Existe um teórico
político pouco conhecido do público brasileiro que defende com unhas, dentes e
dólares uma espécie de conciliação entre liberalismo e anarquismo. Este
homem se chama David Friedman. É doutor
em Física, professor de Direito pela Universidade de Santa Clara na Califórnia
e filho do economista Milton Friedman (um dos líderes da Escola de Chicago,
cujo trabalho influenciou os governos de Nixon, Reagan e Pinochet). A obra mais
conhecida de David Friedman se chama “As engrenagens da liberdade” (escrita em
1973). Nela o autor advoga em favor do libertarianismo ou anarco-capitalismo, ideologia que
cresce exponencialmente nos EUA e que já possui alguns adeptos aqui no Brasil.
Neste post tentarei abordar algumas ideias do teórico sobre seu projeto de
organização sociopolítica.
É muito comum a
afirmação, entre os historiadores, de que o anarquismo moderno nasceu entre (e
pela crítica do) o liberalismo e o socialismo. Entretanto a reivindicação do
título de anarquista por David Friedman não admite (pelo menos explicitamente)
nenhum débito com os movimentos sociais, nem com os autores clássicos dos séculos
19 e 20 (Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Malatesta). Pelo contrário, o teórico se
diz herdeiro da tradição liberal radical de Adam Smith, F.A. Hayek e de seu pai, Milton
Friedman. A defesa do anarquismo de direita se apoia num ponto comum do
anarquismo de esquerda: a abolição do Estado em favor do autogoverno (ou
governo autogestionário). Podemos dizer que ultrapassa, portanto, o “Estado
mínimo” de Smith, por caracterizar uma fase “pós Estado mínimo” -- algo que o
próprio Smith já havia mencionado como “objetivo último” da sociedade do laissez-faire. Para Smith, o Estado desapareceria
após ter cumprido suas tarefas de estruturação física para o funcionamento completo
do mercado, entendido não somente como troca de mercadorias, mas também como relação
de comunicação entre os homens e como modo imediato de acesso à política. Ou
seja, a política seria substituída pela economia, algo que já podemos perceber
nas relações políticas institucionalizadas do capitalismo contemporâneo, onde
as decisões são tomadas somente para se adequarem às demandas do mercado.
Embora defenda com
vigor a economia capitalista, Friedman (imagem à direita) faz críticas precisas aos governos e às
políticas intervencionistas do capitalismo. Assim o autor escreve sua
apresentação: “Eu acredito [...] que todos têm o direito de viver a própria
vida, de irem ao inferno à sua própria maneira. Concluo, como muitos
esquerdistas, que toda censura deveria ser abolida. Que as leis contra as
drogas, sejam elas a maconha, a
heroína ou o Remédio Milagroso Contra o Câncer do Dr. Falcatrua, deveriam ser
repelidas. E também as leis que obrigam os carros a terem cintos de segurança.
O direito de controlar minha vida não significa o direito de ter livre tudo o
que quero; a única maneira de fazer isso seria obrigar alguma outra pessoa a
pagar pelo que recebo. Como todo bom direitista, eu me oponho aos programas de
bem-estar social que sustentam os pobres com dinheiro tirado à força dos
contribuintes. Também me oponho às tarifas, subsídios, empréstimos garantidos,
renovação urbana, preços mínimos para produtos agrícolas, em suma, todos os
muito mais numerosos programas que sustentam os não-pobres, e quase sempre os
ricos, com dinheiro tirado à força dos contribuintes, quase sempre dos pobres”
(FRIEDMAN, 1973, p. 8).
Smith acredita que o Estado
deve possuir apenas três funções: defender a sociedade da violência ou da invasão
de outras; proteger cada membro contra a opressão e injustiça de outro, tendo
uma administração exata da justiça; e manter obras públicas que o interesse
privado não faria. Ludwig von Mises, outro
teórico do liberalismo, advoga que o Estado deve somente garantir a segurança
interna e externa. Já para Friedman, o Estado só é útil (e um mal necessário)
para defender um país de outro em caso de guerra. Mas esta situação seria
passageira, pois assim que o anarco-capitalismo estiver universalizado não haverá
mais nações, nem controle de imigrações.
E as outras funções
atualmente exercidas pelo Estado, como polícias, tribunais e leis? A resposta é
o mercado. Com a abolição do governo, estes serviços passariam a ser do cargo
de empresas privadas. Tudo seria
vendido! As próprias leis seriam vendidas no mercado através das agências
de proteção (que fariam a segurança interna, prevenindo os crimes e protegendo
os cidadãos) e os tribunais privados julgariam as divergências entre empresas e
o conflito entre os cidadãos. Friedman diz que este serviço seria mais
eficiente e mais barato do que o que Estado cumpre. Os cidadãos só comprariam
as leis que julgariam indispensáveis para sua vida, por isso, a tendência para
uma sociedade libertária seria muito grande.
Aliando anarquia e capital, os projetos sociopolíticos
de Friedman me parecem extremamente frágeis, sobretudo por não levarem em conta a
antiética dos empresários envolvidos no mercado de leis e seus consumidores (mais
ricos ou astutos). Tampouco reflete sobre a concorrência (não raras vezes) nada saudável
entre empresas do mesmo ramo. Aliás, ele até toca neste assunto, mas diz que
uma disputa violenta entre as empresas as levariam a perderem lucros, o que não
é bom para nenhuma. Então, razoavelmente, resolveriam as desavenças com acordos
mútuos. O autor ainda reitera que uma empresa inescrupulosa seria naturalmente
rejeitada pelos consumidores, indo à falência. Mas desconsidera a rede de
interesses presente nas informações sobre tal empresa, divulgadas pela imprensa,
por exemplo. Deste modo não seria raro o ataque midiático às empresas éticas para desqualificá-las
em prol das que financiassem esse “serviço bacana”.
Friedman admite que haveria
um sério problema caso as agências de proteção resolvessem orquestrar uma
espécie de golpe de Estado (sem Estado) e tomar o poder político através da seu
poderio bélico. Por isso discorda do desarmamento da população, neste caso, é
preciso que os cidadãos tenham armas e queiram usá-las. Contudo adverte que a
possibilidade disto acontecer seria menor conforme o número de agências de
proteção (e é bastante otimista quanto a isso). De todo modo atualmente a
polícia e o exército podem fazer o mesmo. E por que não fazem? O autor afirma
que tais pessoas acreditam ter um senso de justiça extremo, por isso possuem
uma ética que as impedem de fazerem o que consideram errado. Creio piamente
que Friedman não conhece a polícia brasileira, caso contrário voltaria atrás neste
argumento.
O autor crítica o
socialismo porque não permite um conflito de interesses e não respeita a
pluralidade do pensamento humano; pois, embora o anarco-capitalismo não queira
fazer do conflito uma regra, possibilita sua existência e o encontro de uma
solução. Os acordos de cooperação são espontâneos, decididos entre dois ou mais
indivíduos através de um contrato acordado. Friedman também ataca o “Estado
mínimo” porque este universaliza as leis tentando uniformizar as opiniões e as
ações. Sendo assim o mercado de leis seria mais propício para atender as “imperfeições”
das pessoas. Além disso o “Estado mínimo” é ilusório, porque não tem uma
medida exata do que é “mínimo” e do que é “dispensável”; logo, seu poder
coercitivo aumenta como aconteceu na história política das federações
estadunidenses.
Por último Friedman
aponta as estratégias para um partido libertário. Aqui ele quebra um princípio do anarquismo de esquerda: a ausência
e negação de partido. O papel do partido libertário anarco-capitalista se
difere dos outros, pois ao chegar ao poder político, quer eliminar ou diminuir
drasticamente o governo. Contudo esta tática de disputar as eleições procura
muito mais disseminar as ideias libertárias do que vencer a concorrência (as
derrotas serão importantes). O partido possui um objetivo ideológico de disseminar seu conteúdo inclusive aos outros
partidos, que adotarão as ideias libertárias após perceberem que estas
despertam simpatia junto aos eleitores. Com o amadurecimento, um dia, um
libertário legítimo ficará à frente das decisões políticas e os cidadãos comuns
estarão frente à frente com o homem que venderá o mundo. Assim como na canção
de outro David, o Bowie.
Leia também: Anarquia Made In USA.
Referências:
FRIEDMAN, David. As engrenagens da liberdade: guia para um
capitalismo radical. Portal Libertarianismo Estudantes pela Liberdade. Ebook,
s/d [ano da primeira publicação: 1973].
MISES, Ludwin von. As seis lições. São Paulo: Instituto
Ludwin von Mises Brasil, 2009.
ROSANVALLON,
Pierre. O liberalismo econômico:
história da ideia de mercado. Bauru, SP: EDUSC, 2002.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação
sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultura, 1996.
A única vez que ouvi sobre Milton Friedman foi no documentário Doutrina de choque, que achei assustador e muito interessante, mostrando um panorama do que acontecia aos países em que foi imposta a linha de pensamento da escola de Chicago, em que sem o controle do estado, ou até políticas protecionistas para as empresas do país, o que pode ser visto é o monopólio explícito de grandes corporações esmagando o povo do país. O que na utopia faria com que o mercado se auto-ajustasse através da lei de oferta-procura, se mostrou como o simples 'O maior devora o menor'.
ResponderExcluirBom, nunca assisti o documentário, mas vou procurar. No entanto, Milton Freedman é o pai de David, e a teoria sócio-econômica dos dois (embora haja certas semelhanças) são distintas. A experiência chilena, por exemplo, me pareceu desastrosa, mais por conta de existir um Estado forte e repressor no plano político e menos pela efetização de uma maior liberdade para atuação do mercado. A proposta do David Friedman é deixar rolar sem intervenção do Estado - por isso ele se diz anarquista. Concordo, que o esquema criado por ele pode ir do utópico ao absurdo, mas não dá para dizer que é um neoliberalismo do tipo Pinochet e Reagan.
Excluir1 - A fonte dos comentários é horrível, inaceitável.
ResponderExcluir2 - O mercado livre e o sistema monetário são parte do problema e são antiquados para tempos e termos de libertarianismo realista, o sistema monetário é um grande impedimento para a mudança cultural que o mundo precisa.
Se "vender leis" não cheira a corrupção eu devo tá perdendo meu olfato..
Liberdade é liberdade, não tem lado. Me considero um anarquista "de esquerda" comparado com Friedman, porém nesse sistema poderia haver organizações populares, cooperativas, vilas onde eu viveria como quisesse, já que é anarquismo alguma proibição a esse tipo de organização "comunista" seria infundada, mas o ponto é a propriedade, na tansição ao anarco-capitalismo como que poderia manter a propriedades de hoje se tiveram a influência do estado na divisão, pra mim o melhor seria a propriedade de ocupação, você produz, é sua, você especula, vamo dar a alguém que a use.
ResponderExcluirConcordo contigo, Maurício. O problema é que um anarquismo do tipo coletivista (Bakunin) ou comunista (Kropotkin) provalvemente não seria possível no anarco-capitalismo de Friedman, porque para os dois primeiros o anarquismo e a liberdade de fato só existe quando o outro também é livre, logo, todos tem que ser livres ("a liberdade do outro estende a minha ao infinito", "enquanto houver alguém dominado eu não serei livre", são frases típicas de Bakunin). Além disso, a proposta de Bakunin é internacionalista, ou seja, é para o mundo inteiro e não somente para algumas "zonas temporárias", nem tampouco para pequenas comunidades. Já entrando no mote da questão colocada por você sobre a propriedade, algo me diz que a atual propriedade privada só é possível pela existência do Estado, embora os marxistas discordem com veemência desta tese. Não creio que sem o Estado a propriedade privada e o capital se sustentaria facilmente, mas obviamente, o Estado não é só um corpo, porém uma certa cultura legitimada pelo próprio povo, como no conceito de governamentalidade (de Foucault); acabar com ele é muito mais complicado do que se pensa e não é simplesmente "tomando" ou "destruindo" o poder, a meu ver, claro. Valeu pelos comentários!
ExcluirAbraços!