Historiador francês do século 20,
erudito e jesuíta, Michel de Certeau é um nome bastante conhecido na academia.
Em 1974, ele publicou um texto chamado “A
operação histórica”, que pela densidade e aridez linguística tira o sono de
muitos estudantes de História. Apesar de Certeau ser bem recebido por
historiadores de diferentes perspectivas teóricas, seu texto, ainda que lido
com frequência, é pouco “refletido” e colocado em prática. O post que se segue
pretende ser uma resenha comentada de tal texto.
Do que trata o texto de Certeau em linhas gerais? O autor pretende
situar e descrever a particularidade do ofício do historiador através de uma
reflexão teórica sobre o lugar social a partir do qual o pesquisador de
história atua e escreve, como também por meio de uma descrição das práticas,
das técnicas, dos métodos e dos procedimentos utilizados no trabalho histórico.
Isto é, o que faz o historiador quando “faz” história? O aspecto mais
interessante a se perceber é que Certeau usa o processo de análise comum a um
trabalho histórico aplicando seus métodos ao próprio “trabalho do historiador”.
Quer dizer, é como se um historiador historiasse o trabalho de outro
historiador, descrevendo e pensando os bastidores da produção da “obra”
historiográfica. O primeiro passo,
nesse caso, é ligar as práticas e as ideias a um determinado lugar. Para
Certeau esse é um gesto típico de historiador, para o qual compreender é
estabelecer uma análise localizável. Caso contrário “cederia a um álibi
ideológico se, para estabelecer o estatuto do seu trabalho, recorresse a uma verdade
formada e recebida fora dos caminhos pelos quais, em história, todo sistema
de pensamento está referido a ‘lugares’ sociais, econômicos, culturais, etc.”
(1988, p. 17).
O lugar social do historiador não é exclusivamente um ambiente físico
– uma instituição acadêmica isolada, por exemplo. Mas a comunidade de
pesquisadores, a profissão, o posto de estudos e de ensino – uma “área” que
está submetida a opressões e ligada a privilégios, formando uma
particularidade. É a partir desses lugares e envolto a tais pressões que os
métodos de trabalho são fabricados e instaurados. Quando uma pesquisa não
atenta a tais regimentos, procedimentos e métodos específicos desse lugar
social, (in)variavelmente ela é marginalizada ou excluída. Podemos recorrer ao
exemplo de diplomatas ou jornalistas que escrevem sobre história. Alberto da
Costa e Silva (2006), que escreve sobre história da África, é relativamente bem
recebido por historiadores devido seus métodos e seu rigor próprios de uma
pesquisa acadêmica, enquanto isso, Laurentino Gomes (2010), que versou sobre a
história da Independência brasileira através de uma narrativa importada do
romance literário, é totalmente desconsiderado pelos historiadores, porque
apesar de se apoiar numa série de fontes históricas, não usou os critérios de
pesquisa adequados, nem uma construção textual semelhante a que é empreendida no
lugar social do historiador.
O trabalho do historiador, tendo
o texto como produto final, contém o não-dito,
e este é importante para entendermos a construção da pesquisa. A tal história
“objetiva” do século 19 e sua concepção do fato histórico preconcebido foi desmontada
quando se colocou a objeção de que a subjetividade do historiador interferia na
escolha do assunto e dos “fatos”. Entretanto, a defesa da neutralidade da
ciência à política garantiu por certo tempo que a “pluralidade de escolhas dos
intelectuais” fosse a única aceita. Se por um lado essa divisão (ciência –
política) colocava um limite a pretensão do saber, por outro ela tornava
incontrolável a um grupo de pessoas. Contudo, no século 20, introduziram-se as
técnicas de uma disciplina e os conflitos sociais no exame de uma estrutura
epistemológica. Sobretudo, porque a função social da história está ligada ao
grupo de historiadores, às práticas e leis do grupo e às intervenções no jogo
de forças públicas, na política.
Assim, a instituição histórica é o produto de um lugar. Tais lugares que até
os séculos 17 e 18 eram ainda espaços em branco marcam a origem das ciências
modernas. Foi a partir desse período que surgiram assembleias, redes de
correspondência e círculos de sábios formando um conjunto de pessoas e práticas
que constituiriam esses lugares. Com Bacon e Descartes houve uma despolitização
dos saberes, um recuo nos negócios públicos e religiosos, instituindo um lugar
científico. Deste modo, fundou-se uma instituição social associada a esse novo
saber – uma sociedade de estudos, com linguagem própria, que se renova. Ainda
que alguns pesquisadores defendam que o texto e o ofício científico são
suficientes em si mesmos, obedecendo a regras próprias, isto não os impede de
articular sobre o que eles não dizem – sobre o corpo de pesquisadores e
práticas que falam a sua maneira. Há, portanto, uma relação de comunicação com
esse lugar de onde o texto é produzido.
Michel de Certeau (1925-1986) |
Desde o século 19 na França
existe uma concepção de que a teoria não deve expressar o que se faz na
prática. Sobre tal concepção Certeau escreve o seguinte: “Assim, falar-se-á de ‘métodos’ mas sem o impudor de
evocar seu valor de iniciação a um grupo (é preciso aprender ou praticar os
‘bons’ métodos para ser introduzido no grupo), ou sua relação com uma força
social (os métodos são meios graças aos quais se protege, se diferencia e se
manifesta o poder de um corpo de mestres e de letrados). Estes ‘métodos’
esboçam um comportamento institucional e as leis de um meio (1988, p. 24).
Contudo, o autor aponta que isso não invalida o saber científico. Pelo
contrário, as pessoas que pensam assim, na verdade, defendem então uma ciência
neutra ou “autônoma” em relação à sociedade. Não há, para Certeau, uma
separação entre história das ideias científicas e uma análise social da
ciência. Elas estão imbricadas num encontro entre teoria e prática. Da mesma
forma, a expressão “os historiadores na
sociedade” demonstra que o pesquisador é um ser que vive, pensa, fala,
escreve a partir de relações sociais, culturais, políticas, econômicas,
linguísticas, sendo por isso influenciado pelas mesmas. Para Certeau, por
exemplo, não é por acaso que no período entre guerras a história social teve
uma virada à economia, trata-se da “influência” da crise de 1929, por outro
lado, a ascensão de uma história cultural está diretamente relacionada à
expansão da Indústria Cultural e das mídias de massa. Portanto, o lugar é o que permite e o que interdita
o que pode ser dito. O lugar é uma condição para que dela surja alguma fala com
relação ao corpo social, e a interdição são as impossibilidades de falar
relativas aos limites do próprio corpo social. Talvez por isso os trabalhos de
história sobre literatura, de certos autores, encontrem tantas dificuldades em
adestrar os enunciados (que mais parecem sonhos) para exaurir significações de
realidades sociais já aceitas.
Após
discorrer sobre o lugar social, finalmente Certeau fala das práticas
historiográficas. Estas também possuem relação direta com o lugar social. Isto
é, as técnicas de produção da história são fabricadas a partir de um lugar e de
um tempo específicos. O estabelecimento de fontes ou a redistribuição do espaço
é uma operação técnica na qual o historiador transforma um objeto em documento através da seleção e da reunião.
Esse exercício pode servir tanto para manter seguro o poder de uma dinastia,
por exemplo, expressando que alguns objetos reunidos num arquivo são a verdade
da tradição de um povo como acontecia nos séculos passados, quanto para
estabelecer um quadro estatístico através do computador selecionando diversos
conflitos e guerras após a criação da ONU em 1948 com o intuito de desmontar um
“modelo discursivo hegemônico” de que a fundação do órgão internacional
promoveu a paz entre as nações.
No
primeiro caso, funciona um tipo de história que pretende excluir acidentes,
descontinuidades, diferenças e exceções em prol de um projeto político coeso e
conservador. No segundo, uma história que faz
aparecer as diferenças mostrando o desvio ao modelo – antes essa atividade
historiográfica agia para desestabilizar ou apontar os limites de um modelo
criado pela história tradicional, atualmente ela pode construir modelos a
partir de um a priori para sua própria pesquisa, depois aferir ou testar os
limites desse modelo mostrando as diferenças e atribuindo posteriormente
significado aos resultados. Contudo, tanto uma operação histórica quanto a
outra promove uma articulação entre
natureza e cultura, porque transforma objetos naturais em culturais,
modificando assim a paisagem. O passado deixa de ser um dado e se torna um
produto. Um exemplo hipotético: pode ser natural para um homem chinês comer
gafanhotos e escorpiões, ele nem reflete sobre seu ato alimentar, porém o
historiador pode usar esse “dado” como “documento” mostrando que a prática de
comer insetos/aracnídeos é recente na China e remonta um período de conturbação
política em que a população passava fome.
Para
Certeau, a história não tem mais a função social de prover a sociedade de
representações globais de sua gênese, de mostrar o Espírito da Época ou a
mudança oculta no corpo social, tampouco a função totalizante de dizer o sentido à sociedade como fazia no
século 19. Agora o historiador trabalha
sobre o limite, experimentando os modelos sociológicos, econômicos,
psicológicos e culturais através de testes de (in)validades. A concepção do “fato”
histórico, que se colocava às vezes como verdade supressora de outros fatos e
de outras verdades, uma vez desmontada, volta à tona (com Paul Veyne) na medida
em que ao invés de comprovar um modelo, como era antigamente, agora promove um
desencaixe, não é mais totalidade, mas diferença. Sendo assim, a história tendo
especialidade no particular concebe a posição deste enquanto limite do
pensável. Através do particular o historiador pode demonstrar o limite do
generalizável introduzindo interrogações e significações referentes aos atos,
aos indivíduos e a tudo que foge ao discurso e ao saber – assim como fez Veyne
(2010) que, apesar de lançar inúmeras hipóteses, não soube explicar por que o
imperador Constantino se tornou cristão em 313. Por último, para Certeau a
história deve introduzir-se no passado a partir de uma diferença, de uma
alteridade. “[...] o passado é, inicialmente, o meio de representar uma
diferença. A operação histórica consiste em recortar o dado segundo uma lei
presente, que se distingue do seu ‘outro’ (passado), distanciando-se com
relação a uma situação adquirida e marcando, assim, por um discurso, a mudança
efetiva que permitiu este distanciamento” (1988, p. 40). Ao falar do passado
como diferença, a história mostra seu presente no qual é escrita, mostrando uma
ausência no passado e um limite no interior do presente do qual é possível
ultrapassar.
Pitacos safados!
Exposição de Fernando Pessoa(s) |
Referências:
BOURDIEU, Pierre. A ilusão
biográfica. In: AMADO, J. ; FERREIRA, M (Coord.). Usos e abusos da história
oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 183-191.
CERTEAU, Michel de. A operação
histórica. In: LE GOFF,
Jacques (comp.). História:
novos problemas. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1988, p.
17-48.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1982.
GOMES, Laurentino. 1822. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2010.
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes
dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
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Artigo muito bom. Estar de Parabéns!
ResponderExcluirGostaria de saber o que Certeau mostra no subtítulo o trabalho sobre o limite? No livro a operação historiográfica.
ResponderExcluirObrigada.
Operação histórica, página 27. "Tomar a sério seu lugar, ainda não é explicar a história".
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