quinta-feira, 31 de julho de 2014

Liberdade para Bakunin (!)

A liberdade do outro estende a minha ao infinito.
 Mikhail Bakunin


Há muitos significados que dão conteúdo ao vocábulo “História”. Mas eu gosto particularmente de um que é apresentado por Jacques Rancière (1994). Ele diz que a história é feita na medida em que palavras e noções antigas (às vezes soterradas) são novamente postas em circulação no presente, provocando uma redistribuição dos papéis sociais ao alterar nossas maneiras de ver, sentir e enunciar o mundo e as coisas. Significa que história é uma coisa rara. Que não se trata de uma sucessão de fatos que pode servir às narrações. Nem de um determinado contexto conjuntural ou estrutural que pode servir às descrições. A história sob este sentido tão particular refere-se, antes, a um entrecruzamento de temporalidades e não a uma continuidade. Um pedacinho de passado submerge no presente, interagindo com este e tornando-o (tão mais) vivo e diferente. É como se tivessem enterrado uma lanterna 1876 e, 138 anos depois, nós a desenterrássemos, agora, em 2014; e ela emitisse uma luz, que é do passado, mas que ilumina coisas do presente, mostrando-as de uma forma que nunca as vimos antes. Esse é o entrecruzamento de temporalidades produtor de história.

Usei este trololó filosófico todo para falar da atualidade de Bakunin e do anarquismo. Circula pela imprensa do país que a polícia incluiu o nome de Bakunin no inquérito contra ativistas (alguns anarquistas!) no Rio de Janeiro. Pelo visto esta é uma homenagem da polícia brasileira ao bicentenário do nascimento do anarquista russo. No próximo novembro, haverá um Colóquio Internacional no Brasil cuja temática é a Associação Internacional dos Trabalhadores e Mikhail Bakunin. Não sou da organização, mas estão todos convidados. Bakunin costuma receber bem os amigos... e até os inimigos. Isto se deve ao fato de ter sido ele hóspede de tantos anfitriões desde que partiu fugido da Rússia, em 1839, para morar na Alemanha e depois percorrer toda a Europa tentando espalhar revolução por onde passava.

Nascido no extremo oeste russo, em 1814, Mikhail Aleksandrovitch Bakunin era um dos sete filhos de uma família aristocrata proprietária de terras. Seu pai era doutor em filosofia e admirador das ideias liberais, embora apoiasse o czarismo. Na infância Mikhail recebeu uma educação de nobre, aprendendo pelo menos quatro idiomas. Foi enviado para o exército quando jovem. Mas sua indisciplina e seu amor pelos livros não encontraram conciliação com a carreira militar. Após fingir uma doença, finalmente conseguiu ser dispensado, conforme conta George Woodcock (2007, p. 165). Foi Aleksandr Herzen quem introduziu Bakunin ao radicalismo político da filosofia e foi também ele quem lhe emprestou dinheiro para sua viagem a Alemanha. Lá concluiu seus estudos filosóficos e conheceu as obras de Weitling e Proudhon (importantes filósofos para sua formação intelectual, bem como, anteriormente, Hegel e Fichte). A partir de 1848, com emergência da Primavera dos Povos, Bakunin se integrou às frentes de luta política que ocorriam por toda a Europa. A época vivia um ambiente de agitação política relacionado à grande depressão industrial de 1840. Após uma das rebeliões (em Dresden em 1849), Bakunin foi preso e rodou cadeias da Saxônia e da Áustria até ser mandando para a famosa fortaleza russa de Pedro-e-Paulo, onde contraiu escorbuto e perdeu seus dentes. Conseguiu exílio do czar em 1857, e até 1961 ficou na Sibéria, quando então fugiu em direção ao Japão num navio americano. Daí foi para Londres. O exílio e as prisões debilitaram a saúde de Bakunin, mas suas ideias permaneciam ainda mais fortes, era o que ele mesmo dizia. Estava de volta à luta revolucionária! Na Europa passou uma longa fase na Itália participando de ligas e círculos de luta política; e amadurecendo suas ideias, que se tornariam anarquistas a partir de meados da década de 60 (a isto se deve também seus muitos encontros com Proudhon, em Paris, pouco antes do parceiro anarquista morrer). Em 1868, Bakunin é integrado à Associação Internacional dos Trabalhadores. Já em 1864, Marx havia lhe convidado pessoalmente a participar, contudo, a importância de tal associação se deu somente depois do segundo congresso, ocorrido em 1867, e da greve geral do ano posterior em Genebra. Dentro da AIT é que se desenrolarão os conflitos entre socialistas libertários (de onde sairão futuramente conhecidos como “anarquistas”) e socialistas marxistas (chamados de “autoritários” por aqueles). Conto parte destas disputas em Cartas contra Bakunin [clique no azul para ler].

Bakunin morre em 1876. Com o envelhecimento precoce nas prisões, o cansaço e a desilusão das lutas políticas, ele havia se “aposentado” três anos antes. Na carta que enviou a federação que participava, ele dizia: “Não me sinto mais com as forças necessárias para a luta: seria, pois, no campo do proletariado, um estorvo, não uma ajuda. [...] Continuarei seguindo com ansiedade fraterna todos os vossos passos e saudarei com alegria cada um dos vossos novos triunfos. Até a morte serei vosso” (citado por GUILLAUME, 2006, p. 34). Coitado! Ele pensava que era só até morte. É sabido que Bakunin não foi um grande teórico do anarquismo. Era um homem muito mais prático. Talvez lhe faltasse concentração. Talvez o preocupasse o fato de estar escrevendo no momento em que a revolução se irrompesse. Tem-se escrito que ele era um homem de ímpeto. Um gigante, muito alto e gordo, que nem tinha tempo de preocupar-se com sua aparência, porque era mesmo afobado, imediatista. Que convencia os outros mais pela imponência e pela oratória do que pela argumentação elaborada. Mas, neste último caso, se comete alguma injustiça. Bakunin, embora não tenha produzido uma obra teórica, nos deixou escritos fundamentados e inteligentes. Tanto é que seu legado vive até hoje. Aproveito este espaço para discorrer brevemente sobre um dos conceitos mais interessantes em Bakunin, a liberdade.

Rejeitando a metafísica, a liberdade para Bakunin é sempre coletiva, social, partilhada e construída através das condições materiais do ser humano e de seu ambiente. A noção de liberdade em Bakunin é produzida em contraponto a Jean-Jacques Rousseau. Haja vista que o russo discorda deste quando afirma que não há liberdade no suposto estado de natureza (do qual muita gente crê que representa fielmente a anarquia. Pois bem, pode ser que se refira a um certo sentido de anarquia, mas não a “anarquia” segundo anarquistas como Bakunin). Não há liberdade no estado de natureza simplesmente porque neste momento não há humanidade, não há ainda sociedade, a espécie humana em solidão não passa de um animal, um macaco que sequer possui linguagem. A liberdade é necessariamente uma positividade. Ela está envolvida numa relação de elementos culturais que se somam e se expandem. Ao vincular pensamento e palavra, o filósofo diz que as palavras são produzidas pela comunicação que naturalmente só pode ser feita entre dois ou mais indivíduos. Desta forma, um indivíduo solitário, isto é, sem contato com os demais, não tem a possibilidade de realizar sua humanidade, culturalmente falando, e, tampouco, sua liberdade no mundo, uma vez que suas faculdades intelectuais e morais são interrompidas. Para ser livre o homem precisa, primeiro, conhecer a natureza que o criou, para também, conhecer a si mesmo.

Ao se conhecer, o ser humano se torna livre se emancipando e emancipando (se necessário, instigando revolta e crítica) os outros homens e mulheres, seus irmãos. Aqui aparece outro aspecto da liberdade em Bakunin, a igualdade social. Não é possível que eu seja livre em uma sociedade que não é livre, onde há pessoas que não são livres. O indivíduo só se conscientiza de sua humanidade e conquista sua liberdade através dos esforços de todos os membros passados e presentes de sua sociedade, completando-se com outros indivíduos que o cercam, graças ao trabalho (no sentido de todas as realizações materiais que transformam a natureza) e força coletiva. A sociedade não diminui ou limita, pelo contrário, cria a liberdade dos indivíduos. A liberdade do outro estende a minha ao infinito, aponta Bakunin (1975, p. 14).

O anarquista disserta sobre as dependências sociais inerentes as quais o homem está ligado. O homem “não nasceu livre, mas acorrentado, produto de um meio social particular criado por uma longa série de influências passadas, por desenvolvimentos e factos históricos. Está marcado pela região, o clima, o tipo étnico, a classe a que pertence, as condições econômicas e políticas da sua vida social e, finalmente, pelo local, cidade ou aldeia, pela casa, pela família e vizinhança, em que nasceu” (1975, p. 12-13). Ademais, ele aponta que este é um tipo de pressão quase imperceptível, pois, desde o nascimento, bastante contínua e sutil. Para que o indivíduo se revolte contra estas condições ele terá que revoltar-se, em parte, contra ele próprio, contra suas tendências, aspirações materiais, intelectuais e morais, já que ele é um produto da sociedade. Mais do que isso, é importante conhecer as pessoas que te cercam, tendo em vista que a sua individualidade está relacionada à deles. “Mesmo que eu queria ser livre, não posso, porque a minha volta ainda nenhum homem quer ser livre e não o querendo, eles transformam-se contra mim, em instrumentos de opressão” (1975, p. 21).

De todo modo, Bakunin não vê problema na característica da sociedade exercer coerção, não havendo sentido em se revoltar contra seu formato, assim como não faz sentido se revoltar contra a natureza. O alvo de transformação são as instituições dentro do tecido social (como a Estado, a Igreja e o sistema econômico) que produzem o culto divino, a autoridade, a mentira, o privilégio, a exploração, a corrupção e outros males. É preciso primeiro moralizar a sociedade, ele diz (p. 21). E para isso acontecer, somente com uma revolução social. A atual configuração da sociedade produz os crimes em vez de reprimi-los, impele os indivíduos a serem imorais e autoritários. Enquanto uma sociedade anárquica, organizada de baixo para cima, federalizada, criará condições propícias para, ao contrário do que ocorre, os indivíduos serem cada vez mais solidários e livres. É por esta razão que Bakunin não vê problema no fato de uma sociedade exercer coerção sobre seus membros, a questão é que tipo de coerção. Assim ele escreve: “A única autoridade grande e toda-poderosa e ao mesmo tempo natural e racional, a única que nós podemos respeitar, será a do espírito coletivo e público duma sociedade fundada na igualdade e na solidariedade, assim como na liberdade e no respeito humano e mútuo de todos os seus membros” (p. 19). Importante atentar para a palavra “natural”, pois os anarquistas do séc. 19 repisam o argumento de que a anarquia é uma adequação à natureza e, por isso, querem o fim do Estado e de instituições que exercem influências “artificiais” e que são intermediárias entre os indivíduos.

Ressalto ainda que Bakunin não gosta nem um pouco da ideia de “contrato social” que, segundo Rousseau, retiraria uma parcela de liberdade dos indivíduos para garantir seu restante. Isto porque a liberdade para Bakunin é radical e integral ou não é nada. O máximo que o contrato pode fazer é produzir segurança em detrimento da liberdade. Pois este “pouco” de liberdade que ele retira é essencial. Seria um contrassenso tentar proteger a liberdade restringindo-a. Atualmente temos assistido a prisão de ativistas aparecendo lado a lado com discursos de defesa dos “interesses coletivos da maioria” (pois os manifestantes não representariam o povo), de que “não há motivos para se protestar num Estado democrático de direito” e de que “protesto se faz nas urnas”. Para os emissores destes discursos, Bakunin escreve com uma atualidade implacável: “Mas o Estado, dir-se-á, o Estado democrático, baseado no sufrágio livre de todos os cidadãos, não poderia ser a negação da liberdade destes. E porque não? Isso dependerá absolutamente da missão e do poder que os cidadãos delegarem ao Estado. Um Estado republicano, baseado no sufrágio universal, poderá ser muito despótico, mesmo mais despótico do que o Estado monárquico, logo que sob o pretexto de representar a vontade de toda a gente, ele esmague a vontade e o movimento livre de cada um dos seus membros, com todo o peso do seu poder coletivo. É em nome desta ficção a que se chama, tantas vezes, interesse coletivo, direito colectivo ou vontade e liberdade colectivas, que os absolutistas jacobinos, os revolucionários da escola de J.-J. Rousseau e de Robespierre, proclamam a terrível e desumana teoria do direito absoluto do Estado” (1975, p. 27).

Para finalizar, gostaria de voltar à contemporaneidade do anarquismo. O esgotamento do marxismo, acompanhado pela derrocada do socialismo estatista, as seguidas depressões e crises sofridas pelo capitalismo pós-industrial e o descontentamento da população mundial com as atuais formas de governo e de representação política não são senão as previsões de futuro que os anarquistas desde o século 19 alardeavam. No plano teórico o anarquismo é hoje um importante referencial para se compreender a sociedade, os poderes, os indivíduos e as instituições. É verdade que os autores ainda pareçam por demais otimistas e ingênuos a nossos olhos (contaminados de realismo pessimista) quando apresentam suas propostas de um mundo diferente. Mas como ferramenta de crítica, eles são quase impecáveis. No plano prático, depois de a crise mundial de 2008, pipocam no mundo todo inúmeros grupos que se distanciam cada vez mais do formato do partido e de militância hierarquizada antes tão comum. E com esta nova realidade aparece a dificuldade da repressão atuar. Isso ficou nítido no processo contra os ativistas que participaram das manifestações desde junho do ano passado no Brasil. Não há um centro ou uma liderança. Algumas pessoas, que a justiça brasileira insiste em aglutinar em uma organização, nem ao menos se conhecem. E ainda sobre esse inquérito, se engana quem pensa que o nome do anarquista aparece como inspiração política ou instrução tática às manifestações, ele é um dos suspeitos mesmo. E, convenhamos, Bakunin é culpado. É ele (e tantos outros) que alimenta os sonhos de gerações que acreditam que uma sociedade mais livre e igual é questão de vontade. Com efeito, o maior crime do russo Mikhail Bakunin foi esse, o de ter nutrido em nós a esperança de um mundo melhor.

Lembram do que eu disse sobre um certo significado de “História” no início do post? Lembram do objeto que utilizei na metáfora? Pois é. “A Lanterna” era o nome também de um jornal anarquista que circulou na primeira metade do século 20, aqui no Brasil. Quem sabe o anarquismo seja uma lanterna que acabamos de desenterrar e que nos ajudará a enxergar de maneira nova o presente, iluminando o caminho para novos horizontes. A força desta luz é a possibilidade da história ser feita. Talvez assim Bakunin possa finalmente descansar em paz ao, assim que realizado aquele objetivo com sua ajuda, darmos então o sentido mais comum ao vocábulo “História”, aquele de honrar os mortos escrevendo uma narrativa redentora. Enfim o russo poderá ser livre. E nós também. Já que a sua liberdade estende a nossa até o infinito.

Referências:
BAKUNINE. Conceito de liberdade. Tradução Jorge Dessa. Porto, Portugal: Edições RES limitada, 1975.
BAKUNIN, Mikhail. Textos anarquistas. Notas e seleção de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, 2006.
RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da história: um ensaio de poética do saber. São Paulo: EDUC/Pontes, 1994.
WOODCOCK, George. História das ideias e dos movimentos anarquistas, vol. I: a ideia. Porto Alegre: L&PM, 2007.  
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terça-feira, 22 de julho de 2014

Resumo completo de Vigiar e Punir (parte III e IV): disciplina e prisão

Dando continuidade ao texto anterior, este post pretende servir como guia para quem ainda não leu ou procura orientação a respeito do que tratam cada item e capítulo da obra Vigiar e Punir, escrita por Michel Foucault e publicada, em 1975, com o título original (em francês) de Surveiller et Punir: Naissance de la prison.

Terceira parte: a disciplina

I. Os corpos dóceis. Neste capítulo, talvez um dos mais conhecidos da obra, Foucault descreve toda a maquinaria (ou microfísica) do poder, constituída por detalhes sutis e invisíveis, presente nos séculos 17 e 18. Tal microfísica serve à produção de individualidades, ou melhor, de indivíduos que possam cumprir funções úteis, ajustando-se a um determinado tipo de sociedade emergente. Por exemplo, antes deste período, os soldados eram aqueles que já possuíam de antemão um corpo adequadamente predisposto para exercer seu ofício (isto é, conforme uma certa exigência física), agora não necessariamente. É que a partir de então o corpo torna-se o local de investimento de várias técnicas e mecanismos que pretendem docilizá-lo; tornando, assim, as pessoas tão mais úteis quanto mais obedientes e vice-versa. Para o autor, o homem objetificado (aquele do humanismo) pode ser inventado graças à descoberta da maleabilidade do corpo. Estas relações de poder seguem o mesmo modelo e são exercidas em diversas instituições: na escola, no hospital, na fábrica, no quartel; embora tenham nascido, anteriormente, nas igrejas (sobretudo em células monásticas). Ainda que haja um esquecimento sobre este projeto social, é possível compreender que ao lado do sonho de uma sociedade perfeita, utópica, saída da pena de filósofos e juristas, estava também, nesta época, o sonho de uma sociedade disciplinar. O que Foucault faz, no livro todo, é descrever este modelo e seus mecanismos, suas engrenagens, seus discursos e práticas, sem necessariamente afirmar que eles foram eficazes e que não havia resistência dos sujeitos (como alguns de seus críticos argumentaram); haja vista que uma sociedade disciplinar não é o mesmo que uma sociedade disciplinada, como aponta Vieira (2008, p. 11).

II. Recursos para o bom adestramento. O capítulo aborda os dispositivos que se encarregariam da eficácia do projeto disciplinar na sociedade moderna. Entre eles está o modelo do acampamento militar, que é aplicado à extensão da sociedade e suas instituições para constituir um grande observatório, garantindo uma vigilância múltipla em que as técnicas de ver objetivam, na verdade, efeitos de poder sobre aqueles que são vistos e em que “os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam” (1999, p. 143). Para a atuação de tais dispositivos de poder, há toda uma modificação da arquitetura, que passa a ser construída não mais para ser vista, mas para permitir um controle daqueles que nela estão localizados, tornando-os visíveis. “O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento – do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de sair – começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens e das transparências” (p. 144). Neste cálculo de adestramento, a distribuição de tarefas de vigilância e a fiscalização dos funcionários que cuidam da própria instituição são partes importantes de um sistema que se auto-sustenta. Isto é, por mais que a instituição tenha um chefe ou um diretor, é o aparelho mesmo em seu funcionamento que faz circular o poder, incidindo de cima para baixo, mas também de baixo para cima. Além disso, a disciplina cria um sistema de recompensas e penalidades contínuas para individualizar e classificar as condutas. Este separa o mau do bom, hierarquizando os indivíduos. Mas seu intuito é homogeneizar, ou seja, fazer com que todos se pareçam, constituindo uma normalização. O funcionamento jurídico-antropológico moderno nasce destes mecanismos da sanção normalizadora; o poder da norma nada mais é do que produto das disciplinas que funcionam nas instituições deste período. Também integrando o conjunto de mecanismos de adestramento (a maioria ainda atuante, por exemplo, em escolas dos dias atuais), “o exame” reúne o saber e o poder num só dispositivo de maneira bastante clara, pois permite normatizar e constituir saber sobre o objeto. O exame possibilita escrever o indivíduo, torná-lo visível para as ciências clínicas. “Essa nova descritibilidade é ainda mais marcada, porquanto é estrito o enquadramento disciplinar: a criança, o doente, o louco, o condenado se tornarão, cada vez mais facilmente a partir do século 18 e segundo uma via que é a dos mecanismos de disciplina, objeto de descrições individuais e de relatos biográficos. Esta transcrição por escrito das existências reais não é mais um processo de heroificação; funciona como processo de objetivação e de sujeição. A vida cuidadosamente estudada dos doentes mentais ou dos delinqüentes se origina, como a crônica dos reis ou a epopéia dos grandes bandidos populares, de uma certa função política da escrita, mas numa técnica de poder totalmente diversa” (p. 159).

III. O panoptismo. Este capítulo se inicia descrevendo as prescrições para uma cidade, do século 18, quando havia declaração de peste em seu território. Uma quarentena se montava: indivíduos trancados em suas casas, intendentes e “síndicos” vigiando, produção contínua de relatórios escritos e orais. Nesse sistema de exceção, a cada habitante é dada uma função, anota-se “o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição” [...] “tudo o que é observado durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados” (p. 163). Se o modelo gerado pela lepra foi o Fechamento (como Foucault apresenta em História da Loucura na Idade Clássica), o da peste é a sociedade disciplinar. Um coletiviza e agrupa, outro individualiza e recorta. A figura arquitetural dessa composição é o “panóptico” de Jeremy Bentham. Este consiste em um anel na periferia, dividido em celas que, por sua vez, possuem janelas interna e externa onde a luz entra; e uma torre no centro, para observar as “individualidades” e fazê-las acreditarem que estão sendo observadas todo tempo. Tal mecanismo visa assegurar um funcionamento automático do poder. É interessante ressaltar que este laboratório de experiências com seres humanos torna o local de poder, também, uma instância de saber. Isto se aplica a toda a sociedade. O panóptico tem como objetivo se difundir por todo o corpo social. E há motivos contextuais para tal: multiplicidade dos indivíduos na explosão demográfica, crescimento do aparelho de produção, resposta ao sistema representativo (um “lócus” em meio à despersonalização do poder), formação do saber e majoração do poder em processo circular do séc. 18 (por ex: hospital, escola, oficina deram possibilidade do surgimento da medicina clínica, psiquiatria, psicologia da criança, psicopedagogia, racionalização do trabalho, etc.).  

Quarta parte: a prisão

I. Instituições completas e austeras. Aqui Foucault resume a tese principal de seu livro ao mostrar que antes da prisão ser inaugurada como peça das punições, ela já havia sido gestada na sociedade a partir do momento em que os mecanismos de poder repartiam, fixavam, classificavam, extraíam forças, treinavam corpos, codificavam comportamentos, mantinham sob visibilidade plena, constituíam sobre eles um saber que se acumulava e se centralizava sobre os indivíduos (p. 195). Por isso a prisão surge como algo inevitável, por mais que existissem outros projetos de punição de reformadores, por mais que ela recebesse críticas sobre sua ineficácia e seu perigo – desde seu nascimento. Esta instituição penal surge para ser a coação de uma educação total, para possuir uma disciplina onipresente a fim de transformar o indivíduo pervertido. Suas técnicas de poder passam principalmente pelo “isolamento” (sobretudo nos modelos americanos que eram baseados nos monastérios), logo, a “solidão”, a tentativa de “autorregulação pela reflexão” e o “trabalho” (sendo que este último gerou controvérsias entre os operários da época; contudo, é preciso ressaltar que o mesmo não visava lucro e sim o efeito sobre os corpos e as almas dos presos). Neste sentido, a pena é feita para ser regulada por ela mesma durante o processo de transformação, não havendo uma relação necessariamente direta entre crime e castigo. O processo de ascensão e consolidação do sistema prisional produz uma diferenciação, essencial, entre infrator e delinquente. Ao contrário do primeiro, este último está ligado ao seu crime por um feixe de relações prévias, instintos, histórico, comportamento, classe e etc. Embora o correlativo da justiça penal seja o infrator, o do aparelho penitenciário é o delinquente – unidade biográfica, núcleo de periculosidade, representante de um tipo de anomalia (p. 213); pode-se dizer que ele, o delinquente, é uma invenção do sistema penal. Aquele não existe antes deste.

II. Ilegalidade e delinquência. Ainda na primeira metade do século 19, na França, a cadeia se misturava com a prática do suplício. A cadeia era, na verdade, um carro que seguia por diversas cidades levando o condenado atrelado a instrumentos de tortura. A multidão participava desta “festa do suplicio”, gritando e xingando, podia ser contra o criminoso ou contra o excesso da punição. Ao mesmo tempo em que era repudiado, o criminoso participava também da festa, ganhava ares de notoriedade, uma vez que os jornais contavam seu nome e sua história antes dele chegar à cidade. Essa festa reservava prazeres que nem a liberdade concedia, por exemplo, cânticos coletivos de uma estranha inversão do código moral (exaltação do criminoso, rebaixamento dos poderes constituídos). Devido a tal fato, o carro-cadeia foi substituído pela carroça celular, que imitava um panóptico ambulante. Pouco tempo, este deu lugar à prisão mais ou menos no formato em que a conhecemos hoje. Foucault ressalta que a prisão já apareceu cercada por críticas e desconfianças: ela não diminuía a taxa de criminalidade, mas aumentava; provocava reincidência (inicialmente 38% e aumentando); fabricava delinquentes, sobretudo por não tratá-los como seres humanos e abusar do poder, assim, tornando-os coléricos; havia corrupção, medo e incapacidade dos guardas, especialmente para manterem sua segurança; exploração do trabalho penal, como venda de prisioneiros como escravos; organização do crime, solidariedade e hierarquia entre os criminosos; as condições de identificação e vigilância dos ex-detentos os levavam a praticar novos crimes. Até hoje as críticas são as mesmas: a prisão ao tentar corrigir não pune; a prisão gasta muito para fazer um trabalho ineficaz. E a resposta é a mesma também: deve-se fazer exatamente o que está no roteiro para que a instituição seja eficaz: principio da correção; da classificação; da modulação das penas; do trabalho como obrigação e como direito; da educação penitenciária; do controle técnico da detenção; das instituições anexas. “O sistema carcerário junta numa mesma figura discursos e arquitetos, regulamentos coercitivos e proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis, programas para corrigir a delinquência e mecanismos que solidificam a delinquência. O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão?”, questiona o autor (p. 225). Tentando perceber algo que não é explicitamente dito, Foucault afirma que há uma utilidade nos fenômenos que a crítica à prisão denuncia (isto é, na manutenção da delinquência, indução a reincidência, transformação do infrator ocasional em delinquente): é que os castigos não objetivam suprimir as infrações, mas distingui-las, distribuí-las, utilizá-las; trata-se de uma tática geral das sujeições, visando uma dominação, uma administração das infrações e não exatamente um aparelho para tornar dóceis os que praticam os crimes. Tendo em vista o tratamento diferenciado (tolerância ou intolerância) aos delitos praticados por um indivíduo se pertencente a uma classe ou não, ou se possuidor de um determinado tipo de histórico que justificaria sua natureza ou não, para Foucault não há uma separação entre ilegalidades e legalismo, mas entre ilegalidade e delinquência. O maior objetivo da prisão foi ter fabricado a delinquência, fazendo-a legítima, aceita, por isso até hoje a prisão perdura. Concomitantemente, os jornais, os noticiários e a literatura constituíam a estética do crime que ajudava a legitimar a “produção da delinquência”. Mas, por outro lado, existia também um contra-noticiário que jogava com os fatos dos crimes, mostrando a devassidão e a miséria espiritual em que viviam os burgueses, colocando culpa na sociedade pelos desfalecidos e criminosos das classes populares. Um exemplo é o jornal fourierista La Phalange, que Foucault redescreve o diálogo entre um infrator de 13 anos e o juiz. Ali o autor quer mostrar as lutas sendo praticadas na sociedade. De alguma forma, se o juiz fosse o indivíduo das classes populares estaria ele sofrendo os efeitos do poder da classe dominante e o garoto “infrator” ocupando seu lugar.

III. O carcerário. Foucault data a formação completa do sistema carcerário francês em 1840, ano de inauguração de Mettray (instituição para detenção de jovens infratores condenados) ou no dia em que um menino infrator lamentou sua saída da mencionada colônia penal (talvez dando a prova da eficácia do sistema disciplinar que lá funcionava). “’A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos graves é punir muito severamente as mais leves faltas; em Mettray reprime-se qualquer palavra inútil’; a principal das punições infligidas é o encarceramento em cela; pois ‘o isolamento é o melhor meio de agir sobre o moral das crianças; é aí principalmente que a voz da religião, mesmo se nunca houvesse falado a seu coração, recebe toda a sua força e emoção’; toda a instituição parapenal, que é feita para não ser prisão, culmina na cela em cujos muros está escrito em letras negras: ‘Deus o vê’” (p. 243). Este é o princípio essencial do panóptico, sentir-se vigiado mesmo quando ninguém está vendo, coagido a fazer o correto e seguir a norma. Em Mettray, os chefes e subchefes não agem como pais, juízes, professores, contramestres, mas são um pouco de cada um. Na expressão do autor, são ortopedistas da individualidade. Interessante notar que para trabalharem no local, os chefes e subchefes precisam dominar uma técnica disciplinar que eles apreendem quando são submetidos a um treinamento que consiste em fazê-los sofrer coisa semelhante aos infratores. Por fim, os chamados efeitos do carcerário são os seguintes: espraiamento de poderes disciplinares no corpo social; recrutamento dos grandes delinqüentes e a produção destes; criação da legitimidade de punir e disciplinar; invenção de uma relação íntima entre natureza e lei, a norma; criação de um saber que objetiva o comportamento humano, através da observação contínua via panóptico (e de sua relação com as ciências humanas); isso explica sua continuidade sólida diante do pretenso fracasso da prisão. Contudo, e apesar de toda esta maquinaria descrita, Foucault encerra o livro com um texto anônimo publicado no jornal La Phalange, de 1836, para mostrar que estes mecanismos apresentados em Vigiar e Punir não são o funcionamento unitário de um aparelho (finalizado e vencedor), mas são estratégias postas em uma batalha que até hoje não cessou.

Referências:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
VIEIRA, P. P. Pensar diferentemente a história: o olhar genealógico de Michel Foucault em “Vigiar e punir”. Campinas-SP: [s.n.], 2008. 
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quinta-feira, 17 de julho de 2014

Resumo completo de Vigiar e Punir (parte I e II): suplício e punição

Este texto pretende servir como guia para quem ainda não leu ou procura orientação a respeito do que tratam cada item e capítulo da obra Vigiar e Punir, escrita por Michel Foucault e publicada, em 1975, com o título original (em francês) de Surveiller et Punir: Naissance de la prison. Eis que na página 23 podemos ler o propósito da obra segundo seu autor: “Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade” (1999, p. 23). Deve-se compreender que, pelo termo “alma”, o filósofo não se refere ao objeto metafísico corrente no senso comum, porém o que poderíamos designar igualmente por “psique”, “subjetividade”, “personalidade”, “consciência”.  

Primeira parte: o suplício

I. O corpo dos condenados. O autor inicia este capítulo expondo dois documentos que explicitam dois estilos penais diferentes. O primeiro documento é a descrição de um suplício, um espetáculo público bastante violento [“Finalmente foi esquartejado. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas” (p. 09)]; já o segundo documento descreve alguns artigos do código de execução penal, com toda a sua utilização fragmentária do tempo e sua sutileza punitiva [“Art. 17. – O dia dos detentos começará às seis horas da manhã no inverno, às cinco horas no verão. O trabalho há de durar nove horas por dia em qualquer estação. Duas horas por dia serão consagradas ao ensino. O trabalho e o dia terminarão às nove horas no inverno, às oito horas no verão” (p. 10)]. Entre eles há um hiato surpreendente de apenas três décadas (do final do século 18 e início do século 19). Para alguns relatos da época (e também atuais), o desaparecimento do suplício tem a ver com a “tomada de consciência” dos contemporâneos em prol de uma “humanização” das penas. Mas a mudança talvez se deva mais ao fato de que o assassino e o juiz trocavam de papeis no momento do suplício, o que gerava revolta e fomentava a violência social. Era como se a execução pública fosse “uma fornalha em que se acende a violência” (p. 13). Sendo assim, necessário seria criar dispositivos de punição através dos quais o corpo do supliciado pudesse ser escondido, escamoteado; excluindo-se do castigo a encenação da dor. A guilhotina já representa um avanço neste sentido, pois faz com que aquele que pune não encoste no corpo do que é punido. A partir da segunda metade do séc. 19, na mudança do suplício para a prisão, embora o corpo ainda estivesse presente nesta última (por ex: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra), é a um outro objeto principal que a punição se dirige, não mais ao corpo, e sim à alma. “A expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições” (p. 18). Mesmo que não haja grande variação acerca do que proibido e permitido nesse período, o objeto do crime modificou-se sensivelmente. Não só o ato é julgado, mas todo um histórico do criminoso, “quais são as relações entre ele, seu passado e seu crime, e o que esperar dele no futuro” (p. 19). Assim, saberes médicos se acumulam aos jurídicos para justificar os mecanismos de poder não sobre o ato em si, mas sobre o indivíduo, sobre o que ele é. A justiça criminal se ampara em saberes que não são exatamente os seus e cria uma rede microfísica para se legitimar.

II. A ostentação dos suplícios. O capítulo se inicia com a exposição de discursos oficiais que regiam as práticas penais de 1670 até a Revolução (Francesa, em 1789). Execuções eram raras, só em 10% dos casos. Mas a maioria das penas vinha acompanhada do suplício (pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz). O suplício deve marcar o condenado e por isso tem níveis e hierarquias. A morte (execução), por exemplo, é um suplício em que se atinge o grau máximo de sofrimento (por esta razão chamada de “mil mortes”). É um ritual, uma arte de fazer sofrer. E deve ser assistida por todos, constatada como triunfo da justiça. A determinação do grau de punição variava não somente conforme o crime praticado, mas também de acordo com a natureza das provas. Por mais grave que um crime fosse, senão houvesse provas contundentes, o suplício era mais brando do que aquele em que o crime era menos grave, mas que, por outro lado, dispunha de provas integrais sobre o delito. Semelhante a literatura de Kafka, o processo era feito sem o processado saber. Tal sigilo garantia sobretudo que a multidão não tumultuasse ou aclamasse a execução. Desta forma o rei mostrava que “força soberana” não pertencia à multidão, tendo em vista que o crime ataca, além da vítima, também o soberano. Quanto à participação do povo nessas cerimônias, ela era ambígua. Muitas vezes era preciso proteger o criminoso da ira do povo. O rei permitia um instante de violência, mas sem excessos, principalmente para não dar a ideia de privilégio a massa. Por outro lado, em algumas ocasiões o povo conseguiu até mudar a situação do suplício e suspender o poder soberano; em casos semelhantes, havia revolta contra sentenças de crimes menos graves; ou comparecia simplesmente para ouvir aquele que não tinha nada a perder maldizer os juízes, as leis, o poder e a religião (uma espécie de carnaval de papeis invertidos, em que os poderes eram ridicularizados e criminosos viravam heróis).

Segunda parte: a punição

I. A punição generalizada. Neste item, Foucault aborda a mudança da punição. Na segunda metade do séc. 18, o suplício passa a ser visto pelos reformadores com um perigo ao poder soberano, porque a tirania leva à revolta. Entende-se a necessidade de se respeitar no assassino, o mínimo, sua “humanidade”. Antes de tal mudança de concepção, ocorre uma transformação na qualidade dos crimes, que passam do sangue (agressões e homicídios) à fraude e contra a propriedade (roubos, invasões, etc.). Isto tem a ver, obviamente, com o processo social (econômico) que corre paralelo desde o século 17 (desenvolvimento da produção, aumento de riquezas, valorização moral e legal das propriedades privadas, novos métodos de vigilância, policiamento mais estreito). Então não é meramente uma questão de respeito à “humanidade” que fez mudar os dispositivos de punição, mas de adequação de penas aos delitos. Por exemplo, a justiça fica mais rigorosa em alguns casos, antecipando os crimes. O objetivo da reforma não é fundar um novo direito de punir mais equitativo, porém estabelecer uma nova distribuição para que este não fosse descontínuo ou excessivo e flexível em alguns pontos. A reforma não vem somente de fora, parte também de dentro do sistema judiciário, é certo que ela vem de filósofos, mas também de magistrados. Na história da França, a reforma se consolidou após a Revolução porque insidia diretamente sobre os pobres. Inauguram-se aí duas objetivações, do criminoso e do crime: o criminoso como homem da natureza que precisa de cultura, o “anormal”, o louco, o doente, o monstro; e a organização de campo de prevenção, constituição de certeza e verdade, codificação, definição dos papeis, regras de procedimento.

II. A mitigação das penas. A reforma do sistema punitivo caminha em direção à noção de que a punição deve participar de uma mecânica perfeita em que a vantagem do crime se anule na desvantagem da pena; desestimulando, assim, futuros contraventores e, principalmente, eliminando a reincidência. Neste sentido, a punição não deve aparecer mais como efeito da arbitrariedade de um poder humano, mas tão somente consequência natural da prática criminosa. Nesse novo mecanismo, o poder que pune se esconde; funciona como uma tentativa de diminuir o desejo que torna o crime algo atraente. Por isso as penas não podem durar para sempre, elas precisam terminar, mostrar sua eficácia, tornando o criminoso virtuoso. É verdade que existem os incorrigíveis e estes devem ser eliminados, mas, para os demais, as penas só funcionam caso terminem. Além disso, a pena serve não apenas para o criminoso, porém para todos os outros; é importante que seu discurso (de eficácia) possa circular socialmente, se legitimando. E para que o criminoso não vire um herói como outrora, “só se propagarão os sinais-obstáculos que impedem o desejo do crime pelo receio calculado do castigo” (p. 93), não mais a glória ou esperteza do contraventor. Trata-se de dispositivos voltados para o futuro. De agora em diante, se pune para transformar um culpado, não para apagar o crime.  

[para ler o resumo da parte III e IV, clique aqui]

Referência:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 
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