sábado, 23 de março de 2013

Passado, História, Historiografia e Teoria da História

Buscando satisfazer a curiosidade da maioria dos leitores do blog, que não são historiadores, escrevo esse post com o intuito de traçar uma breve introdução sobre os significados das palavras elencadas no título acima, mais ou menos da maneira como elas são compreendidas pelo conjunto de profissionais da área de História (professores, pesquisadores e estudantes). Frequentemente usados no Tempos Safados, os sentidos de tais conceitos não possuem consenso entre os historiadores. Entretanto, na tentativa de uma explicação didática, descreveremos algumas possibilidades de emprego.

Passado

Em termos gerais, o conceito de passado pode ser compreendido da forma como é expresso pelos dicionários. Designa toda a série de acontecimentos físicos, geológicos, químicos, sociais, culturais, econômicos, políticos, psíquicos, morais, individuais e etc., sejam eles vivenciados, experimentados e/ou sentidos pelos seres vivos ou ocorridos com qualquer tipo de matéria deste planeta: uma chuva, a erupção de um vulcão, a formação ou o derretimento de uma geleira, uma síntese de moléculas, uma formiga carregando uma folha recortada, um golpe de Estado, a invasão de um território, a escritura de um livro, a leitura desse mesmo livro, um bate-papo na mesa do bar, uma partida de futebol, um nascimento, uma morte, uma briga, um pensamento, um sorriso, um aroma, um olhar... Ou seja, tudo o que aconteceu a partir de um corte imaginário que se faz no tempo entre o presente e o passado, entre o agora e o outrora. Não há uma organização natural entre estes acontecimentos, tampouco uma hierarquia de importância entre eles. Pois, embora possamos acreditar que uns dependem de outros, é a mente humana treinada para fazer uma retrospectiva memorial que constrói uma necessidade verossímil entre causa e consequência: sentido. De toda forma, é humanamente impossível recuperar o passado em sua totalidade ou sequer saber e conhecer sobre tudo o que aconteceu. O passado é caótico, em excelência.

História

Comumente, diz-se que a história é a narrativa composta pelos registros e relatos do passado sobre os humanos, e não o passado relativo a quaisquer seres vivos e matérias no universo. Mas há controvérsias, pois, caso contrário ninguém (historiador ou não) escreveria uma História do planeta Terra ou do Universo. No entanto, fujamos dos embaraços maiores e voltemos aos menores, pois nem tudo o que dissemos, no parágrafo anterior, sobre o passado é de concordância de todos os historiadores. Existem muitos pesquisadores que acreditam haver uma sequência causal necessária entre os eventos do passado na qual uns acontecimentos são mais importantes que outros. E que, por isso, o trabalho dos historiadores é descobrir e demonstrar essa sequência através de escassos ou abundantes fragmentos produzidos no passado que chegaram até o presente.

Os historiadores, então, transformam estes fragmentos em documentos (as chamadas fontes históricas) e tentam extrair respostas destes – como numa espécie de interrogação jurídica. Este trabalho é desenvolvido por todos os profissionais da área. Nem o historiador mais ousado defende a possibilidade de produzir história sem fonte. Entretanto, a maneira como esta fonte é trabalhada divide os historiadores em diferentes concepções. Alguns historiadores acreditam, por exemplo, que as fontes históricas permitirão a reconstrução do passado tal qual aconteceu, seja descrevendo-as sem lhes acrescentar nada, e/ou fazendo-as uma crítica interna e externa, e/ou tentando lhes extrair o “não-dito”, e/ou entendendo-as dentro de um processo histórico longo. Outros historiadores dividem passado e história completamente, o primeiro é o que se passou, e o segundo é o que é escrito sobre o que se passou. Não acreditam que seja possível “reconstruir” o passado, mas construir a história sobre o passado. Isto significa que para estes o passado compõe a história, mas não se reduz a ela e jamais pode ser substituído por ela. Por isso, a história é sempre reconstruída, reescrita, repensada.

Historiografia

Suspendamos por um instante a separação que fiz entre passado – relato do que ocorreu com qualquer coisa/ser – e história – do que se passou com os humanos! Historiografia é um termo ambíguo, porque se pensarmos que o passado não existe e que somente o que temos são relatos sobre o passado – isto é, história(s) de humanos ou não –, então, historiografia designa justamente a (1º) escrita da história com seus procedimentos e métodos próprios, e não qualquer relato narrativo oral e memorial.[1] Assim, poderemos separar História de Historiografia. Bom, todavia se nem todos os relatos sobre o passado puderem ser chamados de história, até porque não só os saberes populares, mas também outras áreas do conhecimento constroem estas narrativas escritas e faladas, então pode ser dito que (2º) Historiografia é sinônimo de História – enquanto um conjunto de procedimentos e métodos reunidos com a pretensão de escrever a(s) verdade(s) sobre o passado ou, para ser mais específico, sobre um objeto, um tema, um recorte de tempo que já passou.

Contudo, há outra possibilidade de uso feita pelos historiadores, talvez a mais comum.  Para chegar até ele preciso me esquivar em um exemplo de acontecimento extremamente problemático: A Revolução Francesa. A partir de algum momento depois de 1789 “consolidou-se” uma noção geral de acontecimento da Revolução Francesa. Antes de ocorrer isso houve uma narração escrita ou oral de determinados eventos escolhidos, reunidos e interligados para compor o que conheceríamos mais tarde como Revolução Francesa.  Embora tenha havido inúmeras narrações e interpretações do acontecimento “Revolução Francesa”, hoje quase ninguém discute mais se ela existiu. Assim, há uma “História da Revolução Francesa” partindo do suposto de que ela realmente aconteceu. Constitui-se indiscutível para a academia de História (instituição). Entretanto, é frequentemente discutida a Historiografia da Revolução Francesa em qualquer trabalho que proponha pesquisar e escrever a História da Revolução Francesa, pois, neste caso, a Historiografia (3º) designa todos aqueles trabalhos que se dedicaram à escrita da História da Revolução Francesa e com os quais o pesquisador se vê impelido a dialogar, a ler, a problematizar, a contrapor, a concordar, etc. Isso permite, inclusive, pesquisar e escrever uma História da Historiografia – um campo já existente dentro da universidade.

Quando eu disse que a Revolução Francesa era um acontecimento extremamente problemático, lembrei-me de Jacques Rancière – um filósofo que pesquisa História – advertindo que atualmente tem se confundido, através da historiografia, realidade histórica com verdade histórica. Isto é, pode-se objetar que só é possível reunir, classificar e interligar eventos para formar o que chamamos de Revolução Francesa a partir de uma construção de enredamento apropriado da narrativa literária. Por isso, chamar de Revolução essa série de eventos, na qual os atores históricos não sabiam que estavam fazendo e que teve como desfecho o império de Napoleão, não constitui uma “autoevidência histórica”. Assim, a realidade histórica é a série de acontecimentos do passado que podemos entrever de alguma maneira pelos registros do período. Outra coisa é a verdade histórica que é um consenso provisório (e retórico) formado pelos pesquisadores de história e, geralmente, aceito pela sociedade. A verdade histórica pode ser revogada, desconstruída, reinventada, a partir de novas leituras e interpretações aos registros ou apagamentos e esquecimentos dos mesmos. A própria história está sempre sendo “reescrita”.

Teoria da História

Este termo pode designar tanto (1º) as diversas concepções de movimento da história, caso acreditemos que o passado possui uma direção organizada imanente (princípio) que se desloca através de uma determinada maneira (meio) para um determinado lugar no futuro (fim), quanto (2º) as pesquisas que visam compreender, refletir e problematizar (e às vezes propor) sobre o ofício do historiador, suas ferramentas metodológicas, seus procedimentos de estudo, seus lugares de fala, a relação com seus pares e com a sociedade, a composição de sua narrativa, os conceitos empregados, isto é, tudo o que está relativo aos modos pelos quais os historiadores produzem/escrevem história. Neste último caso, um trabalho de Teoria da História pode focar sua pesquisa a um autor, uma obra, uma revista de história acadêmica, uma corrente de pensadores, uma escola de historiadores, etc.

No primeiro caso, a Teoria da História, frequentemente, coincide com uma Filosofia da História, que é, grosso modo, um arranjo metafísico, um sistema de pensamento que defende a existência de um movimento, progressivo ou cíclico, único e totalizante sobre todo o passado. Pode ser uma marcha para um fim glorioso, a qual lembra bastante o princípio do cristianismo de juízo final. Pode ser uma marcha para um cataclismo (para uma desgraça), um choque de civilizações que ocorre(rá) de tempos em tempos. Mas também pode ser mediado pelo princípio do acaso, da contingência, de que a história não caminha para nenhum lugar definido, ou de que ela não caminha, apenas acontece e se vivencia. Para escapar dessa coincidência de sentidos entre Filosofia e Teoria da História, eu prefiro empregar o termo Historiografia aqui no blog quando quero descrever as reflexões desenvolvidas sobre a pesquisa e escrita da história, mas também para me referir ou percorrer a história da historiografia. 

***

Estou certo de que deixei muitas lacunas durante o texto, sobretudo porque preferi não usar referências direcionadas para orientá-lo a fim de deixar a linguagem mais clara e a didática mais eficaz. Espero ter ao menos tirado algumas dúvidas maiores e instigado a curiosidade para o aprofundamento de quem se interessa pelo tema. Se quiserem fazer perguntas sobre podem usar o espaço aqui embaixo que tentarei responder. Deixarei abaixo uma lista de obras importantes para aqueles que querem se aprofundar no tema, mas que não foram necessariamente usadas para embasar o meu post.

Recomendações bibliográficas:

BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BRAUDEL. Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2000.
DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru-SP: Edusc, 2003.
DROYSEN, Johann Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2009.
JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Editora Contexto, 2001.
HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LANGLOIS, Charles; SEIGNOBOS, Charles. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946.
LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL, Jacques (Dir.). A nova história. Coimbra: Almedina, 1990.
MALERBA, Jurandir (org.). Lições de história. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da história. Campinas: Pontes/Educ, 1994.
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Cadernos da UNB, 1982.
______. O inventário das diferenças. São Paulo: Brasiliense, 1983.
WHITE, Hayden. Metahistória: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1995.

[1] A memória é outra via de acesso ao passado, às vezes usada como documento pela a história, mas que não pretendo tratar neste post para não embaralhar ainda mais a cabeça dos leitores (e nem a minha).

5 comentários:

  1. Eu gostaria de entender termos como pós-estruturalismo, pós-modernismo, Idade Clássica. Qual o período cronológico de cada uma, suas características, o q marca a passagem de um período para outro.
    Abraço.

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    1. Raul,

      para ser bem respondida, sua pergunta geraria no mínimo umas dez páginas, rs. Mas vou tentar responder de uma maneira bem simplificada. O termo "Idade Clássica", ou Classicismo, é empregado por Foucault (pela primeira vez em História da Loucura) para designar o período compreendido entre o fim do Renascimento (final do século 16 e início do século 17) e a Revolução Burguesa (século 18). É o período de transição para a ordem capitalista na França. O termo não pode ser confundido com Antiguidade Clássica, que os historiadores usam para nomer o período europeu que vai mais ou menos do século 8 antes de Cristo até o século 5 depois de Cristo (sobretudo em Grécia e Roma). Mas chamar esse período (do séc. 16 ao 18) é um recorte específico do Foucault, alguns nomeiam essa fase de início da Modernidade ou de Primeira Modernidade - não há consenso.

      O pós-estruturalismo não é um recorte de tempo, mas um termo que pesquisadores utilizaram para nomear as teorias do conhecimento de determinados autores que pretendem romper com a filosofia do sujeito, a fenomenologia, a hermeneutica e, sobretudo, com o estruturalismo. Também não há um consenso sobre o termo. Toco no assunto num post aqui no blog: http://tempossafados.blogspot.com.br/2012/09/foucault-o-posestruturalismo-e-os.html

      Já "pós-modernidade" demarca a fase (depois das duas grandes guerras) de descrédito com as grandes narrativas da modernidade (metanarrativas) que queriam explicar tudo ou a descrença com as filosofias modernas recém-herdeiras do Iluminismo, que acreditavam que a "razão" nos levaria a um fim da história glorioso: a plena liberdade, igualdade e fraternidade. Pode designar também a era do capitalismo pós-industrial (ou capitalismo tardio) na qual a informação tornou-se tão importante quanto a produção material. Mas, é um dos termos de maior discussão na área de humanidades, muitos julgam (como eu) que a modernidade não acabou (se é que os critérios que a nomeiam são confiáveis). Por isso, alguns até dizem que a "pós-modernidade" não é uma ruptura com a modernidade, o que acaba deixando a expressão meio sem sentido, já que entendemos "pós" como um depois, óbvio. Agora, "pós-modernismo" é usado mais frequentemente nas áreas de artes e arquitetura para denomimar um certo estilo de composição do ramo, ou para "intitular" a posição de intelectuais que defendem uma ruptura com os modernistas. Trato um pouco do assunto no post sobre a dita "Historiografia Pós-Moderna" de Ankersmit e das reflexão de Lyotard sobre a ciência: http://tempossafados.blogspot.com.br/2013/02/o-desembaraco-da-ciencia-em-lyotard.html

      Como eu já havia sinalizado em posts anteriores, eu pretendo postar um texto que estabeleça as características e as diferenças entre Pós-Modernidade (Pó-Modernismo) e Pós-Estruturalismo. Com sua pergunta o ânimo está renovado para começar a pesquisa.

      Abraços!

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    2. Talvez seja uma pergunta idiota, não tenha nada a ver, mas li o teu texto do pós-estruturalismo e fiquei curioso, no texto tu citou uma obra do White, cujo o capítulo era Foucault decodificado: notas do subterrâneo, tem alguma coisa a ver com o romance do Dostoiévski? Fui ver a obra no google books e tem uma menção a ele:"Sade, Marx, Nietzsche e Freud são os quatros luminares dessa tradição crítica porque ensinaram, de uma forma ou de outra, o que Dostoiévski exprimiu em palavras que se formaram o clichê sancionador de tantos movimentos culturais modernos: se Deus está morto, tudo é permitido. Descobrir quais são os limites da liberdade desse clichê autoriza é o principal objetivo da crítica Absurdista". Se tiver, fiquei com curiosidade de entender qual relação.

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    3. Creio que essa relação implícita é estabelecida pelo próprio White, embora eu não concorde, pois, pelo o que conheço, Foucault pouco ou nada fala de Dostoiévski mesmo tendo tanto insistido na potência da palavra literária (de Sade, de Baudelaire, de Mallarmé, de Proust e outros). Posso estar falando besteira, pelo meu desconhecimento do assunto, mas me parece que o termo relacionado entre Dostoiéviski e Foucault é o "niilismo", enquanto uma ausência na hierarquia de valores morais e éticos da qual pode-se partir para a "reinvenção de si". Nesse caso, a morte de Deus seria muito mais um símbolo da supressão de valores absolutos na modernidade, do que o mergulho no vazio, no nada e na impossibilidade de criar algum sentido (absurdista).

      Abraços!

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