As palavras e as coisas, escrito em 1966, é o principal livro da
carreira de Foucault e, sem dúvida, um dos mais importantes do século 20. Nele,
como diz o subtítulo, o filósofo faz uma “arqueologia das ciências humanas[1]”
através dos discursos, descrevendo como na modernidade (que ele situa no final
do século 18 e início do 19) houve uma mudança na maneira de pensar o mundo. Para mostrar a diferença, o autor
recorre a uma exposição dos discursos filosóficos e científicos do período em
que chama de Idade Clássica (século 17 e 18), constatando neles uma ausência
que marcará a mudança para a modernidade: o
homem. Isso mesmo! O homem é um problema recente para os saberes
filosóficos e científicos. O homem é uma invenção que data dos séculos 18 e 19.
Roberto Machado comenta que “não existe, rigorosamente falando, saberes do
homem na Grécia Antiga, na Idade Média, no Renascimento ou mesmo no
Classicismo” (2005, p. 85).
Machado aponta que Foucault seguiu
uma inspiração de Nietzsche. O filósofo alemão também situava o começo do
humanismo no mesmo período no qual surgiu o estabelecimento dos limites para o
conhecimento humano com a filosofia de Kant; a ciência positiva independente da
teologia; e a Revolução Francesa defendendo os ideais humanos de liberdade,
igualdade e fraternidade. Com isso a autoridade de Deus e da Igreja é
substituída pela do homem (enquanto consciência e sujeito) e os desejos de
eternidade e beatitude (celeste) dão lugar aos de projetos do futuro, de
progresso e de bem-estar terrestre. “Deus
está morto!” Quando Nietzsche disparou essa hipótese-constatação ele
simplesmente expunha o desaparecimento dos valores absolutos, das essências, do
fundamento divino e o aparecimento de valores demasiado humanos. Assim, o homem
destrona Deus para (tentar) sentar em seu lugar.
O surgimento do homem é
concomitante à morte de Deus. Geralmente, no nosso entendimento materialista
moderno isto parece sem sentido. Cremos que o homem existe há muito mais tempo
e que Deus nunca existiu, pois Ele é apenas uma ideia sem correspondência com a realidade material, porque não
podemos “comprová-la” através da experiência empírica científica. Mas o que
Foucault justamente quer destacar é que a maneira de pensar desta forma é
recente (me refiro ao pressuposto que coloca a experiência acima da imaginação
e do pensamento, como se a primeira fosse possível sem as últimas), esta
maneira de pensar possui uma história, um começo. Portanto, poderíamos pensar
de outro jeito já que a história não é inevitável. Tal maneira de pensar não é
natural nem mais verdadeira do que outras que já existiram. Para um homem de
Idade Média o que seria mais verdadeiro: Deus ou um telefone celular? Talvez
tal maneira de pensar seja mais adequada
ao nosso “tempo”, assim como Deus era mais adequado do que o celular no medievo
(ora, o que é o adequado senão um enquadrar-se a algo?). Podemos concluir assim
que o homem, como é hoje, pode ser ultrapassado, deixar de existir num futuro
próximo. [Esse parágrafo é só uma tentativa de desembaraçar algumas leituras
apressadas ou ingênuas sobre a constatação de Foucault de que o homem é uma invenção recente. Creio
ser, de antemão, uma tentativa já frustrada devido à densidade da obra As palavras e as coisas. Mas, voltemos
ao assunto das ciências humanas, tratando de como eram os saberes antes delas
surgirem].
As bases para o conhecimento (ou
a episteme) na Idade Clássica eram
constituídas por uma representação não necessariamente empírica. As coisas eram
descritas em suas superfícies e em aparências visíveis através de uma ordenação
de signos que funcionavam como substitutos na composição de um quadro, de uma
imagem geral, de uma “prosa do mundo”.
Os saberes operavam mediados por essa descrição geral e as coisas
aproximavam-se ou afastavam-se em relação às suas semelhanças, vizinhanças, simpatias,
etc. A “descoberta” do novo era somente adicionada e não destruía ou modificava
a ordenação das coisas e dos seres já enumerados. Todos os saberes eram
analíticos, ordenação de ideias, de pensamentos, de representação. Os saberes
não possuíam níveis, apenas se aplicavam a territórios distintos, eram
particulares, enquanto a filosofia se detinha sobre a representação geral.
Conforme explica Foucault, na
Idade Clássica “as palavras receberam a tarefa e o poder de ‘representar o
pensamento’. Mas representar não quer dizer aqui traduzir, dar uma versão
visível, fabricar um duplo material que possa, na vertente externa do corpo,
reproduzir o pensamento em sua exatidão. Representar deve-se entender no
sentido estrito: a linguagem representa o pensamento como o pensamento se
representa a si mesmo. Não há, para constituir a linguagem ou para animá-la por dentro, um ato essencial e
primitivo de significação, mas tão-somente, no coração da representação, este
poder que ela detém de se representar a si mesma [...]”. Sendo assim “nenhuma
fala se enuncia, nenhuma palavra ou nenhuma proposição jamais visa a algum
conteúdo senão pelo jogo de um representação que se põe à distância de si, se
desdobra e se reflete numa outra representação que lhe é equivalente” (1999, p.
107-108).
Assim como a história natural era
uma taxonomia dos seres, a análise das riquezas e a análise dos discursos na
época clássica funcionavam sob a lógica da representação. “A análise das
riquezas, em vez do trabalho e da produção, tem como fundamento o comércio e a
troca. O valor, assim, depende das equivalências e da capacidade que têm as
mercadorias de se representarem umas às outras”. Da mesma maneira, a análise
clássica do discurso “considera a linguagem como sendo o próprio pensamento,
como sendo apenas o que ela diz, em seu funcionamento representativo,
explicando a ligação de um signo ao que ele
significa não pelas próprias coisas, ou por um mundo, de onde extrairia seu
sentido, e sim pela representação” (MACHADO, 2005, p. 87). Ou seja, não há o
que pesquisar por trás do discurso, da intencionalidade, do ocultamento, do
não-dito, tampouco o lugar social dos “sujeitos” que os expressam, mas somente
o que o discurso expressa em si mesmo, o que ele quer dizer dentro daquele
quadro geral que é a prosa do mundo.
Como já foi dito, no final do
século 18 essa maneira de pensar começa a mudar. É um acontecimento do pensamento! A representação é substituída
pelo objeto em-si. Se antes o conhecimento verdadeiro do objeto era impossível,
só restando o conhecimento da representação deste, agora “representação” ou,
melhor, expressão e objeto são uma coisa só. O conhecimento que era analítico
se torna “empírico, sintético; seu objeto é uma coisa concreta, não mais ideal,
mas real, uma empiricidade, que tem uma existência independente do próprio
conhecimento” (2005, p. 88).
No âmbito dos saberes filosóficos
da modernidade, essa virada começa com Kant quando ele sintetiza sujeito
transcendental e objeto do conhecimento permeado pelas condições de
possibilidade do saber humano no tempo e
no espaço. Ou seja, o conhecimento se dá a partir de uma condição temporal
e espacial na qual o sujeito conhecedor se “funde” com o objeto conhecível, numa
síntese entre uma representação intelectual e uma apresentação sensível. Neste
sentido, se separa os níveis dos saberes, de um lado a ciência ligada à
empiria, à experiência e à comprovação sensível e de outro a filosofia do
sujeito como possibilidade para o conhecimento.
Embora para Kant o sujeito não
seja empírico – pois jamais poder ser dado à experiência, justamente por ser ele
a condição de possibilidade da experiência, logo transcendental –, as ciências
empíricas surgem para entender o que cerca o sujeito, procurando responder o
que é a vida (biologia), o trabalho (economia) e a linguagem (filologia). Integrando
as três empirias, uma pergunta “antropológica” fica no ar: o que é o homem? Para Foucault, essa pergunta é o maior embaraço da
modernidade que ao mesmo tempo abriu precedente para o surgimento das ciências humanas.[2]
Na modernidade, o homem aparece
pela primeira vez nos saberes como sujeito e, ao mesmo tempo, objeto do
conhecimento; quer dizer, como duplo, o paradoxo do sujeito
transcendental-empírico. Nas ciências humanas há uma reduplicação, já que o ser
transcendental-empírico quer conhecer o outro ser transcendental-empírico. Acontece que somente é possível responder a
pergunta sobre o que é o homem a partir do fundamento dos três saberes
empíricos: o homem é pensado como o ser que vive, produz e fala; apreendido
como ser finito. Isto é uma novidade em relação à Idade Clássica. A noção de
historicidade é introduzida pela primeira vez. À submissão ao tempo histórico
se tornou uma das bases do conhecimento empírico. Impondo suas leis ao conhecimento
da produção, dos seres orgânicos e dos grupos linguísticos.
Entretanto, a episteme moderna com a “necessidade de
interrogar o ser do homem como fundamento de todas as positividades
[científicas], não podia deixar de produzir-se um desequilíbrio: o homem tornava-se aquilo a partir do qual todo o
conhecimento podia ser constituído em sua evidência imediata e
não-problematizada; tornava-se, aquilo que autoriza o questionamento de todo o
conhecimento do homem. Daí esta dupla e inevitável contestação: a que institui
o perpétuo debate entre as ciências do homem e as ciências propriamente ditas,
tendo as primeiras a pretensão invencível de fundar as segundas, que, sem
cessar são obrigadas a buscar seu próprio fundamento, a justificação de seu
método e a purificação de sua história, contra o ‘psicologismo’, contra o ‘sociologismo’,
contra o ‘historicismo’; e a que institui o perpétuo debate entre filosofia,
que objeta às ciências humanas a ingenuidade com a qual tentam fundar-se a si
mesmas, e essas ciências humanas, que reivindicam como seu objeto próprio o que
teria constituído outrora o domínio da filosofia” (FOUCAULT, 1999, p. 447-448).
Foucault aponta que as ciências
humanas correm perigo e são perigosas. Por seu caráter de instabilidade e de
nebulosidade em definição, elas não participam da tríade dos saberes: ciências
matemáticas e físicas, ciências positivas da vida, do trabalho e da linguagem e
a reflexão filosófica. Por outro lado, elas se colocam nos interstícios, nas
fronteiras entre as ciências exatas, empíricas e a filosofia. É nisto que
representam perigo às outras ciências, segundo Foucault, porque qualquer
deslize das ciências empíricas (da vida, da linguagem e do trabalho) na
delimitação do objeto estudado elas podem escorregar para um antropologismo comum às ciências
humanas que coloca o homem como centro absoluto (sem sua definição possuir uma “unidade”
já que ele é empírico e transcendental). Mas o apoio em outros domínios do
saber, a precariedade e a dificuldades das ciências humanas não é devido à extrema
densidade de seu objeto (o homem), nem ao estatuto metafísico ou à transcendência
desse homem de que elas falam, porém à complexidade da configuração
epistemológica em que estão colocadas, sua relação constante com as três
dimensões (exata, empírica e filosófica) que lhes confere seu espaço (1999, p.
491).
Por outro lado, podemos objetar ou complementar a Foucault, as ciências
humanas são perigosas, pois permitem desconstruir o caráter naturalizador e
supressor dos outros saberes, questionando ao mesmo tempo suas positividades,
no caso das ciências duras, e suas metafísicas e transcendências, no caso da
filosofia. Obviamente, é um paradoxo. Já que se apontarem para si mesmas – como
objetos –, as ciências humanas podem se autodesconstruir. É sabido que tanto Nietzsche e
Foucault ao darem nota sobre a invenção recente do homem disseram que ele
estava em vias de se desfazer como um rosto de areia na orla da praia para dar
lugar ao ser além-homem. A partir do
exposto, a inquietação que surge é a seguinte: caso a profecia nietzschiana se
cumpra, no que se transformarão as ciências humanas? O além-homem precisará de
uma ciência para dizer o que ele é?
Referências:
CANDIOTTO, Cesar. Notas sobre a
arqueologia de Foucault em As palavras e as coisas. Rev. Filos. Aurora, Curitiba, v. 21, n. 28, p. 13-28,
jan./jun., 2009.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma
arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. Diálogo sobre o
poder. In:______. Estratégia,
poder-saber: ditos e escritos vol. 4. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006.
MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
[1] É
preciso deixar claro que em Foucault arqueologia não tem relação direta com a arqueologia
tradicional que estuda em geral vestígios pré-históricos. Sobre isso o autor
diz o seguinte: “Utilizo arqueologia
por duas ou três razões principais. A primeira é que é uma palavra com a qual
se pode jogar. ARCHE, em grego, significa ‘começo’. Em francês, temos também a
palavra ‘arquivo’, que designa a maneira como os elementos discursivos foram
registrados e podem ser extraídos. O termo ‘arqueologia’ remete, então, ao tipo
de pesquisa que se dedica a extrair os acontecimentos discursivos como se eles
estivessem registrados em um arquivo. [Com isso], procuro reconstituir um campo
histórico em sua totalidade, em todas as suas dimensões políticas, econômicas,
sexuais” (2006, p. 259). Tal investigação das maneiras de pensar só é possível
a partir de uma condição histórica que liga a linguagem escrita ao pensamento.
[2] Embora Foucault não estivesse preocupado em sua pesquisa arqueológica em desvendar as causas, ele deixa algumas hipóteses sobre o porquê do surgimento das ciências humanas: “Certamente, não resta dúvida de que a emergência histórica de cada uma das ciências humanas tenha ocorrido por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica ou prática; por certo foram necessárias novas normas impostas pela sociedade industrial aos indivíduos para que, lentamente, no decurso do século XIX, a psicologia se constituísse como ciência; também foram necessárias, sem dúvida, as ameaças que, desde a Revolução, pesaram sobre os equilíbrios sociais e sobre aquele mesmo que instaurara a burguesia, para que aparecesse uma reflexão de tipo sociológico” (1999, p. 476).
[2] Embora Foucault não estivesse preocupado em sua pesquisa arqueológica em desvendar as causas, ele deixa algumas hipóteses sobre o porquê do surgimento das ciências humanas: “Certamente, não resta dúvida de que a emergência histórica de cada uma das ciências humanas tenha ocorrido por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica ou prática; por certo foram necessárias novas normas impostas pela sociedade industrial aos indivíduos para que, lentamente, no decurso do século XIX, a psicologia se constituísse como ciência; também foram necessárias, sem dúvida, as ameaças que, desde a Revolução, pesaram sobre os equilíbrios sociais e sobre aquele mesmo que instaurara a burguesia, para que aparecesse uma reflexão de tipo sociológico” (1999, p. 476).
inquietante esse post.
ResponderExcluirQue bom, Maurício! Sinal de que o intuito foi cumprido. Valeu pelo comentário!
ExcluirMuito bom texto, parabéns. Uma pergunta, não consigo me lembrar, qual nome do livro q Foucault fala sobre a parrhesia cínica?
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, Raul. Creio que o primeiro livro em que Foucault trata do conceito de parrêsia é o "Hermeneutica do Sujeito" (1984, salvo engano). A obra se trata de uma espécie de transcrição do curso que o filósofo deu no Collège de France em 1982. Confesso que conheço mais a fase arqueológica e menos a do chamado "último Foucault", expressão que os comentadores usam para situar didaticamente a produção do filósofo na última fase da vida, mas considero interessantíssima a série de textos que tratam da subjetividade, da (est)ética, do governo de si e cuidado de si. Abraços!
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