Vejo
muitas pessoas cobrando o filósofo Michel Foucault por aquilo que ele não se
propôs a fazer. Entendo esse fato como parte de um movimento que deseja um
projeto político pronto ou esquemático, de onde brote uma fonte que devemos
beber incessantemente para sermos bem sucedidos na vida. O careca era contra as
filosofias que tentavam impor ou defender programas universais à conduta humana
e por isso não se empenhou em desenvolver um projeto político. Primeiro porque
ele temia que acontecesse o mesmo que fizeram com a filosofia de Hegel no
Estado prussiano de Bismarck, de Marx na
antiga União Soviética e de Nietzsche no totalitarismo nazista, ou seja, temia
que propostas filosóficas de liberdade se tornassem regimes opressivos e
desastrosos. Segundo porque ele acreditava que a ética e a vida privada não
estavam descoladas da vida pública, pelo contrário, a política tende a ser a
expressão da ética.
Sabemos
que os eixos principais dos trabalhos de Foucault giraram em torno da
desconstrução dos discursos de verdade ligados às esferas do saber e do poder,
que sujeitavam os seres humanos através dispositivos de poder, porém, o autor também
dedicou uma parte importante para pesquisar as práticas de liberdade e de
libertação. No texto Uma estética da existência,
o autor mostra (ao contrário da gritaria de alguns críticos) um profundo
otimismo com relação a nossa época. Ele diz que atualmente tem percebido o ressurgimento
da ética voltada para as escolhas particulares de cada pessoa, se desprendendo
de regras universais que antes as totalizavam e submetiam. Neste sentido, o
francês separa dois tipos de morais: uma é voltada para um determinado código
de regras, como nas religiões de textos ao qual se deve obediência; e a outra é
uma ética da existência como esforço de afirmação
da liberdade, dando à sua própria vida uma forma específica na qual é
possível se reconhecer, ser reconhecido pelos outros e onde a posteridade pode
encontrar um exemplo (2006, p. 290).
No
estudo histórico da modernidade, a partir do século 16, Foucault procurou
compreender como os sujeitos foram
produzidos pelos mecanismos de poder, ou seja, como foram sujeitados
através das práticas discursivas que disseram que eles eram loucos, presos,
homossexuais, doentes e etc. Não somente como foram construídos esses discursos
de verdade, as intenções políticas por trás deles, mas também como os “sujeitos”
acreditaram e obedeceram a essas “orientações”. Então, por entender que existe
um movimento de mudança, o autor volta seu foco para a história da antiguidade,
procurando atravessar as práticas de liberdade e do cuidado de si, antes destes
discursos “científicos” surgirem e se tornarem hegemônicos.
Como
os gregos e os romanos exprimiam sua ética de liberdade? Foucault acredita que
um dos exercícios na arte de aprender a viver era desempenhado pela escrita.
Mas não qualquer tipo de escrita. É a chamada Escrita de Si. Não são narrativas pessoais, nem tem como objetivo a
purificação, como em substituição às confissões religiosas. Não se trata também
de revelar o oculto, de dizer o não-dito, mas captar o já dito; reunir o que se
pode ouvir e ler, apenas para a constituição de si. Esses discursos podem ser
reunidos em espécies de cadernetas e anotações para consultar e refletir sempre
que necessário. São para ser usados cotidianamente, mas não no sentido de um
manual de sobrevivência e de ação, é preciso que a escrita no caderno esteja já
imprensa na alma do escrevente, que se modela através dele, que escreve a si
mesmo na realidade e na prática.
De
onde vem esses discursos se não são igualmente dispositivos de poder? Isso é o
mais interessante no pensamento de Foucault. Dispositivo vem da derivação de
positividade. É algo que não só alija, como também a partir do qual se cria o
novo e com o qual se trava uma relação de forças. Ora, o sujeito se constitui
através das práticas de sujeição e também através das práticas de liberação a
partir obviamente de um certo número de regras, de estilos, de convenções que podemos encontrar no meio cultural
(2006, p. 291). Por isso não se trata de um sujeito metafísico transcendental
que extrai sua liberdade do além ou de si mesmo sem intervenção do meio social onde
vive, há um diálogo e uma interação constante.
“A
escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a askésis: ou seja, a elaboração dos
discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de
ação. Como elemento de treinamento de si, a escrita tem, para utilizar uma
expressão que se encontra em Plutarco, uma função etopoiética [ética e poética]: ela é operadora da transformação da
verdade em êthos [caráter]”
(FOUCAULT, 2006, p. 145).
A
escrita além de moldar a vida como uma obra de arte (poética), também cumpre outras
funções importantes. Ela propõe uma organização ao pensamento e à existência,
que afasta a tribulação, a mudança repentina de opinião e de vontade, a
fragilidade diante dos acontecimentos e agitação da mente. Assim, a concentração,
por exemplo, dos estoicos e epicuristas que usavam desta prática no mundo
greco-romano, estava voltada à ação no presente. Com os escritos, podiam construir seu passado para o qual era possível retornar ou
se afastar, enquanto o pensamento para o futuro era rejeitado, por representar
insegurança e inquietude.
A
correspondência por cartas também era um exercício da escrita de si. Esta
atividade permitia a retrospecção de sua vida para narrar ao destinatário, como
também dar conselhos dos quais se acredita levar o bem viver. Desta maneira, a carta age através da escrita tanto
sobre aquele que escreve, quanto àquele que a receberá através da leitura e
releitura. A prática da correspondência procura “abrir sua porta àqueles que têm
a esperança de se tornarem melhores; são ofícios recíprocos. Quem ensina se
instrui” (p. 153). Esse exercício de correspondência configura que a prática da
escrita de si não é solitária e antissocial, ele é uma espécie de treino amistoso
entre lutadores. Porém, não se trata de levar tais conselhos ao pé da letra ou
apreendê-los em sua totalidade, o cuidado de si pressupõe que se reúnam após uma reflexão criteriosa as
proposições julgadas válidas para o contorno de sua própria vida. “É uma
escolha de elementos heterogêneos. Nisto, ela se opõe ao trabalho do gramático
que procura conhecer uma obra em sua totalidade ou todas as obras do autor.
Pouco importa, diz Epícteto, que se tenha apreendido exatamente aquilo que eles
quiseram dizer, e que se seja capaz de reconstituir o conjunto de sua
argumentação” (p. 151).
Acima
de tudo, a prática de liberdade mediada pela escrita entre os gregos e os
romanos pode ser entendida como uma provocação
ácida aos historiadores pretensiosos de reconstruir o passado em sua
integridade, de prender-se como numa camisa-de-força a uma dada teoria
metodológica, de dizer o que nunca foi dito e de querer compreender os mínimos
detalhes da obra de um autor como se fosse a tentativa de ter o direito
reconhecido de poder falar em nome do ilustre falecido que se pesquisa.
FOUCAULT, M. A escrita de si [1983]. In:______. Ética, sexualidade e política: Ditos e escritos, vol. 5. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 144-162.
FOUCAULT, M. Uma estética da existência [1984]. In:______. Ética, sexualidade e política: Ditos e escritos, vol. 5. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 288-293.
Olá Munhoz!
ResponderExcluirMuito interessante essa preocupação do Foucault de que sua filosofia fosse torcida como a Nietzche foi distorcida pelos nazistas.
Essa vida pré-moldada (que eu chamo de utilitarista), parece que a cada dia temos que ser úteis para a sociedade. (Se não trabalha não come).
Outro dia estava com meu amigo o poeta Edson Bueno e estavamos falando que nem triste mais ficamos. Ficou triste? Tome um remédio pra você voltar a produzir. Por isso que temos cada vez menos poetas inspirados.
Alias sobre as cartas é fantástico escrevê-las (Estou participando de um desafio literário de Cartas). Um dos gêneros mais lindos e profundos da literatura (Cartas ao jovem poeta de Rilke). E concordo cada vez que leio a mesma carta ela me diz coisas diferentes (até porque nosso ânimo está em momentos diferentes.)
Um, grande abraço.
belo texto! o didaticamente chamado "último" foucault é fascinante...
ResponderExcluirpretendo fazer um projeto de mestrado, na sociologia, articulando a moderna ideia e diagnóstico de depressão em contra-ponto com o "cuidado de si" foucaultiano. veremos o que sai...
abraço.