O amigo e mestrando em História, Rodrigo Dias me
recomendou meses atrás um filme mais polêmico do que qualquer mamilo por aí. Trata-se
de Um
Filme Sérvio (Srpski Film) do diretor Srđan Spasojević (não faço
ideia de como se pronuncia). O filme foi proibido em vários países por causa
das cenas fortes que envolvem violência visceral, necrofilia e pedofilia. No
Brasil aconteceu a mesma coisa. Somente após uma briga jurídica que durou mais
ou menos um ano o filme finalmente foi liberado, mas, é claro, com
classificação etária para 18 anos e com recomendações do juiz que expediu a liberação.
De fato, Um Filme Sérvio é para estômagos fortes. Confesso que após assisti-lo
tive pesadelos à noite. Descrevo-o, portanto, como o filme mais pesado que já vi.
Depois fiquei pensando se escreveria algo sobre o assunto ou se o bania
completamente da minha memória. Mas a segunda opção não foi possível. Fiquei
regurgitando mentalmente as cenas e tentando captar quais reflexões poderíamos “safar” delas.
Na época em que assisti ao filme, chequei críticas e
comentários em alguns sites e blogs. A maioria deles compreendia Um
Filme Sérvio como “terror barato” ou “terror pelo terror” do tipo Faces
da Morte - um documentário que expõe cenas reais brutais sem uma
história que enreda (conectando) as partes. Posso dizer que não concordo com essa
avaliação. Creio que apesar das cenas fortes, com boas doses de radicalização da
violência e da crueldade, o filme conseguiu usar as imagens para produzir
verossimilhança e relação com o que se propunha enquanto roteiro. Farei a
seguir um breve resumo e depois alguns comentários sobre quais questões o filme
me permitiu pensar.
Milos, o protagonista, é um ex-ator pornô que vive
com sua esposa e seu filho de uns oito anos em uma casa humilde da Sérvia. A
família passa por condições financeiras precárias até que a salvação parece
chegar. Embora Milos pareça não estar mais interessado em atuar como estrela pornô, um
diretor exótico lhe faz uma proposta para gravar um filme em troca de uma grana
altíssima que deixaria a família muito bem de situação. Só que a condição do
contrato é que ele não saiba o que se passará no filme, pois se trata de um
roteiro que mistura realidade com ficção. Então o filme começa a ser gravado e
logo a primeira cena é dentro de um orfanato. Enquanto Milos transa e bate numa
atriz pornô com quem contracena, a filmagem é assistida por uma criança (uma
menina). Logo após a tomada, ele começa a mudar de ideia sobre sua participação
no filme, fica pensando em seu filho e diz que não aceita gravar com crianças.
É aí que principia uma das cenas mais chocantes do filme. O diretor tenta lhe
convencer de que atualmente o que público do mundo pornô espera é assistir a
vítima real. É isso que dá audiência, que chama atenção. Essa é a arte, porque
se mistura com a vida. Então o diretor aperta “play” em um filme pornô no qual um
ator vestido de médico faz um parto. Em meio àquele sangue, aos gritos da mãe e
ao choro do bebê, o ator estupra o
recém-nascido. Assim, o diretor aponta para a tela dizendo: “Veja, Milos, essa
é a vítima! Você não é a vítima neste filme, você é a estrela!”.
Milos (Srđan Todorović) |
Primeiro, antes de qualquer questão mais implícita,
creio que o filme faça uma denúncia sobre produção e comercialização de
filmes pornôs que envolvem violência, crianças e mortes. Existe um público “seleto” que financia esse tipo de “arte” no mundo todo. É gente que
tem dinheiro e não vê limites morais que os impeçam de satisfazer seus prazeres
sexuais. Não é novidade alguma que pessoas sejam sequestradas e drogadas para
fazer este tipo de serviço - como agora as novelas da Rede Globo resolveram
mostrar [Salve Jorge]. Entretanto, o filme pode ser interpretado não como uma denúncia, mas
como uma apologia a este tipo de produção. Talvez porque não há nenhum diálogo
explícito ou personagem que lute contra o mercado na obra. Nesse caso fica a
critério do espectador decidir. Eu diria que se trata mais de uma descrição
(que serve como denúncia). Por outro lado, há um diálogo no filme em que o
diretor diz que a produção deste tipo de filme é o que mantém a Sérvia como
nação, um país político e economicamente complicado. Chega a dizer que os
filmes pornôs são a marca registrada da Sérvia para o resto da Europa.
Portanto denuncia através da ironia e da tragédia o subdesenvolvimento do país
no qual Um Filme Sérvio foi produzido. Neste sentido, podemos pensar o
seguinte: uma nação unida graças ao sexo! Claro, assim toda nação é construída. Pela união de casais, pelo nascimento e criação de filhos naquela terra. Mas no
caso da representação feita da Sérvia, esta seria um país unido pelo sexo de
outra maneira. É o sexo enquanto mercadoria, artificializado a partir do ponto
em que o capitalismo não possui mais barreiras em relação a moral da comunidade. Pelo
contrário, é a ausência da moral e a substituição pelos valores de compra e
de venda que garantem a manutenção "comunidade", no sentido do que é “comum” àquele grupo de
pessoas.
Cena do filme |
Já Um Filme Sérvio não deixa uma
mensagem clara que sirva de orientação ética. Como disse, o filme pode ser
interpretado de várias maneiras. Como denúncia, como apologia, como os dois
juntos ou como nenhum dos dois. Há um vazio. E esse vazio deve ser preenchido
pelo espectador (ou não). Parece-me mais que é para mostrar o vazio que há: a
ausência de moralidade, de uma conduta que leve a uma ética universal. Porque
se por um lado mostra que Milos estava fazendo isso por dinheiro, ele o fazia pela
sua família e não para realizar desejos egocêntricos e ambiciosos. Ele desistiu
de atuar durante processo de filmagem, mas existia algo mais forte que o levava a seu
destino. Acontece que entre Édipo e Milos há épocas distantes e espaços
distintos. E deuses diferentes às duas obras. Na antiguidade da Grécia: deuses
pagãos que apenas anunciavam o destino já traçado de um homem. Na contemporaneidade
da Sérvia: um Deus uno cristão redentor que tem piedade do destino dos homens.
Será mesmo isso? Ou será esse filme a celebração da morte do Deus-todo-misericordioso? Se
Édipo não pode fugir a uma força maior, como é comum às tragédias, Milos também
não pode. Mas a qual deus Milos não pode fugir? Bom, me parece que é a
televisão, sem dúvidas. Esse nosso deus pós-moderno.
E como as coisas mudaram... Se na tragédia grega o
mal era reparado, na nossa tragédia pós-moderna o “mal” prospera. Em O
Nascimento da Tragédia, Nietzsche diz que o homem inventou a arte para
não morrer de verdades. Enfim, para suportar o peso da vida, para cobrir com um
véu de embriaguez dionisíaca a tragicidade densa que é o existir. Em Um
Filme Sérvio isso simplesmente não acontece. Pelo contrário. Como diz o diretor, é a
vida ali. É o acontecimento. É a crueza da vida sem floreios que a tornem mais
bela. É outro tipo de véu. É um véu que torna o existir mais pesado e o viver
mais horrível! Em A Poética, Aristóteles escreve que a tragédia grega consegue
cumprir a "catarse", que é o momento em que ocupamos o lugar do outro na cena. Vemos que
aqueles fatos podem se encaixar em nós, como personagens de uma história já construída. Enquanto isso, na tragédia pós-moderna de Um Filme Sérvio, nem sei se podemos
(ou queremos por purificação ou compaixão) ocupar o lugar de Milos. Queremos é assistir
sua tragédia. Pois não há uma "comunidade". Isto é, não há algo em comum em torno dele (o
ator que sofre de verdade) e nós (os telespectadores) como regras morais,
religiosas ou códigos de comportamento. Há algo em comum, sim, mas não é nada disso,
esse algo em torno das pessoas é só uma televisão ligada. E nela, a tragédia alheia.
Referências:
ARISTÓTELES.
Poética - coleção “Os pensadores”.
São Paulo: Abril Cultural, 1984.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Cia
das Letras, 2007.
SÓFOCLES. Rei
Édipo. Tradução J. B. de Mello e Souza. eBooksBrasil, 2005. Disponível em PDF: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/edipo.pdf
UM FILME Sérvio. Direção Srđan Spasojević.
Produção Dragoljub Vojnov e Srđan Spasojević. Sérvia, Invincible Pictures,
104min, cor, 2010.
Filme para download via Torrent (copie no seu navegador o link a seguir): http://filmescomlegenda.tv/fcl/srpski-film-srpski-film-a-serbian-film-2010
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Gostei muito desse seu blog, vou tentar assistir esse filme !
ResponderExcluirParabens foi muito bem elaborado o seu blog !
:)
Obrigado, colega!
ExcluirOs incentivos ajudam a manter o blog no ar.
Abraços!
O autor do texto está de parabéns. Fez uma analogia muito especial, com referências e ponderações importantes que ensejam toda a obra. Esse filme não é para pessoas que não sabem apreciar uma obra de arte. Trata-se de uma obra de ficção em que são apresentadas situações verídica, que estão explicitadas nas diversas patologias apresentadas no decorrer da trama: pedofilia, necrofilia, incesto, estupro, etc. É um filme violento e impactante sim pela sua crueza, que, de uma certa forma, denuncia os mais recônditos anseios escondidos nas personalidades da sociedade. É um trabalho primoroso. Um roteiro muito bem elaborado, um filme de arte para adultos e com um trabalho de direção espetacular. Todos os atores são excepcionais. Posso dizer que, de longe, foi um dos melhores filmes que já assisti, e, para finalizar, parabenizo novamente o texto que acabo de ler. Ressalto que, aquelas pessoas intelectuais, que escrevem e trabalham com teatro, esse filme é obrigatório. Excelente.
Excluir"Um Filme Sérvio" tem lá suas qualidades mesmo, Domingos. Queira ou não, é um filme corajoso. Agradeço muitíssimo pelo comentário aqui. Abraços!
ExcluirSem chances de eu assistir a esse filme... Se eu fosse dono de uma rede de cinemas, também não o exibiria. (Uma curiosidade: qual é a trajetória profissional do diretor do filme? O que fez antes, e o que está fazendo agora?)
ResponderExcluirOlá, Oswaldo. Desculpe-me pela demora em lhe responder. Procurei informações sobre o diretor mas não encontrei nada além de outro filme dele em um viés, ao que tudo indica, bem parecido ao "A Serbian Film".
ExcluirRealmente, é um tipo de filme complicado de assistir. Não faz meu gênero.
Abraços
Parabéns pela bela crítica ao filme.
ResponderExcluirMas deixo aqui um comentário de certa forma interessante.
A frase do final do filme que vi não foi traduzida da maneira que você citou no texto: "Pode cortar. Está pronto".
Se você observar, um dos câmeras na cena final está abrindo o ziper enquanto o "lider" fala. A tradução ficou como "Vamos lá. Pode começar com o pequeno". A sugestão desta frase sugere um final ainda mais agressivo.. Mas precisaríamos de um tradutor pra ajudar a definir a real frase final do filme.
Abraços,
Rodrigo Moreira
Interessante mesmo, Rodrigo!. Baixei o filme pela Internet, bem como a legenda (que deve ter sido feita de maneira autônoma pelos colaboradores da rede, sem vínculo com empresas de dublagem). Da maneira que eu vi, deu ideia de algo próximo ao Show de Truman. Mas como não entendo nada de sérvio, pode ser que o final sugira uma continuidade ainda mais abissal. Obrigado pelo comentário. Abraços!
ExcluirGostei muito da crítica,
ResponderExcluiro meio carece de leituras inteligentes como esta a cerca de obras complexas, que chamam de perturbadoras.
Gostaria apenas de fazer uma observação quanto a considerar que se faz necessário vincular a estória com uma moral da estória, através de um eixo que seria a própria interpretação do diretor do filme.
Acredito que esse tipo de obra é provocante no sentido que não externaliza opiniões, apenas age como uma crônica, o discernimento cabe ao espectador, visto que tudo que o Humano faz tem raiz em si mesmo.
Diante disto, cada espectador terá diferentes sentimentos em relação à película que externam exatamente sua própria natureza.
O fascinante deste tipo de obra é que você pode descobrir sentimentos que nem era capaz de imaginar ter.
Tudo isso feito com um estimulador que o diretor utiliza no filme, que é o sexo.
Havendo um estímulo, combina-se com deturpações do comum, gerando esse caos agradável que é provocar as próprias sensações.
Valeu pelo comentário, Paulo. Não tenho nada a acrescentar e tendo a concordar contigo. Abraços!
ExcluirFilme bizarro e chocante, Na minha opinião acho que o filme faz referências a Deep Web pois la circulam muitos filmes reais dos assuntos abordados no, Um Filme Sérvio. Sem relatar que no leste europeu existe muita coisa bizarra. Mais na frase final posso dizer tenho quase certeza que e "Vamos, Pode começar com a criança/pequeno"
ResponderExcluirSou fascinado por línguas eslavas e já estudei um pouco de Sérvio.
Obrigado pelo comentário e informação, Matheus. Acho que daria para fazer um paralelo entre nossa censura (a que proibiu o filme em vários lugares) e a Deep Web. Mas também não sei em que medida seria interessante que o material veiculado pela Deep Web estivesse disponível na Surface. Já tem muito insano no mundo, vai saber em que medida isso não estimularia a imaginação ou incentivasse a tornar realidade quem já tem uma imaginação capaz de conceber tais coisas. É um assunto bem delicado. E acho que tais práticas não se restringem ao leste europeu, talvez, sim, a maneira de lidar com elas. Abraço!
ExcluirEu quero assistir esse filme como faço?
ResponderExcluirNa época baixei via torrent, mas não sei se será fácil encontrá-lo novamente.
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