Os
escritos nietzschianos disparam críticas para todo o lado como uma metralhadora
giratória na mão de um soldado enlouquecido dos filmes de Kubrick. Não é à toa
que o filósofo alemão gostava da ideia de guerra, mas essa não parecia estar
restrita a um campo de batalha determinado entre nações. Acontecia a todo tempo
e em todo lugar! Embora Nietzsche não tenha poupado nenhuma teoria ou movimento
político (como o liberalismo e o socialismo), suas críticas políticas mais
violentas foram disparadas ao anarquismo.
Contudo,
é preciso considerar que algumas impressões de Nietzsche sobre o anarquismo
demonstram preconceitos e desconhecimento. Atualmente, leituras contemporâneas
enxergam – inclusive – pontos de encontro entre a filosofia do bigodudo e dos
anarcos. Os historiadores do anarquismo gostam de enfatizar que Nietzsche
educou os estômagos dos futuros leitores de Max Stirner, que após a morte e o
ostracismo, teve sua obra reconhecida como ícone do anarquismo individualista. No
entanto, grandes anarquistas como Kropotkin e Malatesta fizeram duras críticas
a filosofia de Nietzsche. Já Emma Goldman, de modo surpreendente disse: “Nietzsche
não era um teórico social, mas um poeta e um inovador. A sua aristocracia nem
era de berço nem de bolsa; era de espírito. A este respeito era um anarquista,
e todos os verdadeiros anarquistas foram aristocratas” (apud. JOLL, 1964, p.
199).
Na
contemporaneidade, após uma atualização de Nietzsche, via Foucault-Deleuze,
alguns pensadores autointitulados pós-anarquistas, estabelecem abordagens
interessantes na tentativa de renovação da teoria política anarquista através
dos escritos dos autores clássicos do anarquismo, de Nietzsche e dos “nietzschianos”.
Porém, deixaremos para abordar estas questões “porosas” em outro post. Neste,
vamos nos deter na principal crítica de Nietzsche aos anarquistas, que de certa
maneira, será abordada pelos teóricos do pós-anarquismo.
Creio
que a crítica de Nietzsche não se refere especificamente a um aspecto político
(de ação ou estratégia), mas sim cultural e moral. Neste sentido, não tem nada
de inovador em relação ao que o bigode já havia postulado sobre os cristãos. Em
O crepúsculo dos ídolos (obra de 1888),
o alemão compara o cristão e o anarquista, dizendo que ambos são ressentidos
que postergam seu momento de gozo para um futuro. O cristão espera o Juízo
Final e o anarquista, a Revolução. Os dois colocam a culpa de seu mal-estar nos
outros, sendo que essa atitude de indignação e de impotência já é para tais um
prazer (2001, p.75). Aparentemente, isso nem poderia ser um problema, mas os
conhecedores da filosofia nietzschiana sabem que essa crítica se assenta sobre
uma base ferrenha de verdadeira guerra contra a moral. Como dizia o filósofo,
contra a moral dos escravos ressentidos.
O
trecho citado de Emma Goldman sobre Nietzsche, no início do século 20, é algo
bastante polêmico, se pensarmos que o alemão historicizou a geração de duas
morais: a dos escravos e a dos senhores; uma da aristocracia, outra do rebanho.
Para Nietzsche, o modo como interpretamos e impomos valores ao mundo tem uma
história. “O valor de ‘bom’, por exemplo, foi inventado pelos nobres e
superiores para ser aplicado a eles mesmos, em contraste com a plebe, os comuns
e inferiores. Era o valor do senhor – o ‘bom’ – enquanto oposto ao do escravo –
o ‘mau’” (NEWMAN, 2008, p. 146). Entretanto, a superioridade da aristocracia começou
a ser rompida por uma revolta de escravos contra os valores morais existentes.
Essa revolta começa com os judeus, que a partir de certo momento, vão dizer que
somente os miseráveis são os bons; os sofredores, os necessitados, os feios, os
fracos e os doentes serão os únicos abençoados – os nobres e poderosos são os
maus, os lascivos e os malditos (NIETZSCHE, 1998, p. 62).
Neste
sentido, Nietzsche contrapõe duas morais. A da aristocracia é a exaltação da
vida enquanto potência criativa a partir de si mesma. A dos escravos, judeus e
cristãos, é uma negação da vida, não é ação, mas reação, pois sua qualidade
está baseada num fator externo, num inimigo do qual se atribui a causa do dano
e da ofensa a sua classe. Portanto, esta moral do ressentimento não pode
existir em si mesma, viver para si e a partir de si. Ela precisa estar sempre
em contraposição, sempre negando a existência do outro, concomitantemente,
também a sua. Tal moral desloca o sentido de viver para “um outro” que não é o
ser que vive. Os valores morais considerados bons passam a se relacionarem à
piedade, ao altruísmo, à docilidade. “Para Nietzsche, os valores de igualdade e
democracia, que formam a pedra fundamental da teoria política radical, emergiram
da revolta do escravo na moralidade. [...] Ele vê o movimento democrático como
uma expressão da moral do rebanho derivada da reavaliação judaico-cristã dos
valores. O anarquismo é para Nietzsche o mais extremado herdeiro dos valores
democráticos – a expressão mais violenta do respectivo instinto de manada. Busca
equalizar as diferenças entre indivíduos, abolir as distinções de classe,
nivelar completamente as hierarquias pela altura do chão e igualar o potente
com o impotente, o rico com o pobre, o senhor com o escravo. [...] Nietzsche
considera isso como o pior excesso de niilismo europeu – a morte dos valores e
da criatividade” (NEWMAN, 2008, p. 148).
Bom,
mesmo que essa crítica tenha resquícios de verdade, ela mostra o quão Nietzsche
leu mal os anarquistas (se é que leu). O que boa parte dos pensadores propõe é
justamente uma quebra da homogeneidade e da padronização da sociedade. Uma
libertação do Estado para que cada um possa desenvolver ao máximo suas
potencialidades e capacidades criativas. Aliás, a crítica severa de Proudhon (foto ao lado com suas filhas) em
O que é a propriedade? em direção aos
comunistas é justamente neste sentido, ou seja, advém do medo de que o filósofo
francês tinha de um regime que apagasse as individualidades e as diferenças. Por
outro lado, a educação integral e a defesa da sociabilidade feita por Bakunin,
responde de maneira certeira que a pretensão dos anarquistas era fundar uma
sociedade autogovernada que proporcionasse as possibilidades infinitas de
criações plurais de existência.
A
crítica de Nietzsche aos anarquistas talvez encontre melhor fundamentação
quando se volta para a questão do maniqueísmo criador de um inimigo. Enquanto o
escravo atribui sua desgraça ao senhor, os marxistas ao Capital, os anarquistas
atribuem ao Estado. Acho que a crítica dos anarquistas a opressão está bem à
frente dos marxistas, inclusive, por enxergarem que as questões políticas
sobrepõem-se às econômicas. Mas ao acreditar numa ordem natural do mundo, os
anarquistas caem novamente no maniqueísmo de entender que existe algum poder
neutro que harmonizaria os homens. Pois, como expõe Newman (2008, p. 154): “O
anarquismo pode ser entendido como uma luta entre autoridade natural e
autoridade artificial – os anarquistas não rejeitam todas as formas de
autoridade como o velho cliché costuma dizer. Ao contrário, declaram sua
absoluta obediência à autoridade materializada pelo que Bakunin denomina de
leis naturais”. Ao fazer isso, o anarquismo engendra uma lógica binária de bom
e mau, de sociedade e Estado, que acaba essencializando o próprio poder que opõe.
Assim,
segundo Newman, não importa o inimigo; mas que ele exista e tenha que ser
destruído, numa promessa de batalha final e de vitória final. Essa é a
característica do ressentimento no anarquismo. A proposta de Nietzsche, para
sair deste engodo, é que o ser não negue o poder, pois a vontade de poder é
algo intrínseco aos instintos e a supressão desse desejo debilita o homem,
fazendo-o voltar contra si mesmo. Neste caso, é melhor o anarquista agir do que
reagir. Os princípios da ética do cuidado, da cooperação e ajuda mútua podem
ser eixos interessantes já dentro do anarquismo clássico que permitam sobrepujar
o ressentimento como estratégia de construção política. Além disso, é preciso negar
a luta que se embasa simplesmente na oposição aos valores que estão em voga e
também recusar a proposta de escolha do “menos ruim” ou daquilo que vai atacar
seu suposto adversário. Em vez disso, criar novos valores, afirmar os que
consideramos bons e melhores, até com certo ar de indiferença aos demais
valores. Tem que fazer valer!
Referências:
JOLL,
James. Anarquistas e anarquismo. Lisboa:
Dom Quixote, 1964.
NEWMAN,
Saul. O anarquismo e a política do ressentimento. Revista Verve. São Paulo: PUC-SP, n° 14, p. 145-178, outubro, 2008.
NIETZSCHE,
Friedrich. A genealogia da moral.
São Paulo: Cia das Letras, 1998.
NIETZSCHE,
Friedrich. O crepúsculo dos ídolos.
Curitiba: Hemus, 2001.
PROUDHON,
Pierre-Joseph. O que é a propriedade?
Lisboa: Estampa, 1975.
Oi Munhoz!
ResponderExcluirparabens poe mais uma postagem enriquecedora, da ate vontade de faazer filosofia.
Um abraco
Postagem excelente!!!! Me ajudou bastante!
ResponderExcluirÉ preciso tomar cuidados críticos em relação a Nietzsche. Não se deve seguir rapidamente o que dizem os textos dele.
ResponderExcluirTexto muito bem escrito, parabéns.
ResponderExcluirO blogueiro interpreta Nietzsche como um médico que faz uma anaminesia em um possível doente.
ResponderExcluirUm antinitszcheano (representado por um filósofo[!]) não deve se deixar levar por "intuições" pessoais "...(se é que leu)...), nem incluir em sua dissertações as hominem's que diminuem e evidenciam sua tomada de partido.
Talvez uma leitura maiscatenta à "Vontade de Potência" e a obra de Bakunin, clareem as idéias pré formadas do blogueiro e o aproximem, um pouco, do pensamento, sempre inconclusivo, do grande pensador.
O blogueiro interpreta Nietzsche como um médico que faz uma anaminesia em um possível doente.
ResponderExcluirUm antinitszcheano (representado por um filósofo[!]) não deve se deixar levar por "intuições" pessoais "...(se é que leu)...), nem incluir em sua dissertações as hominem's que diminuem e evidenciam sua tomada de partido.
Talvez uma leitura maiscatenta à "Vontade de Potência" e a obra de Bakunin, clareem as idéias pré formadas do blogueiro e o aproximem, um pouco, do pensamento, sempre inconclusivo, do grande pensador.
Um excelente texto que leva a muita reflexão, que deveria se voltar ao próprio autor. Acabou revelando a fragilidade do anarquismo, mas se tivesse uma visão comunista (não simploriamente "marxista") sairia deste labirinto de impossibilidades. Observação, Proudhon não serve como referencia e Bakunin era comunista). Só uma deixa: comunismo prioriza a luta entre escravo e senhor, não tem a ver com igualdade e despreza a democracia e o Estado, vai encontrar isto até mesmo em Marx se procurar.
ResponderExcluirNunca vi tanta merda num único comentário
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