terça-feira, 28 de outubro de 2014

Conexão tempo: o teatro das eleições presidenciais 2014 no Facebook

Nos dois meses anteriores, sobretudo, no último, percebi o significado mais profundo das palavras “conectado” e “desconectado” – quando estas se referem às redes sociais. Fiquei a maior parte deste tempo desconectado do “tempo” chamado Facebook. Por curiosidade voltava em alguns momentos para saber o que estavam falando. Então tinha vontade de comentar e curtir posts. Porém uma espécie de voz oculta, tal qual aquela que rege o método do pesquisador positivista, recomendava me desligar novamente daquele mundo. Um mundo de ficção surrealista que, no entanto, em vez de fugir do comum e do real, tinha com ele uma estranha relação de proximidade tão pontual quanto ambígua. 

O Facebook tinha se transformado, da cabeça aos pés, da imagem à grafia, do rosto ao livro, num teatro de inúmeros personagens em torno de uma peça única: as eleições. Colado ao tradicional princípio de máscaras do teatro, o público se confundia com os personagens. Mas tratava-se de uma catarse diferente. Pois o público também compunha o elenco. Cada um dele era um personagem específico. Milhões de personagens! O que quer dizer que, no sentido exclusivo do termo, ninguém assistia a apresentação. E, ao mesmo tempo, todos a assistiam se assistindo. Todos participavam das cenas, contudo e misteriosamente, nenhum dos personagens sabia o desfecho que eles mesmos produziriam. Havia antagonistas e protagonistas, heróis e vilões. Polarização. Esta que, segundo uma das personagens principais, Marina Silva, estragava o espetáculo. E estragou. Polarização da qual a própria personagem, no decorrer da narrativa, se rendeu e foi (mais uma) vítima.

Eu, que não era exatamente alguém do elenco, de relance, olhava pela fresta da porta as encenações do público-personagens. E me espantava. Em tempos de redes sociais, a militância, em favor de um personagem principal e contra outro, nunca foi tão similar ao militarismo. Exércitos de soldados. Felizmente as armas usadas não mataram. Afinal, era “só” um teatro. Mas feriram. E disseminaram ódio entre o próprio elenco. Ódio que pode vir a matar, transformando futuramente o teatro num reality show: com seus campos de concentração e paredões.

Espantei-me mais ainda quando vi o grau de confusão causado pelo jogo de máscaras. Gente que, antes, usava seu “mural” para postar selfies, fotos de gatos e piadas de humor duvidoso, estava agora falando de política como quem saboreia um pacote de bolacha no lanche da tarde. Algumas análises eram tão profundas quanto às de determinados comentaristas de futebol da Copa que nem ideia faziam do que era um escanteio. Professores universitários que geralmente se mantinham insípidos às discussões políticas (e nunca faziam críticas aos governos) começaram a se posicionar de modo nunca visto, às vezes como crianças birrentas diante da ameaça de ter seu brinquedo tirado de si. Eu que tento postar reflexões e provocações sobre política durante o ano inteiro, me vi completamente “desconectado”. É que me sentia pouco a vontade com a “polarização” (mais forçada do que verossímil) entre os dois últimos personagens principais da cena. Desconfiado com a democracia que tem no voto o alfa e o ômega, e concordando com o que postou meu primo João Gabriel, não via à hora de acabar esta peça para começarmos a discutir novamente sobre política. (Estes homônimos também fazem parte do baile de máscaras).

Algo positivo em todo este teatro é ver a sociedade brasileira debatendo temas e projetos do quais se alienou durante a maior parte da história. Mas tenho uma hipótese que aponta para o lado negativo. A acentuação das discussões em torno da política no período pré-eleitoral é inversamente proporcional a indiferença que a mesma provoca na população fora deste espaço de tempo. Infelizmente este último é o que faz toda a diferença, já que um mandato nos moldes do nosso sistema é exercido durante quatro anos e não durante os dois ou três meses que os pretensos representantes do povo aparecem continuamente na TV.

Usaram a metáfora das torcidas de futebol para descrever o comportamento dos eleitores brasileiros nas redes sociais, então, pode ser interessante compararmos este eleitor, que só se interessa por política ou expõe publicamente suas opiniões durante a eleição, com aquele torcedor que só se relaciona com seu time de coração quando vai para a final. Durante o campeonato e, sobretudo, quando a equipe vai mal, ele simplesmente se esquece de “torcer”. Não incentiva, portanto, seu time a conquistar algo. Entretanto, diferente de um time de futebol, que para obter bons resultados depende essencialmente apenas de seus atletas, na democracia a situação se torna mais delicada, pois sem participação geral ela tende a enfraquecer e até se dissipar. Num post recente, a professora de filosofia Camila Jourdan chamou atenção para este fato. No atual cenário político que vivemos, a pressão de inúmeros vetores faz muito mais diferença do que eleger o candidato A ou B. Entre estes vetores está a população – que não necessariamente coincide com banqueiros, grandes empresários, latifundiários e etc. Setores estes para os quais o PT tem cedido cada vez mais para se manter no governo e dos quais historicamente o PSBD tem sido aliado.

Como apontou Eliane Brum em O longo dia seguinte, a tônica do debate eleitoral no Brasil foi politicamente esvaziada em prol de uma retórica que garanta a manutenção do poder. Prova disso se fez quando Aécio prometeu continuidade aos programas sociais – como o Bolsa Família, alvo de crítica da maioria dos opositores ideológicos do PT. E ficou mais destacado quando militantes petistas, ao mesmo tempo, ao dizerem que esta era uma mentira cabeluda (como se pudessem prever o futuro), usavam-na como verdade para tentar convencer eleitores de Aécio a não votar nele, partindo do suposto de que o candidato não acabaria com as “Bolsas”. No fundo, mostrou-se o medo de perder o poder. Afinal o que seria do PT se aparecesse um governo que mantivesse todas as conquistas sociais durante estes anos na presidência? Isto é, qual argumento iria usar para se mostrar “melhor” que outro partido? Nesta celeuma, ficou claro que boa parte da população está insatisfeita com o PT, porém, talvez mais com o modelo de governabilidade brasileiro. Modelo este que, diga-se de passagem, nem nos sonhos mais malucos se alteraria com um governo do PSBD. Seria, sim, tão-somente uma outra forma de administrar o mesmo modelo. Talvez mais catastrófica para aqueles que ficam com a menor fatia do bolo ou aqueles que, embora façam parte do elenco, sequer são cogitados para uma eventual festa de premiação do espetáculo.  

É óbvio que as Jornadas de Junho aconteceram como exigência de mudança. Não só na presidência. Mas nos governos estaduais, nas prefeituras e nas câmaras legislativas onde não existia só PT, mas PSDB, PMBD, DEM, etc. Porém diante da falta de opções, seguiu-se com o mesmo para não abraçar algo talvez pior: por medo. Um personagem deste eleitorado vi de forma mais clara fora do teatro das redes sociais. Um taxista, já bem senhor, que conhecia de perto o PSDB e seus aliados aqui em Uberlândia-MG. Chegara a trabalhar por anos para um dos ex-prefeitos da cidade. Desiludido com a política institucional nos perguntou contra quem votaríamos no domingo. Ele votaria contra o Aécio. Bastava. Disse para agradecermos a chuva que caia naquele dia. Era tudo o que importava. O resto foi coragem de abstenção e de voto nulo.

Ao fim do espetáculo, parte do público-elenco não gostou nada nada do desenlace final da narrativa. Especialmente porque o clímax sinalizou outro fim, talvez mais surpreendente, sem dúvidas. Mas nesta confusão de máscaras pode se dizer que até o previsível surpreendeu. O elenco já dividido, antagonizado, desde então, agora troca as máscaras. Mas elas parecem continuar se contrastando e se opondo como os uniformes de dois times rivais. Vermelho versus Azul. Pobre versus Rico. Petralha versus Coxinha. Terrorista contra Playboy. Sul contra Nordeste. Brasil contra Brasil. O tempo contra nós. Derrota inevitável? A vitória de Dilma foi só o gol de empate. Para ganhar este jogo precisamos inventar novos personagens. Ou, melhor, outro tempo, no qual possamos nos “reconectar”.   
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