sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Arqueologia do saber histórico: Rancière e a “geografização do sentido”

"As cartas de amor nunca falam de amor".
 Jacques Rancière


O texto a seguir trata-se de uma resenha da arqueologia feita por Jacques Rancière (1995) sobre a narrativa historiográfica da “Nova História”, a partir do livro O Mediterrâneo, de Braudel. A análise crítica de Rancière passa sobretudo por Hobbes e Michelet e é de uma densidade que qualquer resenha ou resumo deixaria a desejar. Posto isso, o que escrevo aqui tem apenas o intuito de apresentar as principais questões e levá-los à leitura do autor.

Em O Mediterrâneo, depois de mais de mil páginas de texto, Braudel no “fim” da narrativa nos conta um acontecimento que não contara em seu “meio”: a morte do rei Filipe II. A razão para o historiador não contá-lo em “seu lugar” é a mesma de falar dele agora, no final, “fora de lugar”. Ou seja, no “não-lugar”, que passa a ser o gênero do acontecimento. Isto faz parte do programa da “Nova História” identificada aos Annales: “a morte deslocada de Filipe metaforiza a morte de uma certa história, a dos acontecimentos e dos reis” (p. 205) . A morte do rei não é mais um acontecimento, pois “eles” morreram como força da história. Ainda assim, é preciso que o historiador conte esse “não-acontecimento”, a morte do rei. Não exatamente o rei “tornar-se-cadáver”, mas o rei “tornar-se-mudo”. A cena não é de um rei em seu leito de morte, mas de “um rei sentado no trono ou em seu escritório. Ali ele é condenado à morte, persuadido de não falar, de não ter nada a dizer. Morto como a letra, mudo como o quadro a cuja solenidade tola o Fedro [de Platão] opunha ao discurso vivo” (p. 206). Esse mutismo do rei é a condição para o historiador entrar em cena, de ser recebido ao lado de um personagem que Lucien Febvre combateu: “o embaixador, o homem dos relatórios diplomáticos que eram o tesouro da velha história, a história-crônica”.

Braudel retrata o rei, diante da mesa de seu escritório, como aquele sujeito que tem por tarefa uma sucessão de detalhes, escrevendo relatórios de acontecimentos das cortes e humores dos reis. Assim, de maneira nada humilde, Braudel escreve: “Não é um homem de grandes ideias. [...] Jamais traçou em sua pena ideias gerais ou grandes planos. Não creio que a palavra Mediterrâneo tenha algum dia passado por sua cabeça com o conteúdo que nós lhe concedemos, tampouco fez surgir nossas imagens habituais de luz e de água azul” (apud p. 207). Rancière aponta que as mesmas considerações (ao rei) poderiam ser dirigidas aos historiadores da “velha história”, a Seignobos ou qualquer outro saco de pancadas dos Annales. As assertivas de Braudel marcam um deslocamento da história dos reis para a do “mar”, isto é, para a história da civilização material, dos espaços de vida, das longas durações e da vida das massas. “No entanto, dois elementos vêm complicar essa cena de adeus [à “velha história”] e transformá-la num quebra-cabeça ao qual faltam algumas peças” (p. 207).

Braudel escreve: “No século XVI, depois da verdadeira Renascença, virá a renascença dos pobres, dos humildes, obstinados em escrever, em se contar, em falar dos outros. Essa preciosa papelada é bastante deformadora, ela invade o tempo perdido, toma nele um lugar fora da verdade. É para um mundo bizarro, ao qual faltaria uma dimensão, que o historiador, leitor dos papeis de Filipe II, sentado em seu lugar, será transportado” (apud p. 207-8). Vê-se aqui que não se trata apenas do discurso da ciência historiadora contra a crônica dos príncipes e dos embaixadores. Entre o rei e o historiador, há a papelada dos pobres. Como compreender a presença dela na mesa do rei, sua relação com o mutismo e a ‘morte’ do rei e com a cientificidade e não-cientificidade da história? É o que Rancière empreende nessa arqueologia de discursos e de práticas historiográficas.

A hipótese de Rancière é a de que a “morte do rei” (na História) se deu porque ele era um produtor de papéis, quer dizer, porque a papelada dos pobres acumulava-se em sua mesa. Sua morte faz parte de um projeto político e científico para garantir o controle das palavras e das coisas. Em último, um problema de governo que precisa ser resolvido. Pois o excesso de palavras é uma das causas de desordem nos saberes e nos seres. Para quem ainda não captou, Rancière está aqui questionando a constituição deste saber-poder a partir de sua base autoritária (pois antidemocrática), porém frágil. Tais fundamentos se alastraram por toda a tradição filosófica que constitui os saberes modernos de diferentes perspectivas e áreas: ciências humanas em geral; hermenêutica, marxismo, estruturalismo, Annales, “nova história”. No entanto, a conceituação filosófica da “morte do rei” enquanto produtor de papelada só foi acontecer um século e meio após a morte de Filipe II, pela pena de Thomas Hobbes.

Em dois capítulos, um em Leviatã e outro em Do cidadão, Hobbes aponta uma causa de doença no corpo político. Mas essa “doença” não se cura ao passar simplesmente de um regime para o outro, do pior para o melhor. Ela é mais profunda! Trata-se de uma questão de vida ou morte para o corpo político, sua conservação ou sua dissolução. Que doença é essa? “...as causas de morte para o corpo político não são mais conflitos de classes ou desequilíbrios na repartição dos poderes. São antes opiniões, questões de palavra e de frases. O corpo político é ameaçado por palavras e frases que se ouvem aqui e ali, em qualquer parte, por exemplo, ‘deve-se escutar mais a voz da consciência do que a da autoridade’, ou ainda, ‘é justo acabar com os tiranos’, frases de pregadores interessados que encontram em demasia ouvidos complacentes. A doença da política é a doença das palavras. Há palavras demais, palavras que nada designam a não ser, precisamente, alvos contra os quais elas armam o braço do assassino” (p. 208). Essas palavras são problemáticas ao controle político na medida em que não há um referente “objetivo” e “particularizado” na realidade para a qual elas pretendem apontar. São nomes que não são nomes de ninguém, nem de coisa alguma. No entanto, é esta condição que permite que elas possam ser aplicadas a qualquer um. Por exemplo, as palavras “déspota” e “tirano” não designam necessariamente um ser, mas estão aí para serem encaixadas ao uso de quem deseja e dos que concordam. Eu diria que atualmente a palavra “fascista” tem servido a esta função por parte da esquerda, ao passo que a palavra “comunista” à direita. Na época de Hobbes, cumpriam o papel de tornar possível o uso de tais palavras (1º) os “homens do verbo encarnado”, pessoas que encontravam no livro da fé profecias tanto para acusar de “tiranos ou déspotas” aqueles que se opunham a expansão de sua religião, como para recrutar os simples; e (2º) os textos que davam vida e consistência à figura do déspota, são textos antigos com histórias de déspotas, com teorias de tirania e de desgraça e poemas em honra aos matadores de reis.

A revolução moderna é antes a revolução dos filhos do Livro, é a condição pela qual o verbo encarnado faz aparecer a liberdade e o despotismo, e engendra a utopia: o que para Hobbes é o mal político; isto é a proliferação dos nomes que matam porque são mal empregados, empregados por pessoas que não deveriam manejá-los. Desordem política gerada pela desordem do saber! A saída para Hobbes é a aliança entre o ponto de vista da ciência e o do lugar real, chamado de “real-empirismo” por Rancière. O “real-empirismo” vai nutrir todo um saber social, o mesmo que aparece na primeira crítica aos “Direitos do homem” feita por Edmund Burke que os chama de “direitos metafísicos”. É colocado em xeque assim a (in)consistência das palavras, há uma caça de palavras idênticas que dizem coisas diferentes (diábolos), ou palavras que não dizem coisa alguma – como se palavras e coisas já estivessem coladas desde os seus nascimentos! Esta tradição filosófica continua viva hoje através do “revisionismo” da Revolução Francesa, por exemplo, quando se denuncia a inadequação das palavras revolucionárias. Então, com esta ciência social pode-se fazer uma limpeza da papelada através da seguinte fórmula: “nada do que aconteceu se assemelha ao que foi dito. Donde a consequência pode ser facilmente deduzida: não aconteceu absolutamente nada”, o que aconteceu foi somente um engano ou um crime de fazerem forçosamente, com palavras e metafísica, uma coisa ser o que não foi.

Deste modo, “estão fundadas a equivalência epistemológica e a intermutabilidade política de dois argumentos [que alimentam o revisionismo da Revolução Francesa]. O primeiro diz que não houve Revolução Francesa, já que a centralização política da nação já tinha sido operada pelos reis e que as relações de propriedade não sofreram mudanças. O segundo diz que ela não foi senão o abismo do Terror, onde, de antemão, toda a época das revoluções e dos socialismos modernos se afundou. O problema é que a história também está ameaçada de se afundar nesse abismo. Pois a sina da história como figura discursiva está ligada a esse mínimo: que alguma coisa às vezes aconteça” (p. 212). O real-empirismo levado às últimas consequências anula o objeto da história, o acontecimento -- como sinônimo de mudança, de novidade, de dissenso, de discussão sobre a (não) relação entre palavras e coisas. No real-empirismo tudo está definido já de antemão. A história, portanto, não pode tomá-lo totalmente como seu modelo de saber. E o que ela fará então para dar conta do problema do excesso das palavras, das palavras que falam demais e que apontam para lugares múltiplos ou para lugar nenhum? É Michelet, historiador do século 19, quem cria uma terceira via que escapa do falatório da papelada e do “real-empirismo” que anula o acontecimento.

O acontecimento da Revolução Francesa para Michelet não é a queda da Bastilha ou a Era do Terror, mas a festa da federação. Não é a morte regicida, mas a morte republicana do rei que distribui seus atributos de “soberania” para o corpo da nação, para o povo. Na festa da federação aparece o sentido forte da revolução, o novo objeto de amor, a pátria. Como falar desse acontecimento? Michelet diz que a maioria das federações contou sua própria história. Então intuímos que as cartas de amor à pátria, encontradas na festa da federação, vão testemunhar. Porém, o leitor que espera que Michelet dê uma amostra do conteúdo das cartas se decepciona. Ele não deixa a papelada falar! As cartas só falam na condição de testemunhas mudas. É que para conciliar a anarquia democrática das vozes presentes na papelada dos pobres e o autoritarismo do real-empirismo que suprime as vozes, o saber histórico-democrático de Michelet usa duas operações. Primeiro, ele faz o leitor ver as cartas, conta sobre seus detalhes “exteriores”, as fitas tricolores, o papel, a escrita ornada, e mostra-se lendo-as, confirmando a materialidade e, logo, a existência delas. Segundo, ele diz o que elas dizem, não literalmente, não as deixando falarem por si mesmas, porém, diz o poder delas, o amor à pátria. Sua importância é a potência de sentido delas e não o que está escrito. O sentido ali não está no conteúdo enunciado pelos escritores, mas nas cidades, nos lugares, nos hábitos, nas “coisas”. Isto porque, para Michelet, os que vivem não sabem o que é a vida, os que falam não sabem o que falam. Quer dizer, só existe ciência do escondido, do silêncio, da testemunha muda, da reserva de sentido. Aqui, para garantir a cientifização da história, o historiador fecha a porta para a literatura, para as palavras que remetem a outras palavras, e, assim, inscreve as palavras (das cartas) nas coisas (materiais). Mas aí quem fala não são as palavras, mas as coisas. A testemunha muda, fala como muda, e empresta sua voz ao que nunca falou. Para se constituir como ciência, a história empreende uma auto-anulação da literatura.

A questão dos sujeitos viverem e não saberem o que é a vida e de falarem e não saberem o que dizem, passa por uma “teoria das relações entre o sujeito, o saber, a palavra e a morte que se dá na forma de relato”. Relato este que o historiador construiu para falar do acontecimento da festa da federação como marco da Revolução Francesa e do sentido inscrito nas cartas de amor à pátria. Este relato que depende de uma testemunha muda (as cartas, os sujeitos) e seu intérprete (o historiador, aquele que diz qual é seu sentido), supõe uma certa ideia de psicanálise. É assim que Michelet define o historiador, como um Édipo. Um Édipo particular, não o decifrador do segredo que o leva a cegar-se. Mas o decifrador do enigma que matou os outros por estes não terem sabido decifrá-lo. Um libertador da maternidade de sentido. Aquele que entrega os filhos às suas mães ao desvendar seus inconscientes. Acalmar o tumulto das vozes (da papelada) que gera a desordem política e do saber é acalmar a morte. “Acalmar os mortos, reconduzir ao túmulo aqueles que morreram por não saber o que toda vida ignora – a voz que nela fala – é necessariamente a obra de alguém que deve ter ele próprio passado pela morte, esse rio que o historiador nos diz ter tantas vezes atravessado e reatravessado em prol daqueles que dizem ‘aceitamos a morte em troca de uma linha sua’” (p. 218).

Deste modo, a superioridade da história erudita sobre crônica da “velha história”, é que a primeira enfrenta a morte. A ausência de seu objeto (já morto e pronto para ser reconciliado consigo mesmo) é a condição de sua existência, de sua ciência, a ciência do escondido. Paradoxalmente, tudo fala, mas o único que diz alguma coisa é o mudo. Michelet é o pai da “Nova História”, duplamente da história da civilização material e da história das mentalidades. Pois o que fala é mundo dos objetos e dos instrumentos, das trocas comerciais, das práticas do cotidiano, dos usos do corpo e das condutas simbólicas. Há aqui um deslocamento do corpo, aquilo que não fala é o que vai dizer, um discurso proferido por coisas, “a cidade fala”, “as pedras choram”, “o oceano se emociona”. “O lado da verdade é aquele onde as palavras não estão escritas no papel ou no vento, e sim gravadas na textura das coisas”. Graças a Michelet haverá uma geografização do sentido, usada por Fernand Braudel, na qual o mar e a terra darão o sentido da história, não mais os acontecimentos. Em Michelet, a “morte do rei” dá lugar à pátria, ao povo, mas trata-se de um povo geografizado, calado.

Em Braudel, o rei dá lugar ao mar. O mar como um espaço material e um espaço de discurso, coincidindo coisas e palavras. A revolução epistêmica da história acontece na medida em que há uma desconsideração da literatura, do rei e de sua papelada em prol da geografização do sentido. Mas o rei não morreu, tornou-se mudo, tornou-se mar. Na longuíssima duração das profundezas abissais da história, só um livro agora tem sentido. O livro do mar. O Mediterrâneo.  

Referências:

RANCIÈRE, Jacques. As palavras da história. In:______. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, p. 216-218.

Recomendações:

BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo: e o mundo mediterrânico. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MICHELET, Julles. História da Revolução Francesa: da queda da Bastilha à festa da federação. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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