos textos históricos e dos textos literários não desqualificam suas verdades. Para White, é absurdo supor que somente porque um discurso é anunciado no modo de uma narrativa, ele tem de ser mítico, ficcional, imaginário ou ‘não-realista’ naquilo que nos diz sobre o mundo. A verdade e o realismo são sempre culturalmente determinados e variam de cultura para cultura.  Em contrapartida, “será que alguém acredita seriamente que o mito e a ficção literária não se refiram ao mundo real, não digam verdades sobre ele e não forneçam um conhecimento útil a seu respeito?” (ibid., p. 39). Neste ponto, White inclusive se afasta de alguns estetas que consideram que a literatura e a arte não possuem nenhuma conexão com o mundo de fora e referencial.

White defende sua “teoria tropológica” como instrumento necessário para a pesquisa do passado e para a construção do discurso histórico, por isso rebate algumas críticas dos historiadores. Esta teoria não é relativista porque não coloca em discussão a percepção, mas a representação simbólica da linguagem. Também não é determinista porque, ao estudar e compreender a linguagem permite ao historiador a escolha livre e consciente das opções para diferentes estratégias de figuração. A teoria de White não nega a existência de realidade extra-discursiva. Nem tudo é fala, linguagem, discurso ou texto. Mas defende que a representação e a referencialidade linguísticas são assuntos mais complicados do que as noções literalistas do discurso. Por último, a teoria tropológica não destrói a distinção entre fato e ficção, mas redefine as relações entre os dois dentro de qualquer discurso.

* * *

Pitaco safado: as críticas dos historiadores a Hayden White são exageradas demais. O meio-tom de ressentimento e de desconhecimento da obra é nítido em muitas das acusações. Em grande medida, o autor parece apenas preocupado em justificar a plausibilidade de seu trabalho e sua possível utilidade para os historiadores. O conflito entre historiadores e o White também se dá por uma questão de princípios filosóficos. Por exemplo, o tratamento a noção de verdade que o autor trabalha é diferente da maioria dos historiadores. Neste sentido, White possui uma inspiração nietzschiana de uso e de valor da verdade, enquanto muitos historiadores ainda estão preocupados em defender a ferro e fogo suas verdades - e até impô-las coletivamente em alguns casos. O teórico parece estar mais preocupado com as construções destas verdades como prerrogativas que podem justificar (e justificam) uma hierarquia moral e um projeto universal ao preço da pluralidade de interpretações e de perspectivas da realidade. Acima de tudo, e o mais importante, as críticas literárias de White podem servir para os historiadores repensarem os usos que fazem da história, propondo antes da transformação do mundo, a transformação de si mesmos e de seus ofícios. Emergencial: se o tempo é mudança, por que os instrumentos e o trabalho do historiador devem permanecer sempre os mesmos?  
Referências:
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2006.
WHITE, Hayden. Meta-história: A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995.
WHITE, Hayden. Teoria da literatura e escrita da história. Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 21-48.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Por que Nietzsche não é um filósofo relativista?

A afirmação de que Nietzsche é um relativista aparece frequentemente em autores acadêmicos e nos murmurinhos daqueles que se viram ofendidos pela filosofia abrasiva do bigodudo. Essa incompreensão, às vezes cínica e intolerante, permite que vinculem a filosofia de Nietzsche à chamada corrente “pós-moderna” (embora muitos sequer consigam dizer como esta se configura e quem dela faz parte). Podemos considerar que os trabalhos de alguns filósofos contemporâneos foram inspirados nos escritos nietzschianos; entretanto, isso não significa que eles seguiram totalmente Nietzsche, tampouco o utilizaram de maneira idêntica. Esta ocorrência demonstra a impossibilidade de reunir sob uma mesma escola, ou corrente de pensamento, pesquisadores tão diferentes. Independentemente da acusação de quais filósofos são relativistas, o que este post pretende sustentar é que estes não podem ser comparados à Nietzsche sob esse mesmo “adjetivo”.

A teoria nietzschiana do conhecimento é baseada não no relativismo, mas no perspectivismo. Existe diferença? A diferença é sutil, mas de uma relevante consequência. A definição didática do relativismo epistemológico, cético ou sofístico, estabelece que “as formas de apreensão do mundo variam conforme o ponto de vista”; o perspectivismo afirma a impossibilidade de atingirmos a realidade por trás de nossas perspectivas (ROCHA, 2004, p. 213). O relativismo integra o perspectivismo, mas suas consequências são distintas, porque enquanto o relativismo advoga que o conhecimento depende do ponto de vista, o perspectivismo, apesar de concordar, ressalta que não é possível um ponto de vista exterior ao mundo. Parece pouco (ou nulo) por enquanto, mas veremos logo que a diferença é significativa.

Em muitos pontos, as duas teorias vão coincidir. A noção de perspectiva sugere que para conhecer é preciso colocar-se em relação a alguma coisa. Ao assumirmos uma posição vamos, por conseguinte, excluir outras. A posição que ocupamos interfere diretamente na compreensão do que nos colocamos para conhecer. Portanto, não é possível obter um conhecimento total da coisa, apenas parcial, escasso e fragmentário. Mesmo se ocupássemos várias posições o tempo seria diferente em cada vez (no deslocamento) que formularmos nossa percepção. Ainda assim, vão existir duas posições impossíveis de se ocupar: o lugar da própria coisa que pretendemos conhecer e o lugar sensível do “conhecedor”. Pois, como afirma Wittgenstein: “vemos por intermédio do olho, mas o olho é aquilo que não vemos”.

Além da limitação do conhecimento, outro agravante sobre as perspectivas é que elas são – ou podem ser – antagônicas; assim, a soma delas é incongruente. Mais do que isto, “tudo o que oferece à consciência humana passa necessariamente pelas formas da nossa percepção e pela estrutura da linguagem, que não podemos transcender. A consciência age como uma lente que se interpõe entre o olhar e o mundo” – isso desconstrói a tese antropocêntrica do sujeito conhecedor. Entretanto, a perspectiva não é apenas o que limita nosso conhecimento, é o que o torna possível também. Não há nada para perceber além das perspectivas, até porque “esta investigação teria o lugar no interior de uma perspectiva” – a menos que fosse um ser metafísico como “Deus” (p. 215).

Bom, se tudo é relativo, esta afirmação também é relativa, certo? Se o conhecimento é uma questão de perspectiva, essa formulação é apenas mais uma perspectiva? Isso quer dizer que a própria teoria se refuta? Aqui está a distância entre o relativismo e o perspectivismo. Pois, para Nietzsche, os céticos (relativistas e negacionistas) quiseram negar toda a verdade, embora não quiseram se desfazer desta afirmação que, por tabela, era também uma mentira (dentro desta lógica de raciocínio). Alguns teóricos, como Sarah Koffman, tentaram salvar Nietzsche deste paradoxo, dizendo que sua teoria do conhecimento era uma meta-perspectiva, uma ferramenta que se encontrava acima das outras perspectivas e que, portanto, só ela estava salva do próprio método. Mas, o bigode deixa claro em seus escritos (Além do bem e do mal, Vontade de potência e Aurora) a não-contradição de sua tese sobre o conhecimento. A saída vem de duas formas: a primeira é que enquanto o cético mantém uma relação de dúvida ou de hipótese com o que quer conhecer, Nietzsche mantém o de suspeita. A dúvida é inicial e pressupõe resposta, a hipótese infere que existe uma certeza possível de ser verificada através de uma investigação, já a suspeita admite permanecer na incerteza, inclusive na incerteza da perspectiva que enuncia seus juízos sobre a coisa a conhecer.

Se viver na incerteza pode ser algo angustiante, mesmo sabendo que se acredita nas mentiras apenas pela segurança, a segunda saída parece mais atraente. O conceito “vontade de potência” demonstra o deslocamento da reflexão nietzschiana em relação ao conhecimento: trata-se de por em questão o valor do conhecimento, e não mais sua verdade. Ou ainda: trata-se da concepção de que o valor do conhecimento não reside em seu teor de verdade, mas em sua capacidade de criar e instituir valores que prescindem dessa “verdade”. É por isso que Nietzsche escapa da crítica ao ceticismo (relativista ou negacionista) ao passo que o cético pretende dizer a verdade quando afirma que não há verdade, enquanto o filósofo alemão recusa essa pretensão (p. 220).

Martelada nos relativistas e nos positivistas: a filosofia de Nietzsche não ensina apenas que o mundo admite uma pluralidade de interpretações, nem que o ser tem por essência mostrar-se segundo uma infinidade de pontos de vista; pois a primeira implicaria num antropocentrismo onde o conhecimento só depende do homem, e o segundo acaba mantendo um ser por trás das aparências, quando na verdade só é possível compreendê-lo e existir através das aparências mediadas pelas perspectivas. Esta crítica incide de modo capital sobre o conhecimento da “coisa em-si” ou da superioridade dos fatos sobre as interpretações. Não existe “coisa em-si” a priori, já que o conhecimento que pressupõe uma relação que é sempre um a posteriori. O objeto do conhecimento não tem uma fase verdadeira pura, são apenas máscaras, por mais que se retire uma, aparece outra, e outra, e outra...

Colocando de uma maneira mais clara, Nietzsche não desconsidera que exista um mundo para além das representações. Mas, conhecê-lo somente é possível por uma dobra ativada pela relação que percebe que “as construções perspectivas são a representação de um mundo constituído” (p. 217).

O crucial da teoria do conhecimento de Nietzsche é sua afeição ética e coerente. O conhecimento não busca uma verdade universal, mas uma “verdade” que tenha valor para a própria vida. Da mesma maneira, o perspectivismo não é capaz de aceitar sua absolutização, até porque não pode se fundamentar epistemologicamente. Tendo em vista que em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche escreve o seguinte: “o que precisa ser demonstrado não tem grande valor”. Demonstrar é o mesmo que buscar um fundamento e um repouso sobre outra coisa que não si mesmo. “Em contrapartida, o que não precisa ser demonstrado revela por si mesmo seu caráter inteiramente afirmativo. Não recorre ao exterior para se legitimar. A filosofia de Nietzsche não precisa ser demonstrada, pois retira sua validade e coerência dessa impossibilidade. O caráter indemonstrável do perspectivismo em vez de comprometê-lo, é a prova de sua coerência. Ao contrário do ceticismo, o perspectivismo não pretende excluir das ilusões que denuncia, ao se incluir nas ilusões que procura descrever, retira seu próprio fundamento em si mesmo” (p. 221).

Referências:

*Este texto segue a inspiração (e resenha) de: ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo. Revista ‘O Que Nos Faz Pensar’: Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Rio de Janeiro, n° 18, set., 2004, p. 213-226.

NIETZSCHE, F. O crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.
NIETZSCHE, F. Aurora. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WITTGENSTEIN, L. Cadernos: 1914-1916. Lisboa: Edições 70, 2004.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Anarquia made in USA

Complementando o texto "O homem que venderá o mundo", neste post procurarei expor as críticas do anarco-capitalista David Friedman ao Estado. Também vou aproveitar a oportunidade para abordar algumas ideias presentes no livro Anarquia, Estado e Utopia [1974] de Robert Nozick, ex-professor de filosofia da Universidade de Havard e um destacado teórico político do libertarianismo da terra do Tio Sam.

A defesa da anarquia capitalista de Friedman se assenta diretamente na crítica contumaz do Estado e do governo. O autor define o governo como uma “agência de coerção legitimada”, similar a outras organizações criminosas que existem no interior do Estado. A única diferença é que a máquina estatal tem garantido o exercício da violência e da coerção através da aceitação da maioria da população. Podemos fazer uma comparação com a máfia que age nas brechas do Estado ou que possui parceria velada com determinados governantes. Um exemplo é o “poder paralelo” de facções criminosas que atuam em favelas e que desenvolvem corporações específicas, como o caso do PCC no Brasil. Sabe-se que o PCC possui um código de regras para quem deseja filiar-se ao “partido”. Ao assinar este contrato o membro tem garantido uma série de privilégios e de benefícios. Como, por exemplo, o direito de sua família receber uma determinada quantia financeira caso ele vá preso e não possa cumprir suas funções lucrativas dentro da cadeia. Entretanto, ele é obrigado a arcar com os “impostos mensais” e seguir regras de conduta acordadas assim que se une a “corporação”. Ou seja, este contrato assegura direitos e deveres assim como funciona sob o Estado moderno. Contudo, o PCC, embora seja uma organização criminosa, em tese não age de maneira coerciva contra aqueles que não queiram participar da facção. Já o Estado, não. Obriga a todos, que vivem no mesmo território, a obedecerem as suas regras, mesmo que não tenham assinado nenhum tipo de contrato prévio, tampouco queiram receber os benefícios que a arrecadação fiscal presume redistribuir.

Nozick concorda com Friedman. O Estado é imoral e ilegal. Para Nozick, ele é imoral porque no caso da redistribuição de impostos, ele usa o indivíduo como um instrumento utilitário para o “bem de todos”, quando na verdade, está fazendo este serviço apenas em benefício dos governantes, segundo Friedman. Nozick diz que o Estado (de Rawls), alargado e social, não leva em consideração a autopropriedade e a justiça histórica, mas apenas age pensando num pragmatismo teleológico baseado no “fim em si mesmo”. Já Friedman, compara a Receita Federal com o ladrão, por tomar seu dinheiro sem que ele aceite. Ele diz que não é justificável o argumento que é um mal para seu bem no futuro, pois é como se um ladrão roubasse seu dinheiro e prometesse lhe devolver futuramente em pequenas parcelas; portanto, para que este serviço seja legal é preciso que o cidadão queira. Essa crítica de Friedman à Receita Federal lembra a de Proudhon, quando o último disse que aquele que cercou um pedaço de terra e disse que era seu, sem nada nele prover, estava cometendo um roubo.

Nesta mesma linha, que direciona a crítica à coação estatal, Friedman ataca a obrigatoriedade do serviço militar: “Imagine que um empregador privado, oferecendo baixos salários e longas horas de trabalho desagradável, não conseguiu encontrar trabalhadores suficientes e solucionou o problema escolhendo homens aleatoriamente e ameaçando prendê-los caso se recusassem a trabalhar para ele. Ele seria indiciado por sequestro e extorsão e absolvido por insanidade. É exatamente assim que o governo contrata pessoas para lutarem uma guerra ou participarem de um júri” (FRIEDMAN, 1973, p. 92).

Assim como os anarquistas clássicos, Friedman advoga que a anarquia não é o caos. Ele acredita numa espécie de “encaixe” de interesses entre os homens (à maneira de Smith). Os fatos cotidianos acontecem de maneira espontânea, sem atuação do governo, isso mostra que não é necessário o uso da força para que a vida se desenvolva de uma maneira relativamente harmônica. É possível a substituição do governo por formas de cooperação, entre os indivíduos, estabelecidas por acordos privados que cumpririam somente as funções indispensáveis que o Estado exerce atualmente. Numa sociedade libertária, do ideal friedmaniano, cada pessoa é livre para fazer o que bem entender consigo e sua propriedade desde que não use nenhuma das duas para iniciar a força contra outros.

Nozick (na imagem ao lado), embora não deixe explícito, entende essa sociedade de Friedman não como anarquia, mas como Estado ultramínimo. Este estágio decorreria de uma consequência da anarquia, que pode ser entendida como o “estado de liberdade na natureza” de Locke. Neste “estado de natureza”, os homens dispunham de uma liberdade perfeita, estavam livres para organizar seus atos e dispor de seus bens e pessoas sem depender ou pedir licença a outro homem. Os limites da lei de natureza foram ultrapassados quando os homens prejudicaram a vida, a saúde, a liberdade ou a propriedade de outrem. Como reação, o prejudicado tinha o direito de procurar equiparação através de suas próprias forças, mas essa medida de equidade nunca foi precisa podendo ser excessiva e injusta; além disso, certos homens poderiam não dispor de força para sozinhos buscarem a restituição. Então, criaram-se associações de proteção (e a organização política caminhou para uma espécie de “Estado ultramínimo” ou muitos Estados espalhados e “competindo”), que submetem seus clientes as suas normas, punindo-os e restituindo-os conforme as leis que eles mesmos pagaram para ter. Entretanto, a disputa entre as várias associações (o monopólio das maiores) e entre os membros de associações diferentes mostraram entraves nas execuções jurídicas, até que se criou uma Associação de Proteção do Dominante, o início de um “Estado mínimo”.

O livro de Nozick quer mostrar de como da anarquia surgiu um tipo de Estado mínimo, mas sem recorrer ao argumento de que ele foi imposto pela violência. “Da anarquia gerada por grupamentos espontâneos, associações de proteção mútua, divisão de trabalho, pressão do mercado, economia de escala e auto-interesse racional surge algo que se assemelha muito a um Estado mínimo ou a um grupo de Estados mínimos geograficamente distintos” (NOZICK, 1991, p. 81).

É o Estado mínimo que Nozick defende. Ele entende que o Estado deve se restringir as funções de proteção contra a força, o roubo, a fraude e a fiscalização do cumprimento de contratos. O “Estado não pode usar sua máquina coercitiva para obrigar certos cidadãos a ajudarem uns aos outros ou proibir atividades a pessoas que desejam realiza-las para seu próprio bem ou proteção” (p. 09). Sua argumentação parte da contraposição dos anarquistas ao Estado, assim ele escreve: “Estudo com toda seriedade alegação anarquista de que, na manutenção de seu monopólio do uso da força e da proteção de todos dentro de um território, o Estado tem que violar direitos individuais e, por conseguinte, é intrinsecamente imoral” (p. 11).

A crítica de Nozick é dirigida ao trabalho de John Rawls (em Uma teoria da justiça). O libertarianismo de Nozick rejeita o alargamento do Estado (ou Estado social) utilizando a “teoria da titularidade”, como base de justiça social: justiça na aquisição (posse no caso da ausência de um dono e a utilização desta propriedade da maneira que bem entender), justiça na transferência (herança, doação e troca – compra e venda) e retificação na justiça (direito de restituição por dano). Sobre o princípio de retificação, Nozick chega a afirmar que as terras americanas deveriam ser devolvidas aos índios, respeitando, assim, um direito consuetudinário. Entretanto, ao basear-se numa noção de justiça histórica o autor acaba vendo que sua teoria pode ser bastante alargada, embora não aceite essa possibilidade. Como, por exemplo, partindo do pressuposto de que não sabíamos quem era o verdadeiro dono da terra e ela foi adquirida por roubo ou fraude, então ela deveria ser desempossada, funcionando um socialismo (socialização dos bens e dos meios usurpados), mas ele diz que não devemos pagar tanto pelos nossos pecados. Obviamente, o filósofo – com tom de ironia – é contra o socialismo, já que defende a propriedade privada com veemência. Todavia, por ter uma sociedade fundamentada no contrato espontâneo entre os indivíduos livres, ele diz que caso queiram, os cidadãos, dentro de um “Estado mínimo não-coercitivo”, podem formar comunas ou mesmo fundarem um comunismo através dos contratos mútuos, porém não podem forçar os que não querem viver sob as mesmas regras e acordos (diferentemente da imposição do “socialismo real”).

Referências:

FRIEDMAN, David. As engrenagens da liberdade: guia para um capitalismo radical. Portal Libertarianismo Estudantes pela Liberdade. Ebook, s/d [ano da primeira publicação: 1973].
NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
ROSAS, João Cardoso. A concepção do estado em Nozick. Crítica: Revista de Filosofia, 2009. Disponível em: http://criticanarede.com/nozick.html

terça-feira, 5 de junho de 2012

“Apologia da história” de Marc Bloch: a ciência de historiar

Fuzilado em 1944 pela Gestapo (polícia nazista) durante a resistência francesa contra a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial, o autor de Apologia da história ou O ofício do historiador deixou sua obra de metodologia histórica incompleta. Francês e judeu, Marc Bloch que fundou, juntamente com Lucien Febvre, a Escola dos Annales (um marco para a pesquisa histórica) foi um dos mais importantes historiadores de todos os tempos. Neste post, procuraremos percorrer alguns pontos interessantes do livro mencionado.

Logo na introdução existe uma reflexão crucial para o historiador, a de que vivemos numa sociedade histórica. As civilizações ocidentais (gregas e latinas) que antecederam as sociedades modernas eram, segundo Bloch, compostas por povos historiógrafos. O cristianismo é uma religião de historiador. Podemos ver esta questão presente também no trabalho de Hannah Arendt. Contudo, a autora é mais cuidadosa ao distinguir as noções históricas entre gregos e latinos. “A filosofia cristã rompeu com o conceito de tempo da Antiguidade, porque o nascimento de Cristo, tendo ocorrido num tempo humano secular, constitui não só um novo princípio como também um acontecimento único e sem repetição” (ARENDT, 1988, p. 22). Embora os gregos possuíssem culturalmente a história, como mostrou Bloch, o conceito circular estava intrínseco aos ciclos da Antiguidade. Os assuntos humanos nunca eram completamente novos, apenas se repetiam; o que aparecia como algo novo eram apenas os homens das novas gerações; assim, todos estavam predestinados a contemplar um espetáculo natural ou histórico que era sempre o mesmo. Os conceitos cristãos de "História" e de "vida eterna" romperam com esse ciclo.

Entretanto, Bloch adverte com tom pesaroso que as civilizações podem se modificar deixando de ser históricas; pois existe o perigo de jogar a “boa história” no buraco junto com a “má história”. Este trecho marca dois posicionamentos do autor. O primeiro é o tom moralista que acompanha o livro de Bloch; a separação entre os bons e os maus, os verdadeiros e os mentirosos e, logo, os que mandam e os que obedecem. O segundo é a pretensão de que seu livro seja não somente uma introdução aos estudos históricos, mas também uma defesa da legitimidade e da cientificidade da História.

Em seguida o autor trata de estabelecer a diferenciação entre legitimidade e utilidade. A história, para Bloch, não deve ser encarada de modo pragmático como uma ciência técnica que precisa sanar um problema imediato, pois sua utilidade pode ser justificável pelo simples desejo de matar a fome intelectual do pesquisador e do leitor. Isso não exclui que sua “utilidade”, cedo ou tarde, seja nos ajudar a viver melhor. Sua legitimidade encontra a defesa justificada no seu oposto, isto é, a desqualificação e a depreciação da história só servem a um propósito: a ignorância.

Podemos notar que, durante o texto, Bloch procura estabelecer espécies de conciliações mediadas pelo bom senso do pesquisador em história. Opinando numa discussão, datada do início do século 19, sobre se a história é arte ou ciência, Bloch diz que uma não exclui a outra; e é importante que a história se alimente das duas fontes sem cair no extremo de nenhuma delas. Bloch critica seus ex-professores, os historiadores da Escola Metódica Francesa, aos quais se reporta como “positivistas” herdeiros de Comte, pois além de considerarem a História uma ciência menor em relação às ciências exatas (a tal ponto de apagarem sua plausibilidade e originalidade), também fizeram do trabalho do historiador algo tão técnico quanto impossível. A principal crítica de Bloch aos metódicos se refere à crença na neutralidade e no apagamento da subjetividade e intencionalidade do pesquisador durante o uso dos documentos. Bloch defende que a poesia e a imaginação não retiram a “cientificidade” da História, por isso ela pode atender tanto a sensibilidade como a inteligência. Mantendo a coerência com o equilíbrio, o francês tece crítica também aos historiadores alemães que tomam a História como uma espécie de jogo estético ou um “exercício de higiene benéfico à saúde do espírito”. No entanto, apesar da conciliação entre arte e ciência, Bloch é categórico em considerar que a História é uma ciência.

Se toda ciência possui um objeto, qual é o da História? Bloch diz que não é o passado, pois este não é palpável e não é específico a somente uma ciência (a geologia estuda o passado das formações rochosas, a geografia as mudanças climáticas através dos sedimentos, a química a constituição do sol); mas em nenhuma delas o homem (e sua ação) está presente como elemento principal. Portanto o objeto da história são os homens (no plural). “São os homens que [a história] quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está sua caça” (BLOCH, 2001, p. 54). Mas o objeto de pesquisa dos historiadores não é simplesmente "os homens". Além do homem, o historiador pensa também o tempo e a duração. Em última instância, a história é a ciência dos homens no tempo. E esse tempo é, por natureza, um continuum e também perpétua mudança. Ou seja, o tempo não pára, se desenrola, não possui pausa nem ruptura, mas a todo o momento se modifica. Significa dizer que o tempo não é cíclico e repetível, como pensavam os gregos antigos.

Para que serve a História? Novamente aparece uma conciliação. Agora entre passado e presente (solidariedade entre as épocas). Bloch acha que não é possível entender o presente sem estudar o passado, e também não é possível compreender o passado sem estudar o presente (quem conhece ambos sabe agir melhor sobre o presente). Neste caso o historiador quer reconstruir um filme do qual só possui o final (o presente), isto é, o último fotograma está completo e todos os outros estão em pedaços, em vestígios que precisam ser encaixados como as peças de um quebra-cabeças. No ofício do historiador, a primeira condição para interpretar os documentos e formular corretamente os problemas é observar a paisagem do hoje. Aqui uma mudança significativa em relação aos historiadores metódicos que, em vez de interpretarem os documentos, apenas queriam transmiti-los reescrevendo-os.

O vínculo passado-presente é delineado através das trocas culturais com gerações anteriores, pela oralidade e pelos escritos e ocupam funções importantes nas transmissões de pensamento que fazem praticamente a continuidade de uma civilização. É necessário, entretanto, compreender os homens conforme a sua época, pois eles se parecem mais com seu tempo do que com seus pais. Tanto é que Bloch critica o historiador que busca explicar o “mais próximo” pelo “mais distante” (o ídolo das origens). Esse tipo de historiador acredita que a causa (explicativa) está num passado remoto, por isso desce às profundezas antes de compreender o presente e o passado recente, crendo que tudo já estava dado num princípio original. Esse seria um movimento rumo ao infinito, pois assim que chegasse num “ponto originário” precisaria compreender qual foi a causa deste ponto, voltando cada vez mais para trás, atrás de causas das causas.

Quais são as técnicas principais de pesquisa do historiador? Comparação, intuição e bom senso. Bloch compara o trabalho do historiador ao do detetive que tenta reconstituir a cena de um crime sem tê-lo presenciado. Então é através dos testemunhos (todos os tipos de vestígios do passado) que o historiador procura reconstruir a trama histórica. Neste trabalho, ele precisa comparar todos os tipos de documentos. Não apenas recorrer às fontes escritas, mas a todos os resíduos deixados como pistas. Aqui o historiador se mostra "subserviente" às fontes e aos documentos. Afinal sem estes não é possível fazer uma pesquisa histórica. Como, por exemplo, não é possível reconstituir a mentalidade íntima dos homens no Império Merovíngio, porque não existem cartas ou diários particulares na sociedade desta época. Geralmente, os historiadores dão mais créditos aos documentos involuntários, que são os documentos que não foram fabricados para serem repassados a gerações futuras (como guias de viagens “enterradas” nas tumbas egípcias). E questionam ainda mais as intencionalidades dos documentos voluntariamente escritos para o futuro, como o livro Historie, de Heródoto.

Ao fazer um recorte temático e pretender responder a determinadas perguntas, o historiador precisa ter um roteiro para questionar os documentos e fazê-los falarem mesmo a contragosto. Enfim, é preciso saber questionar os documentos, traçar uma direção e um objetivo quando utilizá-los. Informar ao leitor tanto sobre os meios utilizados de pesquisa, como sobre os fins aos quais se pretende chegar é um trabalho necessário que demonstra honestidade intelectual do historiador e que causa prazer nos seus interlocutores.

Entretanto, não existe um tipo certo, preciso e específico de documento para responder a uma determinada pergunta. Todos os documentos são valiosos. Contudo, para cada tipo de documento é necessário usar uma ferramenta adequada para analisá-lo. Por isso, o historiador deve conhecer minimamente as principais técnicas de seu ofício e saber utilizá-las de modo específico para cada tipo de documento.

Além da comparação com outros documentos da época, o historiador precisa a todo o momento utilizar a crítica como elemento de trabalho. Nem sempre é cabível confiar inteiramente em sua fonte ou no documento analisado – nem desacreditar em tudo também. Em busca da mentira e do erro, o historiador precisa estar atento à manipulação de documentos referentes ao autor, à data e ao conteúdo. As cartas assinadas por Maria Antonieta, por exemplo, são falsas porque foram fabricadas no século 19. Tal constatação foi possível ao comparar cartas da época (tipos de papel, desenho das letras e figuras de linguagem). Porém, a mentira também é um testemunho histórico rico para o historiador entender as intencionalidades. O relato do soldado francês Marbot, que diz ter vencido sozinho um batalhão na guerra contra a Alemanha no início do século 19, é uma mentira, pois nada consta do ocorrido nos documentos alemães, nem nos dos soldados franceses. Sabe-se depois que chegou um pedido de promoção militar feito a Napoleão, escrito por Marbot. Além disso, erros inintencionais do próprio contexto podem acontecer frequentemente e, nesse caso, a historiografia recorre a psicologia do testemunho. Sobretudo, para entender como a familiaridade de uma situação pode torná-la invisível pela sociedade que a vivencia, ou mesmo, identificar momentos de pânico, cansaço, medo e angústia que podem atravessar os relatos, modificando-os de diferentes formas. A maioria destes aspectos pode ser compreendida à luz da atmosfera social do período.

A crítica da comparação poderia ser minada pelo argumento de que a invenção, a criação e “o novo” podem não ser considerados verídicos. Como exemplo, um documento afirmando terem inventado o avião na Idade Média, embora não tenham divulgado a invenção. Ou, ainda, terem descoberto a teoria da relatividade (antes de Einstein) no século 18. Nesse caso, Bloch se defende dizendo que mesmo que algo novo seja inventado, criado ou descoberto é preciso que haja vestígios anteriores do passado que demonstrem o avanço capaz de possibilitar o “novo”. Aqui, podemos fazer uma crítica ao “pai dos Annales”. Parece-nos que Bloch ainda se prende a uma noção de história de acúmulo, que só considera o novo como somatória e determinação a partir do antigo. Tanto é verdade que Bloch acredita ter uma vantagem de superioridade para enxergar a totalidade da história em relação aos historiadores antecedentes.

(* Essa resenha se refere somente à Introdução e aos três primeiros capítulos do livro).

Referências:

ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo/Brasília: Ática/Ed. UnB, 1988.
BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

Leia tambémHistória: arte ou ciência? (post de 01 abr. 2013) 
 
Real Time Analytics