No
texto, de 1966, A Escola conservadora: as
desigualdades frente à escola e à cultura, o sociólogo francês Pierre Bourdieu
desenvolve um de seus principais conceitos teóricos, o capital cultural"; através do qual explica o atraso “educacional”
das classes populares. Fundamentado em dados empíricos, o autor faz uma crítica
vigorosa à função desempenhada pelas
instituições escolares francesas. Salvo às especificidades da realidade escolar da França, da pesquisa sociológica científica e da época em que Bourdieu
escreve, acredito que, a partir de seu texto, podemos ainda pensar algumas questões à política e à
educação contemporânea no Brasil.
O
sociólogo abre o texto com a seguinte paulada: “É provavelmente por um efeito
de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia
da ‘escola libertadora’, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é
um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade as desigualdades
sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom
natural” (BOURDIEU, 2007, p. 41).
Por
que a escola não é um fator de mobilidade social? Bom, para o autor, existe uma
série de aspectos culturais que precisam ser levados em conta para explicar a
mobilidade social (aquilo que pode fazer com que uma pessoa saia de uma classe
social inferior para uma superior). Dentre os aspectos das relações
sociais que levam ao êxito escolar e à ascensão social, são perceptíveis algumas
formas grosseiras: (a) Recomendações,
quer dizer, o famoso “Quem Indica”. (b)
Ajuda no trabalho escolar ou ensino suplementar. Pais, familiares e outros que auxiliam os alunos nas tarefas escolares; e as atividades fora do âmbito da
escola, como cursos de idiomas ou de disciplinas específicas como português e
matemática (famoso Kumon) e de pré-vestibulares, no atual caso brasileiro. (c) Informação sobre o sistema de ensino
e perspectivas profissionais. Este ponto se refere ao conhecimento detalhado de profissões e de particularidades de estudos conforme as exigências de uma prova classificatória, como no
vestibular ou ENEM. Porém, nenhuma dessas três formas consegue dar conta da
sofisticação cultural relacionada à classe social do aluno, que podemos
enumerar em dois tipos: (1) Transmissão do
capital cultural da família e (2) do Ethos (como proceder) no agir ao
capital cultural e à instituição social. Essas duas heranças culturais que
diferem entre as classes sociais são responsáveis pela diferença inicial das
crianças diante da experiência escolar e pelas suas taxas de êxito. Tento
explicar minimamente a seguir os valores culturais sofisticados captados por
Bourdieu, que estão implícitos na relação familiar – os modos de aprender e de
agir, e as expectativas de futuro.
A transmissão do
capital cultural
As
pesquisas do sociólogo Paul Clere mostram que a parcela de bons alunos em uma amostra de 5ª série cresce em função da renda de
suas famílias. Entretanto percebe-se que aqueles alunos cujos pais possuem
formação superior têm maior sucesso escolar. Ainda assim os alunos de famílias
que possuem diplomas iguais, muito pouco diferem entre si, mesmo que a renda de
uma ou de outra família seja superior. Isto demonstra que dentro das heranças dois
fatores são determinantes para o êxito escolar: a renda e o “conhecimento” dos
familiares. Mas, acima de tudo, o conhecimento dos membros da família. Este está à
frente da renda. O que significa que o sucesso da criança na
escola está diretamente ligado à cultura. Esta tem um valor maior do que o financeiro, embora geralmente os
dois apareçam atrelados.
Podemos
dizer então que o capital cultural
possui uma relação direta com os atributos familiares (cultura e renda),
logo, com a rede sociocultural da qual a criança participa. A herança cultural
deve levar em conta não somente o nível cultural do pai ou da mãe, mas também o
dos demais componentes da família, especialmente, o dos avós. As localidades
regionais onde se residiu para os estudos na adolescência e na juventude também
precisam ser colocadas nesse cálculo. Pois em determinados lugares existe uma
maior disponibilidade de bens simbólicos, como museus, teatros, parques culturais,
cinemas, instituições escolares de melhor qualidade, centros de cultura e etc. Soma-se a estes dois aspectos o conjunto das características do passado escolar, como o tipo
de curso secundário e o tipo de estabelecimento – se municipal, estadual, federal ou
privado. Para a pesquisa sociológica sobre as causas do
êxito escolar, é necessário “consequentemente, um modelo que leve em conta essas
diferentes variáveis – e também as características demográficas do grupo
familiar, como o tamanho da família – que permita fazer um cálculo muito
preciso das esperanças de vida escolar” (p. 43). É perceptível que Bourdieu
atribui um valor muito maior a família do que a escola. Ele conta que os
filhos das classes populares com maior propensão a ingressar na faculdade têm
famílias diferentes da média de sua categoria, seja por seu nível cultural
global ou por seu tamanho.
Contudo
os níveis de instrução da família são apenas indicadores e não mostram quais
conteúdos são transmitidos às crianças. Nisso as pesquisas demonstram que o
capital cultural mais rentável para o sucesso escolar é constituído pelas
informações e conhecimentos relacionados ao mundo universitário, à facilidade
verbal e à cultura livre adquirida nas experiências extra-escolares. Quer dizer
que a transmissão cultural eficaz é a
que não está separada da vida comum do aluno e que não se trata de uma
tarefa específica que ele fará metodicamente, mas um eixo de relações culturais
que participa de sua vida de maneira integral sem parecer forçosa. Neste sentido,
os alunos de família rica e culta interagem numa cultura de gostos, de
linguagens e de fazeres propícios ao que é cobrado nas instituições formais.
Por conta de haver essas relações desde “berço” acredita-se, enganosamente, que as qualidades
destas crianças, transmitidas quase por osmose, são dons naturais. Ao contrário desta crença, Bourdieu (p. 46) escreve que: “o êxito com os estudos literários está
estreitamente ligado à aptidão para o manejo da língua escolar, que só é uma
língua materna para as crianças oriundas das classes cultas”, enquanto as
crianças das classes populares precisam se desdobrar para fugir do linguajar
próprio ao seu cotidiano.
A escolha do destino
e a questão do ethos familiar
Geralmente
a atitude de pais e de crianças em relação à escola está relacionada às suas
posições sociais. Esse caso é particularmente importante no âmbito do ensino francês
deste período. Pois os alunos após terminarem o nível básico precisavam mudar para
outra escola. Entre as opções, as melhores “públicas” eram concorridas através de
exames, de indicações e de regularidades de notas boas no ensino básico. O pai
do aluno esperava que ele atingisse um bom desempenho nas séries iniciais, sobretudo,
baseado num certo índice medido conforme os incentivos dos professores, para que
ele continuasse os estudos e/ou concorresse a uma vaga nas melhores escolas. As
pesquisas de Bourdieu mostram que “a escolha da escola e das maneiras do ensino
(técnico ou teórico) tem a ver com as lembranças das experiências direta e
imediata pela estatística intuitiva das derrotas ou dos êxitos parciais das crianças
de seu meio”. A desesperança, não raras vezes, tomam as classes populares e então
dizem: “Isso não é para nós”. O que
significa: “Não temos meios para isso”.
As
condições econômicas e culturais das classes médias também são diferentes das
classes superiores, haja vista que a cada dois alunos das classes superiores
que acessam a faculdade, somente um aluno das classes médias consegue. Mas “diferentemente
das crianças das classes populares, que são duplamente prejudicadas no que
respeita à faculdade de assimilar cultura e a propensão para adquiri-la, as
crianças das classes médias devem à sua família não só os encorajamentos ao
esforço escolar, mas também um ethos
de ascensão social e de aspiração ao êxito na escola e pela escola, que lhe
permite compensar a privação cultural com a aspiração fervorosa à aquisição de
cultura” (BOURDIEU, 2007, p. 48).
O
capital cultural e o ethos combinam-se na concorrência para
definir as condutas escolares que excluirão os alunos das classes populares. A
questão da desesperança e do ethos
aparece de modo paradoxal para as crianças pobres, pois se espera que compensem
suas carências de capital cultural através de um desempenho melhor que aqueles
que possuem melhores condições econômicas e culturais. Desta maneira, aponta Bourdieu (p. 50): “o princípio geral que conduz à superseleção das
crianças das classes populares e médias estabelece-se assim: as crianças dessas
classes sócias que, por falta de capital cultural, têm menos oportunidades que
outras de demonstrar um êxito excepcional, devem, contudo, demonstrar um êxito
excepcional para chegar ao ensino secundário”.
Como a escola
cumpre a função de conservar as desigualdades sociais?
As
práticas e os métodos de ensino na escola são homogêneos, não atentam para as
especificidades como as carências de cada pessoa associada a uma dada classe
social. A escola trata todos “os educandos, por mais desiguais que sejam eles
de fato, como iguais em direitos e deveres, assim, o sistema escolar é levado a
dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura”. Pode-se afirmar
que a escola nega o princípio de isonomia
da justiça liberal (inclusive), pois não trata particularmente cada um da
maneira adequada à suas necessidades. Ou seja, há um tratamento igual (baseado no modelo da cultura formal das classes superiores) que reproduz as
desigualdades já existentes tanto nas condições simbólicas (como a linguagem)
quanto nas condições materiais (econômicas).
Segue
uma longa citação que acho interessante fazê-la para finalizar a resenha: “Ao atribuir
aos indivíduos esperanças de vida escolar estritamente dimensionadas pela sua
posição na hierarquia social, e operando uma seleção que – sob as aparências da
equidade formal – sanciona e consagra as desigualdades reais, a escola
contribui para perpetuar uma sanção que se pretende neutra, e que é altamente
reconhecida como tal, nas aptidões socialmente condicionadas que trata como
desigualdades de ‘dons’ ou de mérito, ela transforma as desigualdades de fato
em desigualdades de direito, as diferenças econômicas e sociais em ‘distinção
de qualidade’, e legitima a transmissão da herança cultural. [...] Além de
permitir a elite se justificar de ser o que é, a ‘ideologia do dom’, chave do sistema escolar e do sistema social,
contribui para encerrar os membros das classes desfavorecidas no destino que a
sociedade lhes assinala, levando-os a perceber como inaptidões naturais o que
não é senão efeito de uma condição inferior, e persuadindo-os de que eles devem
o seu destino social à sua natureza individual e à sua falta de dons. O sucesso
excepcional de alguns indivíduos que escapam ao destino coletivo dá uma aparência de legitimidade à seleção
escolar, e dá crédito ao mito da escola libertadora junto àqueles próprios
indivíduos que ela eliminou, fazendo crer que o sucesso é uma simples questão
de trabalho e de dons” (BOURDIEU, 2007, p. 58-59)
Nossas
considerações
Bourdieu, quando defende a
historicidade dos bens culturais,
dá aula de história para os políticos contemporâneos e para os defensores da
"igualdade de oportunidades" do atual modelo liberal. Mostrando a quem quiser ver que não vivemos
no estado de natureza, mas que existe "positividade" (no sentido de relevos
criados pelos homens) nas relações sócio-culturais que permeiam as ascensões sociais e
os êxitos escolares. Este modelo de sociedade e de instituições sociais
desta época não são naturais. Esse jogo é inventado, arbitrado e mapeado, embora se
acredite que sempre foi assim e assim deverá continuar. Lendo Bourdieu, lembrei-me de um
trecho de E. P. Thompson (1987) em que o historiador descreve o quanto os lavradores, que
trabalhavam no campesinato sofreram com o cercamento
das terras produtivas (e expulsões), concomitante ao processo de urbanização. Tiveram que ralar sol a
sol nas fábricas; viver a novidade do tempo programático do relógio; e conviver com as constantes
epidemias na Europa. Muitos resistiram, muitos morreram. Mas as gerações
futuras, filhos desses homens retirados do campo, não sabiam mais como era
antes, então, aceitavam as condições como naturais, por mais gritantes que elas
fossem. Essa resiliência foi essencial
para o desenvolvimento do capitalismo, mas é importante não aceitá-la como
condição última para nossa existência. Neste sentido apesar de não concordar
com alguns pontos das lutas de movimentos sociais e raciais, acho importante
buscar juridicamente o que vem sendo lhes negado social e culturalmente. Isto é, aquilo que através das
experiências práticas não vem sendo concretizado; seus acessos ao consumo,
a liberdade de expressão e ao respeito pela personalidade dentro do próprio
capitalismo. Estas lutas, jurídicas ou não, são criações de novas positividades, de novas realidades. Talvez daqui a alguns anos
ninguém mais levante questionamento sobre essas "mudanças", assim como não se questiona mais
sobre a propriedade privada e o aprisionamento de pessoas (o que é sempre lamentável).
Segundo a lição de Bourdieu, não é possível haver igualdade diante das desigualdades pré-existentes. Como cobrar
as mesmas coisas para pessoas com condições materiais e simbólicas totalmente
diferentes? As estatísticas dos vestibulares da UFU mostram que em dez anos
nenhum aluno da rede pública conseguiu ingressar no curso de medicina (o mais
concorrido desta instituição). Seria porque nasceram burros? Porque estudaram
pouco? Ou porque não estudaram nas mesmas instituições e cursinhos que os
alunos aprovados? Ou porque não tiveram tempo ($) suficiente para aprenderem
inglês no CCA e matemática no Kumon? Talvez seja porque seus professores da rede
pública precisaram pegar 32 aulas por semana em 18 salas diferentes, com cerca de 40 alunos em cada (360
alunos ao todo), fazendo com que seu tempo fosse bastante pequeno para que pudessem
preparar melhor as aulas. Aulas as quais a direção da escola e o governo não deram
apoio nenhum além do livro didático de História escrito por um bacharel em
Direito. Ou então talvez porque os alunos tiveram que trabalhar de atendente de telemarketing para
ajudar nas despesas de casa. Vai saber! Talvez sejam mesmo preguiçosos, sem méritos e
burros inatos. Por isso seus lugares atualmente estão reservados nas faculdades
particulares, enchendo os bolsos dos donos, não só com o dinheiro suado de
mão-de-obra semi-escrava, mas também com a grana de programas paliativos e de financiamentos
custeados pelo dinheiro público, estratégia esta que acaba desviando o foco principal dos problemas educacionais do país.
Referências:
BOURDIEU,
P. A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura.
In:______. Escritos de educação. Organizadores
Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 41-64.
THOMPSON,
E. P. A formação da classe operária inglesa, vol. II: a maldição de Adão
trad. Renato Busatto Neto, Cláudia Rocha de Almeida. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
Texto realmente muito bom, e achei interessante, mais ainda por se tratar de uma analise eu diria da obra de Pierre Bourdieu, já estudei um pouco sobre ele e creio que com o passar do tempo, ele vai surgi no meu curso universitário ^^ bjão munhoz sempre que der estarei por aqui, até indiquei saeu blog aos meus amigos de curso de filosofia, e agradeço seu comentário lá no Anarco ^^
ResponderExcluirQuem escreveu? preciso citar.
ResponderExcluirPara citar este post do blog é assim: ALVES, M. P. Bourdieu pensando o sistema de ensino e a naturalização das desigualdades sociais. Publicado 12 de maio 2012. In: Tempos Safados: contemporaneidades e humanas em geral. Disponível em: http://tempossafados.blogspot.com.br/2012/05/bourdieu-pensando-o-sistema-de-ensino-e.html Acesso em: 30 set. 2016.
ExcluirEspero ter ajudado.