
Entretanto, alguns acontecimentos
históricos como as duas grandes guerras e a ascensão dos regimes
totalitários (provocando especialmente o holocausto) mostraram que a agenda
moderna, que colocava uma fé demasiada na “racionalidade humana” para atingir
um progresso ininterrupto ou chegar a um final “feliz” da história, tinha
formulado mal seus cálculos. Diante disso, cabe-nos refletir sobre o papel que a
escola cumpre atualmente e o que ela precisa mudar para continuar funcionando;
já que instituições sociais criadas na modernidade (como o manicômio e a
prisão) têm sua validade questionada na pós-modernidade. Cabe-nos, igualmente, repensar o trabalho do professor enquanto sujeito que pretende
formar alunos, enfrentando uma crise da escola e uma desvalorização
profissional que não deixa de ser o reflexo do desencaixe dos mesmos na atual
sociedade.
Neste sentido, Albuquerque Júnior faz inicialmente uma historicização
da criação da escola na modernidade. Vinculada a seu projeto humanista e
liberal, seu papel era tornar o homem dono de si e do mundo, um cidadão apto
para atuar e trabalhar dentro de uma ordem estabelecida burguesa, respeitar
normas e valores comuns, hierarquias, autoridades e assimilar saberes
instrumentais. O nascimento da escola coincide com o solapamento da educação da
criança antes centrada na família. Isto é, neste momento, o Estado toma da família o papel de educar e formar cidadãos. É mais
fácil desde cedo introjetar as maneiras pelas quais as pessoas devem se portar
em adequação às regras coletivas (governamentalidade), formando
indivíduos massificados. O saber escolar é um saber elitizado, pouco afeito às
realidades sociais das classes baixas. Com isso, é inevitável o surgimento de
diversos conflitos dentro do ambiente escolar na medida em que a escola toma o
papel de educar inclusive os filhos das classes pobres. As experiências de vida
dessas pessoas se chocam com os valores e comportamentos transmitidos pela
escola, sobretudo, porque a escola foi uma instituição social inicialmente projetada para preparar a
elite dominante para ocupar os cargos de administração do Estado. Já no século
20, ela precisou formar também uma mão-de-obra especializada para prover as
empresas capitalistas. A partir de então, ela passa a funcionar como uma empresa preocupada, em primeiro lugar, com os lucros.
Os alunos, da mesma forma, apropriam-se de igual maneira. Concluem um curso
somente para obter um diploma que vai permiti-los ingressar ao mercado de
trabalho, sem sequer se preocuparem com a instrução reflexiva e crítica que o saber
pode lhes proporcionar.
![]() |
Albuquerque Jr. (1961) |
No Brasil durante muito tempo a
escola serviu apenas a uma elite branca e rica. Negros, mulheres e pobres eram
excluídos. Somente após os anos 50 a educação foi se abrindo para a massa e
chegando à zona rural. Diz-se que a qualidade da educação tem piorado desde
então. Como já foi exposto acima, isso pode ser explicado pelo choque entre a particularidade dos saberes
escolares e a heterogeneidade (diferentes concepções de mundo,
valores e perspectivas diversas) do público atendido. Por outro lado, numa sociedade
informatizada como a nossa, na qual há uma circulação veloz de informação e de
conhecimento através das mídias (rádio, TV, Internet),
a escola vai perdendo seu poder de sedução, até mesmo para muitos professores
que a enxergam agora como uma mera obrigação.
Mas será mesmo que
a escola está em crise? Foucault diz que desde a inauguração da prisão, ela é contestada sobre sua
funcionalidade e eficácia. A instituição prisional é fundamentada no discurso segundo o qual promoverá à ressocialização e à
recuperação de presos, mas para o autor a função dela não é a que está expressa
em tal discurso - e é por isso apesar de ser “ineficiente” ela continua
funcionando. Entre outros, o papel da prisão não é para os que estão lá dentro. Mas para os que estão de fora. Para
impor medo aos cidadãos que lhe são exteriores. Neste sentido, será que, apesar
de todo o discurso
humanista, a função da escola não é também a de estabelecer
hierarquias e autoridades através da coerção e perpetuar o modelo social
excludente? Seria uma ingenuidade nossa não perceber esta intenção política? “Realmente, parecemos acreditar que a educação escolar resolveria
os problemas sociais, os problemas políticos, os problemas de cunho moral e
ético pelos quais passamos. Da mesma forma que receitamos o trabalho como um
poderoso antídoto contra, o que consideramos ser, os problemas de nossa
sociedade, sempre fazemos o mesmo com a educação. Embora saibamos que a escola
que temos não agrada a ninguém que está dentro dela, continuamos contraditoriamente
achando que ela é a solução para os problemas de quem dela está excluído”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 13).
Neste sentido, Albuquerque Júnior apresenta uma proposta radical aos professores. Estes devem questionar a
própria escola, o ensino escolar, a escolarização e a noção de formação escolar que é naturalizada. Esse seria o primeiro passo para que as práticas e as maneiras de ensinar sejam
transformadas. Aliás, a própria ideia de “formação” deve ser aí problematizada,
pois ela foi transportada da história
natural evolucionista para o campo humano. Segundo Albuquerque Júnior, deve
ser recusada “a idéia de que cabe ao processo educacional, que cabe à escola, e
nela ao professor, dar forma a esta matéria disforme, esta matéria plástica,
esta matéria infante, que é a criança. [Pois] A escola seria assim lugar de
modelagem de corpos e espíritos, de construção de perfis, de personalidades, de
caracteres, de almas e mentes” (p. 08). Este pressuposto informa sua concepção
conservadora que busca adequar os sujeitos a um processo já previamente estabelecido em que eles apenas ocupariam funções para fazer girar a máquina; posto que formar
nada mais é que colocar um corpo em uma forma pronta.
Por outro lado, “embora muitas pedagogias que se nomeiam críticas
tenham pensado a instituição escolar como um lugar onde se poderiam formar
agentes críticos da realidade social, sujeitos descomprometidos com a ordem
vigente, sujeitos capazes de transformar a realidade social, esbarram na
própria aporia de se pensar uma pedagogia crítica: uma pedagogia crítica é possível? Como uma maquinaria de práticas e
discursos que visam enformar ou formar alguém, como um conjunto de prescrições
pode levar alguém a ser crítico, se a
crítica nasce da possibilidade de ser deseducado, mal educado, da
capacidade de se deformar, de propor e adquirir novas formas de subjetividade
em descompasso com as modelizações subjetivas que a escola e os modelos
pedagógicos nos tentam ensinar?” (p. 09).

Por isso, em vez de um professor que forme, é preciso um que deforme, que instaure inclusive um
questionamento sobre os códigos sociais de sua própria formação,
problematizando-os, aferindo seus limites. Um ensino que deforme colocará em
xeque os valores preconizados no passado, desconstruirá verdades absolutas e
naturalizadas, promoverá dissensos e rebeldias, abrirá o “eu” para invenção e para o cuidado de si a partir de seus próprios
valores e escolhas livres, permitirá a coexistência e abertura ao diferente, ao
“outro”, desestabilizará hierarquias e continuidades, deslocará o professor do
centro do saber, colocando em seu lugar o aluno, estabelecendo assim uma
relação na qual um aprenderá com o outro.
Contudo, isso não acontecerá simplesmente com o aumento do salário dos professores, tampouco com a instrumentalização tecnológica e estruturação material do ambiente escolar, pois uma escola não é feita apenas de paredes, tetos, quadros, gizes e computadores. Pelo contrário, existe “uma cultura, um conjunto de concepções filosóficas, políticas, pedagógicas, éticas, econômicas, jurídicas que a instituem e constituem. A escola é uma rede de relações humanas com todas as dimensões que estas compreendem” (p. 12). E, portanto, uma simples reforma não seria suficiente para promover uma transformação completa. Enquanto instituição social, a escola deveria desaparecer. Refletir sobre esse fim é a condição de criar novas maneiras de promover o ensino.
Contudo, isso não acontecerá simplesmente com o aumento do salário dos professores, tampouco com a instrumentalização tecnológica e estruturação material do ambiente escolar, pois uma escola não é feita apenas de paredes, tetos, quadros, gizes e computadores. Pelo contrário, existe “uma cultura, um conjunto de concepções filosóficas, políticas, pedagógicas, éticas, econômicas, jurídicas que a instituem e constituem. A escola é uma rede de relações humanas com todas as dimensões que estas compreendem” (p. 12). E, portanto, uma simples reforma não seria suficiente para promover uma transformação completa. Enquanto instituição social, a escola deveria desaparecer. Refletir sobre esse fim é a condição de criar novas maneiras de promover o ensino.
Resenha de:
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz.
Por um ensino que deforme: o docente
na pós-modernidade. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/por_um_ensino_que_deforme.pdf Acesso em: 02 de fev. 2013.
[1] Os
projetos político-filosóficos que fundaram diversas instituições estão
diretamente relacionados a questão dos relatos de legitimidade tratados no post O (des)embaraço da ciência em Lyotard.
Fantástico esse texto! Vou buscar mais coisas sobre esse autor Durval M. Albuquerque Júnior.
ResponderExcluirBastante crítico o Durval, né Vivian?! Recomendo "História - arte de inventar o passado", há ensaios bem interessantes e prazerosos de se ler. Alguns estão já espalhados pela Google. Abraços!
ExcluirA bibliotecária da faculdade indicou o mesmo livro; vou pegá-lo na sexta-feira. Espero realmente fazer uma boa leitura pois já estou buscando autores bacanas para a minha monografia. Muito obrigada! Beijos!
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