Buscando satisfazer a curiosidade
da maioria dos leitores do blog, que não são historiadores, escrevo esse post
com o intuito de traçar uma breve introdução sobre os significados das palavras
elencadas no título acima, mais ou menos da maneira como elas são compreendidas
pelo conjunto de profissionais da área de História (professores, pesquisadores
e estudantes). Frequentemente usados no Tempos Safados, os sentidos de tais
conceitos não possuem consenso entre os historiadores. Entretanto, na tentativa
de uma explicação didática, descreveremos algumas possibilidades de emprego.
Passado
Em termos gerais, o conceito de
passado pode ser compreendido da forma como é expresso pelos dicionários.
Designa toda a série de acontecimentos físicos, geológicos, químicos, sociais,
culturais, econômicos, políticos, psíquicos, morais, individuais e etc., sejam
eles vivenciados, experimentados e/ou sentidos pelos seres vivos ou ocorridos
com qualquer tipo de matéria deste planeta: uma chuva, a erupção de um vulcão, a
formação ou o derretimento de uma geleira, uma síntese de moléculas, uma
formiga carregando uma folha recortada, um golpe de Estado, a invasão de um
território, a escritura de um livro, a leitura desse mesmo livro, um bate-papo
na mesa do bar, uma partida de futebol, um nascimento, uma morte, uma briga, um
pensamento, um sorriso, um aroma, um olhar... Ou seja, tudo o que aconteceu a
partir de um corte imaginário que se faz no tempo entre o presente e o passado,
entre o agora e o outrora. Não há uma organização natural entre estes
acontecimentos, tampouco uma hierarquia de importância entre eles. Pois, embora
possamos acreditar que uns dependem de outros, é a mente humana treinada para
fazer uma retrospectiva memorial que constrói uma necessidade verossímil entre
causa e consequência: sentido. De
toda forma, é humanamente impossível recuperar o passado em sua totalidade ou
sequer saber e conhecer sobre tudo o que aconteceu. O passado é caótico, em
excelência.
História
Comumente, diz-se que a história
é a narrativa composta pelos registros e relatos do passado sobre os humanos, e
não o passado relativo a quaisquer seres vivos e matérias no universo. Mas há
controvérsias, pois, caso contrário ninguém (historiador ou não) escreveria uma
História do planeta Terra ou do Universo. No entanto, fujamos dos embaraços
maiores e voltemos aos menores, pois nem tudo o que dissemos, no parágrafo
anterior, sobre o passado é de concordância de todos os historiadores. Existem
muitos pesquisadores que acreditam haver uma sequência causal necessária entre os eventos do passado na qual uns
acontecimentos são mais importantes que outros. E que, por isso, o trabalho dos
historiadores é descobrir e demonstrar essa sequência através de escassos ou
abundantes fragmentos produzidos no passado que chegaram até o presente.
Os historiadores, então,
transformam estes fragmentos em documentos (as chamadas fontes históricas) e tentam extrair respostas destes – como numa
espécie de interrogação jurídica. Este trabalho é desenvolvido por todos os
profissionais da área. Nem o historiador mais ousado defende a possibilidade de
produzir história sem fonte. Entretanto, a maneira como esta fonte é trabalhada
divide os historiadores em diferentes concepções. Alguns historiadores
acreditam, por exemplo, que as fontes históricas permitirão a reconstrução do passado tal qual
aconteceu, seja descrevendo-as sem lhes acrescentar nada, e/ou fazendo-as uma
crítica interna e externa, e/ou tentando lhes extrair o “não-dito”, e/ou
entendendo-as dentro de um processo histórico longo. Outros historiadores
dividem passado e história completamente, o primeiro é o que se passou, e o
segundo é o que é escrito sobre o que se passou. Não acreditam que seja
possível “reconstruir” o passado, mas construir a história sobre o passado. Isto significa que para estes o passado
compõe a história, mas não se reduz a ela e jamais pode ser substituído por ela. Por isso, a
história é sempre reconstruída, reescrita, repensada.
Historiografia
Suspendamos por um instante a
separação que fiz entre passado – relato do que ocorreu com qualquer coisa/ser –
e história – do que se passou com os humanos! Historiografia é um termo
ambíguo, porque se pensarmos que o passado não existe e que somente o que temos
são relatos sobre o passado – isto é, história(s) de humanos ou não –, então,
historiografia designa justamente a (1º)
escrita da história com seus
procedimentos e métodos próprios, e não qualquer relato narrativo oral e
memorial.[1]
Assim, poderemos separar História de Historiografia. Bom, todavia se nem todos
os relatos sobre o passado puderem ser chamados de história, até porque não só
os saberes populares, mas também outras áreas do conhecimento constroem estas
narrativas escritas e faladas, então pode ser dito que (2º) Historiografia é sinônimo de História – enquanto um conjunto
de procedimentos e métodos reunidos com a pretensão de escrever a(s) verdade(s)
sobre o passado ou, para ser mais específico, sobre um objeto, um tema, um
recorte de tempo que já passou.
Contudo, há outra possibilidade
de uso feita pelos historiadores, talvez a mais comum. Para chegar até ele preciso me esquivar em um
exemplo de acontecimento extremamente problemático: A Revolução Francesa. A partir de algum momento depois de 1789 “consolidou-se”
uma noção geral de acontecimento da Revolução Francesa. Antes de ocorrer isso houve
uma narração escrita ou oral de determinados eventos escolhidos, reunidos e
interligados para compor o que conheceríamos mais tarde como Revolução
Francesa. Embora tenha havido inúmeras
narrações e interpretações do acontecimento “Revolução Francesa”, hoje quase
ninguém discute mais se ela existiu. Assim, há uma “História da Revolução
Francesa” partindo do suposto de que ela realmente aconteceu. Constitui-se
indiscutível para a academia de História (instituição). Entretanto, é
frequentemente discutida a Historiografia
da Revolução Francesa em qualquer trabalho que proponha pesquisar e escrever a
História da Revolução Francesa, pois, neste caso, a Historiografia (3º) designa todos aqueles trabalhos que
se dedicaram à escrita da História da Revolução Francesa e com os quais o
pesquisador se vê impelido a dialogar, a ler, a problematizar, a contrapor, a
concordar, etc. Isso permite, inclusive, pesquisar e escrever uma História da
Historiografia – um campo já existente dentro da universidade.
Quando eu disse que a Revolução
Francesa era um acontecimento extremamente problemático, lembrei-me de Jacques
Rancière – um filósofo que pesquisa História – advertindo que atualmente tem se
confundido, através da historiografia, realidade histórica com verdade
histórica. Isto é, pode-se objetar que só é possível reunir, classificar e
interligar eventos para formar o que chamamos de Revolução Francesa a partir de
uma construção de enredamento apropriado da narrativa literária. Por isso, chamar
de Revolução essa série de eventos, na qual os atores históricos não sabiam que
estavam fazendo e que teve como desfecho o império de Napoleão, não constitui
uma “autoevidência histórica”. Assim, a realidade histórica é a série de
acontecimentos do passado que podemos entrever de alguma maneira pelos registros
do período. Outra coisa é a verdade histórica que é um consenso provisório (e retórico)
formado pelos pesquisadores de história e, geralmente, aceito pela sociedade. A verdade histórica pode ser revogada,
desconstruída, reinventada, a partir de novas leituras e interpretações aos
registros ou apagamentos e esquecimentos dos mesmos. A própria história está
sempre sendo “reescrita”.
Teoria da História
Este termo pode designar tanto (1º) as diversas concepções de
movimento da história, caso acreditemos que o passado possui uma direção
organizada imanente (princípio) que se desloca através de uma determinada
maneira (meio) para um determinado lugar no futuro (fim), quanto (2º) as pesquisas que visam
compreender, refletir e problematizar (e às vezes propor) sobre o ofício do
historiador, suas ferramentas metodológicas, seus procedimentos de estudo, seus
lugares de fala, a relação com seus pares e com a sociedade, a composição de
sua narrativa, os conceitos empregados, isto é, tudo o que está relativo aos
modos pelos quais os historiadores produzem/escrevem história. Neste último
caso, um trabalho de Teoria da História pode focar sua pesquisa a um autor, uma
obra, uma revista de história acadêmica, uma corrente de pensadores, uma escola
de historiadores, etc.
No primeiro caso, a Teoria da
História, frequentemente, coincide com uma Filosofia da História, que é, grosso
modo, um arranjo metafísico, um sistema de pensamento que defende a existência
de um movimento, progressivo ou cíclico, único e totalizante sobre todo o
passado. Pode ser uma marcha para um fim glorioso, a qual lembra bastante o
princípio do cristianismo de juízo final. Pode ser uma marcha para um
cataclismo (para uma desgraça), um choque de civilizações que ocorre(rá) de
tempos em tempos. Mas também pode ser mediado pelo princípio do acaso, da
contingência, de que a história não caminha para nenhum lugar definido, ou de que
ela não caminha, apenas acontece e se vivencia. Para escapar dessa coincidência
de sentidos entre Filosofia e Teoria da História, eu prefiro empregar o termo
Historiografia aqui no blog quando quero descrever as reflexões desenvolvidas
sobre a pesquisa e escrita da história, mas também para me referir ou percorrer
a história da historiografia.
***
Estou certo de que deixei muitas
lacunas durante o texto, sobretudo porque preferi não usar referências
direcionadas para orientá-lo a fim de deixar a linguagem mais clara e a
didática mais eficaz. Espero ter ao menos tirado algumas dúvidas maiores e
instigado a curiosidade para o aprofundamento de quem se interessa pelo tema.
Se quiserem fazer perguntas sobre podem usar o espaço aqui embaixo que tentarei
responder. Deixarei abaixo uma lista de obras importantes para aqueles que
querem se aprofundar no tema, mas que não foram necessariamente usadas para
embasar o meu post.
Recomendações bibliográficas:
BLOCH, Marc.
Apologia da história: ou o
ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BRAUDEL. Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2000.
DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru-SP:
Edusc, 2003.
DROYSEN, Johann
Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2009.
JENKINS, Keith. A história repensada.
São Paulo: Editora Contexto, 2001.
HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LANGLOIS,
Charles; SEIGNOBOS, Charles. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946.
LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL, Jacques (Dir.). A nova história. Coimbra: Almedina, 1990.
MALERBA, Jurandir (org.). Lições de história. Rio de Janeiro:
FGV, 2010.
RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da história. Campinas:
Pontes/Educ, 1994.
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento
Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Cadernos da
UNB, 1982.
______. O inventário das diferenças. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
WHITE, Hayden. Metahistória:
a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1995.
[1] A
memória é outra via de acesso ao passado, às vezes usada como documento pela a
história, mas que não pretendo tratar neste post para não embaralhar ainda mais
a cabeça dos leitores (e nem a minha).
Eu gostaria de entender termos como pós-estruturalismo, pós-modernismo, Idade Clássica. Qual o período cronológico de cada uma, suas características, o q marca a passagem de um período para outro.
ResponderExcluirAbraço.
Raul,
Excluirpara ser bem respondida, sua pergunta geraria no mínimo umas dez páginas, rs. Mas vou tentar responder de uma maneira bem simplificada. O termo "Idade Clássica", ou Classicismo, é empregado por Foucault (pela primeira vez em História da Loucura) para designar o período compreendido entre o fim do Renascimento (final do século 16 e início do século 17) e a Revolução Burguesa (século 18). É o período de transição para a ordem capitalista na França. O termo não pode ser confundido com Antiguidade Clássica, que os historiadores usam para nomer o período europeu que vai mais ou menos do século 8 antes de Cristo até o século 5 depois de Cristo (sobretudo em Grécia e Roma). Mas chamar esse período (do séc. 16 ao 18) é um recorte específico do Foucault, alguns nomeiam essa fase de início da Modernidade ou de Primeira Modernidade - não há consenso.
O pós-estruturalismo não é um recorte de tempo, mas um termo que pesquisadores utilizaram para nomear as teorias do conhecimento de determinados autores que pretendem romper com a filosofia do sujeito, a fenomenologia, a hermeneutica e, sobretudo, com o estruturalismo. Também não há um consenso sobre o termo. Toco no assunto num post aqui no blog: http://tempossafados.blogspot.com.br/2012/09/foucault-o-posestruturalismo-e-os.html
Já "pós-modernidade" demarca a fase (depois das duas grandes guerras) de descrédito com as grandes narrativas da modernidade (metanarrativas) que queriam explicar tudo ou a descrença com as filosofias modernas recém-herdeiras do Iluminismo, que acreditavam que a "razão" nos levaria a um fim da história glorioso: a plena liberdade, igualdade e fraternidade. Pode designar também a era do capitalismo pós-industrial (ou capitalismo tardio) na qual a informação tornou-se tão importante quanto a produção material. Mas, é um dos termos de maior discussão na área de humanidades, muitos julgam (como eu) que a modernidade não acabou (se é que os critérios que a nomeiam são confiáveis). Por isso, alguns até dizem que a "pós-modernidade" não é uma ruptura com a modernidade, o que acaba deixando a expressão meio sem sentido, já que entendemos "pós" como um depois, óbvio. Agora, "pós-modernismo" é usado mais frequentemente nas áreas de artes e arquitetura para denomimar um certo estilo de composição do ramo, ou para "intitular" a posição de intelectuais que defendem uma ruptura com os modernistas. Trato um pouco do assunto no post sobre a dita "Historiografia Pós-Moderna" de Ankersmit e das reflexão de Lyotard sobre a ciência: http://tempossafados.blogspot.com.br/2013/02/o-desembaraco-da-ciencia-em-lyotard.html
Como eu já havia sinalizado em posts anteriores, eu pretendo postar um texto que estabeleça as características e as diferenças entre Pós-Modernidade (Pó-Modernismo) e Pós-Estruturalismo. Com sua pergunta o ânimo está renovado para começar a pesquisa.
Abraços!
Talvez seja uma pergunta idiota, não tenha nada a ver, mas li o teu texto do pós-estruturalismo e fiquei curioso, no texto tu citou uma obra do White, cujo o capítulo era Foucault decodificado: notas do subterrâneo, tem alguma coisa a ver com o romance do Dostoiévski? Fui ver a obra no google books e tem uma menção a ele:"Sade, Marx, Nietzsche e Freud são os quatros luminares dessa tradição crítica porque ensinaram, de uma forma ou de outra, o que Dostoiévski exprimiu em palavras que se formaram o clichê sancionador de tantos movimentos culturais modernos: se Deus está morto, tudo é permitido. Descobrir quais são os limites da liberdade desse clichê autoriza é o principal objetivo da crítica Absurdista". Se tiver, fiquei com curiosidade de entender qual relação.
ExcluirCreio que essa relação implícita é estabelecida pelo próprio White, embora eu não concorde, pois, pelo o que conheço, Foucault pouco ou nada fala de Dostoiévski mesmo tendo tanto insistido na potência da palavra literária (de Sade, de Baudelaire, de Mallarmé, de Proust e outros). Posso estar falando besteira, pelo meu desconhecimento do assunto, mas me parece que o termo relacionado entre Dostoiéviski e Foucault é o "niilismo", enquanto uma ausência na hierarquia de valores morais e éticos da qual pode-se partir para a "reinvenção de si". Nesse caso, a morte de Deus seria muito mais um símbolo da supressão de valores absolutos na modernidade, do que o mergulho no vazio, no nada e na impossibilidade de criar algum sentido (absurdista).
ExcluirAbraços!
eu
ResponderExcluir