Publicado ano passado, e já
prontamente traduzido para o português, o livro Estado Islâmico: desvendando o
exército do terror se tornou um dos principais trabalhos informativos
de fôlego sobre o assunto no Brasil. Os atentados de novembro ocorridos em
Paris tornaram o livro ainda mais procurado, sobretudo, por conta da escassez
de obras no mercado. No post que se segue faço um breve resumo do eixo
principal do trabalho cujo objetivo é responder à questão sobre o nascimento do
Estado Islâmico e como este conseguiu causar tamanho estrago em tão pouco
tempo. O livro é assinado por dois autores. Um é o analista político sírio
Hassan Hassan, morador de Albu Kamal (ou al-Bukamal), cidade cujo aeroporto foi
anteontem retirado das mãos do Estado Islâmico (EI) pela oposição síria apoiada
pelos Estados Unidos (trata-se de uma cidade fronteiriça ao Iraque). E o outro
é o jornalista americano Michael Weiss, que trabalhou na cidade síria de
Aleppo, antes de ser tomada pelo EI. Ambos são funcionários do New York Times. A
linguagem é jornalística. E neste sentido o trabalho privilegia descrições de
fatos e redes de relacionamentos, bem como personagens, e deixa como
coadjuvantes as interpretações mais densas, diferentemente de estudos
acadêmicos. As principais fontes são entrevistas com ex-oficiais de
contraterrorismo, diplomatas que rastrearam e enfrentaram o Estado Islâmico,
dissidentes do grupo (uma valente professora de Raqqa, por exemplo) e agentes
dormentes do EI no Ocidente.
Origem e expansão do Estado Islâmico
A pergunta da imprensa
internacional – feita logo após o atentado contra os cartunistas da revista
Charlie Hebdo – a respeito de onde teria surgido o Estado Islâmico, pareceu
estranha aos olhos dos autores. Afinal, se havia algo que ao menos o governo
estadunidense conhecia bem desde sua invasão ao Iraque em 2003, era justamente
o Estado Islâmico. Talvez sob outro nome. Mas lá estava ele. O Estado Islâmico
não surgiu do nada, apenas se modificou, se aprimorou. Entre essas “fases” estão
o Tawhid wal-Jihad, a al-Qaeda no Iraque (AQI) e o Conselho Shura Mujahidin. É
isso. O Estado Islâmico nada mais é do que um grupo dentro da al-Qaeda, que em
2014 dela se emancipou. Sobre a al-Qaeda todos conhecemos. Foi a organização criada
e liderada por Osama bin Laden, ele mesmo treinado pelos americanos da CIA para
lutar e expulsar os soviéticos do Afeganistão, nos anos 80, durante a Guerra
Fria.
O fato do líder da al-Qaeda ter
se voltado contra seus apoiadores e mesmo financiadores, sendo o mentor do
atentado do 11 de Setembro, é algo pouco complexo se comparado ao contexto de
guerra civil na região. Não dá simplesmente para traçar uma linha e colocar
xiitas de um lado e sunitas de outro. O imbróglio é bem mais intrincado. Há o
problema sério do sectarismo religioso. Mas não se trata tão somente de uma
disputa milenar sobre os sucessores do Profeta. A coisa também envolve um tipo
de nacionalismo étnico, de regionalismo ou tribalismo e ideologias políticas.
Temos curdos, alauitas, yazidis, assírios, turcomanos, cristãos, sunitas
salafistas, baathistas, saddamistas... e por aí vai. Hoje são vários grupos
lutando contra governos constituídos e entre si. Mas vamos ao prato principal,
a gestação do Estado Islâmico (EI).
O surgimento do EI se dá através
do entrecruzamento da trajetória de quatro homens: Abu Musabi al-Zarqawi (seu
fundador), Osama bin Laden (fundador da al-Qaeda), Abdullah Yusuf Azzam (clérigo
escritor do manifesto aos mujahidin) e Ayman al-Zawahiri (importante emir
egípcio substituto de bin Laden). O perfil atual do grupo tem tudo a ver com o
jordaniano Zarqawi [1966-2006]. Este era um jovem problemático, realizador de
assaltos e outros crimes, tendo sido preso bem cedo. Para “consertá-lo” sua mãe
o colocou num colégio religioso. E foi daí que se transformou num
fundamentalista, resolvendo por fim ir lutar contra os soviéticos no
Afeganistão com objetivo de expulsar os comunistas ateus da terra sagrada.
Porém a verdade é que Zarqawi nem chegou a combater os soviéticos, ao chegar no
local de batalha o Exército Vermelho já havia sido derrotado. Contudo foi nesta
viagem que conheceu Zawahiri e bin Laden. Enquanto o pediatra egípcio Zawahiri
[1951-ainda vivo] foi um dos precursores a misturar perigosamente salafismo e
takfirismo (ou seja: um movimento ultraconservador que defende uma espécie de
volta às origens do Islã e aplicação implacável da lei islâmica, a sharia; e a prática de denunciar
muçulmanos de outros seguimentos como apóstatas), o segundo, o saudita Osama bin-Laden
[1957-2011], tinha bastante grana e financiava as atividades pedagógicas de
jornais e revistas do primeiro e também de Azzam [1941-1989], um teólogo
palestino conhecido como pai da jihad global e morto por um carro bomba no fim
da década de oitenta.
Devido a seus envolvimentos com
atentados, Zarqawi foi preso em 1994 em Swaqa, em seu país, a Jordânia. A prisão
foi um aprimoramento para seu fundamentalismo: o tornou brutal, focado e
decisivo. Ele obteve poder e influência na cadeia. Aliás, já vale mencionar, as
prisões no Oriente Médio são descritas como universidades do terror. Zarqawi
conseguiu recrutar vários jihadistas e passou a ser considerado um “emir”. Quando
o rei jordaniano Abdullah I promoveu anistia aos presos políticos ao
estabelecer um acordo com a Irmandade Muçulmana (organização fundamentalista
que existe pelo menos desde 1928), Zarqawi foi solto em 1999, sem cumprir
integralmente sua pena. Logo fugiu para o Afeganistão e reencontrou bin Laden,
que inicialmente não gostava dele, pois tratava-se de um sujeito extremamente
prepotente, antixiita e intelectualmente pouco sofisticado para o líder
saudita. De toda forma, o aceitou por questões pragmáticas. Zarqawi conhecia
muita gente e tinha contatos essenciais no Levante. Bin Laden financiou Zarqawi
para ser o comandante de um campo de treinamento no deserto do Afeganistão
formando a célula Tawhid wal-Jihad (“Monoteísmo e Guerra Santa”). Foi ele quem
formou os dois idealizadores dos ataques ao World Trade Center. Pelas práticas
brutais empregadas, o intitularam “o xeique dos chacinadores”.
Assim que os Estados Unidos
entraram em guerra no Afeganistão, em 2001, Zarqawi fugiu do país levando consigo
uns 300 militantes em direção ao Irã. Por onde passava ia recrutando novos
guerreiros. Seu objetivo era travar a jihad no Iraque, seguindo inspiração de
um soberano do século 12, Nur al-Din, que governou Aleppo e Mosul e foi
celebrado como herói da Segunda Cruzada. O governo do Irã estava interessado em
controlar o Iraque e apoiou taticamente Zarqawi, mesmo sendo ele um antixiita –
aspecto que ficaria explícito durante sua campanha em terras iraquianas, quando
ele “notabilizou-se por seu foco em matar ou atormentar a maioria xiita da
população do país; isto, ele acreditava, criaria um estado de guerra civil que
forçaria os sunitas a recuperarem seu poder e prestígio perdidos em Bagdá e
restaurarem a glória de Nur al-Din”, escrevem Weiss e Hassan (2015, p. 31). A
estratégia de Zarqawi pode parecer estranha para nós, ocidentais, mas ela é
muito típica destes conflitos, a ideia é fustigar uma reação violenta dos
adversários para que os aliados adormecidos (no caso, o povo sunita) integrem
exércitos para exterminá-los.
Zarqawi começou seus ataques no
Iraque em 2003, inclusive matando um diplomata brasileiro (Sérgio Vieira de
Mello) que trabalhava para a ONU. E seguiu matando “inimigos distantes” e
também “inimigos próximos”, como o aiatolá xiita Baqir al-Hakin. Outra prática
pioneira difundida por al-Zarqawi foram as decapitações televisionadas, sabendo
da atenção que isso gerava no Ocidente. Conhecida como o inferno na terra para
os soldados americanos, a cidade de Fallujah seria palco para a ascensão
notória de Zarqawi. Na Primeira Batalha de Fallujah os drones americanos
mataram apenas quatorze agentes da Tawhid wal-Jihad mas vários civis iraquianos,
ou seja, a rede continuou praticamente intacta e agora aumentou sua força e seu
apelo popular. Aproveitando-se disso Zarqawi transmitiu publicamente seu voto
de lealdade (bayat) a Osama bin Laden
e a organização mudou o nome para “al-Qaeda no Iraque”. Um ano depois disso, houve
a Segunda Batalha de Fallujah, vitimando cerca de 2.200 insurgentes e 70
marines, outros 651 ficaram feridos. A cidade ficou totalmente destruída. Bin Laden responsabilizou o governo Bush
pela matança, “os EUA estavam lançando uma guerra total contra o Islã”,
afirmou. A al-Qaeda ganhou em propaganda, trazendo milhares para integrar seus
exércitos. A armadilha havia sido cuidadosamente preparada. Poucos dias após
esta batalha, a cidade de Mosul foi parar nas mãos dos zarqawistas.
Desaparecido desde a Segunda
Batalha de Fallujah, Zarqawi estava escondido a apenas a 14km de uma base
americana em Bagdá, quando, em 2006, foi morto por um drone. Seu fim não foi o
fim da al-Qaeda no Iraque que, a esta altura, já era uma rede internacional
gigantesca e rica. O Conselho Shura Mujahidin, órgão criado pelo próprio
Zarqawi para dirigir a AQI, apontou o egípcio Abu Ayyub al-Masri [1968-2010] como
novo emir da franquia. Masri declarou que “a franquia fazia parte de um mosaico
de movimentos de resistência islâmica nativos, que ele denominou como Estado
Islâmico do Iraque” (p. 68). Ao indicar as áreas de atuação, o emir escolheu o
líder: o iraquiano Abu Omar al-Baghdadi [1959-2010], o primeiro al-Baghdadi.
Esta dupla iniciou uma política ambígua em relação à al-Qaeda Matriz que
desembocaria mais tarde numa cisão. Pouco se sabe do passado de Baghdadi I, era
um homem tão discreto que muitos duvidavam de sua existência. Na realidade, ao
que tudo indica, Masri usava o "rosto" dele apenas para dar legitimidade a seu
comando, pois enquanto um era estrangeiro, outro era iraquiano. Acontece que os
jovens mujahidins se inspiravam muito mais em Baghdadi (também por ele ter se
declarado “Emir dos Crentes”) do que em Masri. Ambos foram mortos em 2010,
escondidos no subsolo de uma mesma casa.
O substituto, escolhido pelo
Conselho da AQI, foi Ibrahim Awwad al-Badari [1971-vivo], que adotou o nome de
guerra: Abu Bakr al-Baghdadi, ou seja, o segundo al-Baghdadi. Este sim mais
conhecido. Foi membro da Irmandade Muçulmana na década de 80 e depois se tornou
salafista, passando a defender também o takfirismo e o fratricídio contra os xiitas.
Com ideias semelhantes a Zarqawi mas mais intelectualizado, Baghdadi II tem
doutorado em assuntos islâmicos pela Universidade de Ciências Islâmicas de
Bagdá. Ficou preso no Campo Bucca durante o ano de 2004 e inclusive atuou lá
dentro como um imã aplicador da sharia.
Este Campo Bucca é outra academia do jihadismo em forma de cadeia. Lugar onde
os jihadistas conseguiam comida e proteção num contexto de guerra civil. E é também
onde formam-se poderosas redes de contatos. O acordo SOFA em 2009 (sobre o
status das forças americanas no Iraque) permitiu a soltura de inúmeros presos
com o fechamento do presídio.
Após a morte de bin Laden, os
homens de Baghdadi invadiram a Síria e tomam a cidade de Raqqa – chamada de o
“Hotel da Revolução” por hospedar jihadistas estrangeiros com preço da
expulsão da população local. Em 2013, o EI tenta se fundir à al-Nusra (a
franquia da al-Qaeda na Síria) sob o nome de Estado Islâmico do Iraque e do
Levante (ISIS, é a sigla em inglês). Daí aparece uma desavença entre os líderes
das duas franquias, que Zawahiri (o então sucessor de bin Laden) é obrigado a
tentar conciliar. O chefe da al-Nusra, um sírio sunita chamado Abu al-Jawlani,
nega a fusão com Estado Islâmico. Zawahiri critica ambos e explica a geografia
em que cada grupo deveria atuar. Para resumir, um na Síria, outro no Iraque.
Baghdadi II simplesmente não aceita. Diz que Zawahiri está seguindo fronteiras
artificiais inventadas pelo ocidentais (ele se referia ao Acordo de
Sykes-Picot, feito após a Primeira Guerra para dividir o Império Turco-Otomano
e que criou, entre outros países, a Síria e o Iraque). Acusação grave.
Inicia-se uma guerra civil dentro da guerra civil. Em fevereiro a al-Qaeda
rompe relações com o Estado Islâmico. No meio do mesmo ano, Baghdadi II se
autoproclama califa do Estado Islâmico. E neste posto está até hoje.
Em resumo
Como o Estado Islâmico conseguiu
atingir este status? Ora, notou-se que o grupo não surgiu do nada, que existia
sob outras formas, atuando dentro de uma organização maior e mais antiga, a
al-Qaeda. Mas há outros fatores imprescindíveis para sua eficácia.
(1º) Governos corruptos e grupos
terroristas se retroalimentam. Um precisa do outro. O Irã incentivou e equipou
os zarqawistas para lutarem contra o governo baathista secular de Saddam, ainda
que agora pareça empenhado a ajudar a combater o Estado Islâmico devido a seu
caráter sectário antixiita. O governo de Saddam também ajudou a al-Qaeda no
Iraque nas insurgências contra os americanos. Muitos ex-generais de Saddam ou
saddamistas revoltados com xiitas no poder do Iraque integram hoje as fileiras
do alto escalão do Estado Islâmico, especialmente, para combater o governo do
primeiro ministro al-Maliki, sucessor de Saddam “colocado” pelos EUA (ficou no
cargo de 2006 a 2014) e que libertou inúmeros prisioneiros. O governo sírio de
Bashar al-Assad foi outro colaborador na época da Guerra do Iraque. Foi através
da fronteira síria que Zarqawi conseguiu penetrar no Iraque. Al-Assad queria
desviar a atenção para seu vizinho. Tendo sofrido um recente atentado em seu principal
aeroporto, a Turquia é outro país que fez vista grossa para terroristas do EI a
fim de derrubar Bashar al-Assad e obstruir os combatentes curdos. Mas os
Estados Unidos também têm sua parcela de culpa. Sem falar da desagregação
provocada no Iraque numa campanha desastrosa que só fez acirrar os ânimos e maximizar o sectarismo étnico-religioso, os EUA retiraram suas tropas da região deixando
inúmeros armamentos (de metralhadoras a tanques de guerra) nas mãos dos
insurgentes, simplesmente porque levá-los de volta seria oneroso. Além disso, interessados
em derrubar al-Assad fizeram vista grossa para atuações do EI no início da
guerra civil da Síria.
(2º) O Estado Islâmico conquista
alguma legitimidade nas regiões em que ocupa ao fazer funcionar os serviços
básicos da cidade, aplicando a lei aceita pela maioria e trazendo um mínimo de
normalidade num contexto de atroz guerra civil.
(3º) Conta com uma propaganda
potente. Usando do Twitter à Daqib, sua revista de divulgação. Mas também com
uma propaganda indireta feita pelo sensacionalismo da mídia internacional. Inspirados
por essas mensagens, muitos jovens muçulmanos que não têm onde cair mortos em
seus países natais, como Bélgica e outros, viajam para uma aventura a fim de fazerem alguma coisa importante na vida, pensam.
(4º) Por último, e mais
importante, o grupo atua como organização religiosa (lembrando aqui que religião
e política não se separam nessa cosmovisão), sim, mas também como uma máfia. Detém
o controle de postos de petróleo, de contrabando de armas e outros, cobram impostos,
estimulam o mercado cinza, recebem doações de diversas partes do mundo e
negociam com políticos corruptos, até mesmo com aqueles considerados inimigos “próximos”
ou “distantes”.
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Quer ler mais sobre o assunto? No
próximo post escrevo sobre a relação curiosa entre o regime de al-Assad e o
Estado Islâmico. Clique aqui para ler.
Referências:
WEISS, Michel; HASSAN, Hassan. Estado islâmico: desvendando o exército
do terror. Trad. Jorge Ritter. São Paulo: Seoman, 2015.
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