segunda-feira, 28 de maio de 2012

O homem que venderá o mundo (sobre David Friedman)

Existe um teórico político pouco conhecido do público brasileiro que defende com unhas, dentes e dólares uma espécie de conciliação entre liberalismo e anarquismo. Este homem se chama David Friedman. É doutor em Física, professor de Direito pela Universidade de Santa Clara na Califórnia e filho do economista Milton Friedman (um dos líderes da Escola de Chicago, cujo trabalho influenciou os governos de Nixon, Reagan e Pinochet). A obra mais conhecida de David Friedman se chama “As engrenagens da liberdade” (escrita em 1973). Nela o autor advoga em favor do libertarianismo ou anarco-capitalismo, ideologia que cresce exponencialmente nos EUA e que já possui alguns adeptos aqui no Brasil. Neste post tentarei abordar algumas ideias do teórico sobre seu projeto de organização sociopolítica.

É muito comum a afirmação, entre os historiadores, de que o anarquismo moderno nasceu entre (e pela crítica do) o liberalismo e o socialismo. Entretanto a reivindicação do título de anarquista por David Friedman não admite (pelo menos explicitamente) nenhum débito com os movimentos sociais, nem com os autores clássicos dos séculos 19 e 20 (Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Malatesta). Pelo contrário, o teórico se diz herdeiro da tradição liberal radical de Adam Smith, F.A. Hayek e de seu pai, Milton Friedman. A defesa do anarquismo de direita se apoia num ponto comum do anarquismo de esquerda: a abolição do Estado em favor do autogoverno (ou governo autogestionário). Podemos dizer que ultrapassa, portanto, o “Estado mínimo” de Smith, por caracterizar uma fase “pós Estado mínimo” -- algo que o próprio Smith já havia mencionado como “objetivo último” da sociedade do laissez-faire. Para Smith, o Estado desapareceria após ter cumprido suas tarefas de estruturação física para o funcionamento completo do mercado, entendido não somente como troca de mercadorias, mas também como relação de comunicação entre os homens e como modo imediato de acesso à política. Ou seja, a política seria substituída pela economia, algo que já podemos perceber nas relações políticas institucionalizadas do capitalismo contemporâneo, onde as decisões são tomadas somente para se adequarem às demandas do mercado.

Embora defenda com vigor a economia capitalista, Friedman (imagem à direita) faz críticas precisas aos governos e às políticas intervencionistas do capitalismo. Assim o autor escreve sua apresentação: “Eu acredito [...] que todos têm o direito de viver a própria vida, de irem ao inferno à sua própria maneira. Concluo, como muitos esquerdistas, que toda censura deveria ser abolida. Que as leis contra as drogas, sejam elas a maconha, a heroína ou o Remédio Milagroso Contra o Câncer do Dr. Falcatrua, deveriam ser repelidas. E também as leis que obrigam os carros a terem cintos de segurança. O direito de controlar minha vida não significa o direito de ter livre tudo o que quero; a única maneira de fazer isso seria obrigar alguma outra pessoa a pagar pelo que recebo. Como todo bom direitista, eu me oponho aos programas de bem-estar social que sustentam os pobres com dinheiro tirado à força dos contribuintes. Também me oponho às tarifas, subsídios, empréstimos garantidos, renovação urbana, preços mínimos para produtos agrícolas, em suma, todos os muito mais numerosos programas que sustentam os não-pobres, e quase sempre os ricos, com dinheiro tirado à força dos contribuintes, quase sempre dos pobres” (FRIEDMAN, 1973, p. 8).

Smith acredita que o Estado deve possuir apenas três funções: defender a sociedade da violência ou da invasão de outras; proteger cada membro contra a opressão e injustiça de outro, tendo uma administração exata da justiça; e manter obras públicas que o interesse privado não faria. Ludwig von Mises, outro teórico do liberalismo, advoga que o Estado deve somente garantir a segurança interna e externa. Já para Friedman, o Estado só é útil (e um mal necessário) para defender um país de outro em caso de guerra. Mas esta situação seria passageira, pois assim que o anarco-capitalismo estiver universalizado não haverá mais nações, nem controle de imigrações.

E as outras funções atualmente exercidas pelo Estado, como polícias, tribunais e leis? A resposta é o mercado. Com a abolição do governo, estes serviços passariam a ser do cargo de empresas privadas. Tudo seria vendido! As próprias leis seriam vendidas no mercado através das agências de proteção (que fariam a segurança interna, prevenindo os crimes e protegendo os cidadãos) e os tribunais privados julgariam as divergências entre empresas e o conflito entre os cidadãos. Friedman diz que este serviço seria mais eficiente e mais barato do que o que Estado cumpre. Os cidadãos só comprariam as leis que julgariam indispensáveis para sua vida, por isso, a tendência para uma sociedade libertária seria muito grande.

Aliando anarquia e capital, os projetos sociopolíticos de Friedman me parecem extremamente frágeis, sobretudo por não levarem em conta a antiética dos empresários envolvidos no mercado de leis e seus consumidores (mais ricos ou astutos). Tampouco reflete sobre a concorrência (não raras vezes) nada saudável entre empresas do mesmo ramo. Aliás, ele até toca neste assunto, mas diz que uma disputa violenta entre as empresas as levariam a perderem lucros, o que não é bom para nenhuma. Então, razoavelmente, resolveriam as desavenças com acordos mútuos. O autor ainda reitera que uma empresa inescrupulosa seria naturalmente rejeitada pelos consumidores, indo à falência. Mas desconsidera a rede de interesses presente nas informações sobre tal empresa, divulgadas pela imprensa, por exemplo. Deste modo não seria raro o ataque midiático às empresas éticas para desqualificá-las em prol das que financiassem esse “serviço bacana”.

Friedman admite que haveria um sério problema caso as agências de proteção resolvessem orquestrar uma espécie de golpe de Estado (sem Estado) e tomar o poder político através da seu poderio bélico. Por isso discorda do desarmamento da população, neste caso, é preciso que os cidadãos tenham armas e queiram usá-las. Contudo adverte que a possibilidade disto acontecer seria menor conforme o número de agências de proteção (e é bastante otimista quanto a isso). De todo modo atualmente a polícia e o exército podem fazer o mesmo. E por que não fazem? O autor afirma que tais pessoas acreditam ter um senso de justiça extremo, por isso possuem uma ética que as impedem de fazerem o que consideram errado. Creio piamente que Friedman não conhece a polícia brasileira, caso contrário voltaria atrás neste argumento.

O autor crítica o socialismo porque não permite um conflito de interesses e não respeita a pluralidade do pensamento humano; pois, embora o anarco-capitalismo não queira fazer do conflito uma regra, possibilita sua existência e o encontro de uma solução. Os acordos de cooperação são espontâneos, decididos entre dois ou mais indivíduos através de um contrato acordado. Friedman também ataca o “Estado mínimo” porque este universaliza as leis tentando uniformizar as opiniões e as ações. Sendo assim o mercado de leis seria mais propício para atender as “imperfeições” das pessoas. Além disso o “Estado mínimo” é ilusório, porque não tem uma medida exata do que é “mínimo” e do que é “dispensável”; logo, seu poder coercitivo aumenta como aconteceu na história política das federações estadunidenses.

Por último Friedman aponta as estratégias para um partido libertário. Aqui ele quebra um princípio do anarquismo de esquerda: a ausência e negação de partido. O papel do partido libertário anarco-capitalista se difere dos outros, pois ao chegar ao poder político, quer eliminar ou diminuir drasticamente o governo. Contudo esta tática de disputar as eleições procura muito mais disseminar as ideias libertárias do que vencer a concorrência (as derrotas serão importantes). O partido possui um objetivo ideológico de disseminar seu conteúdo inclusive aos outros partidos, que adotarão as ideias libertárias após perceberem que estas despertam simpatia junto aos eleitores. Com o amadurecimento, um dia, um libertário legítimo ficará à frente das decisões políticas e os cidadãos comuns estarão frente à frente com o homem que venderá o mundo. Assim como na canção de outro David, o Bowie.

Leia também: Anarquia Made In USA.

Referências:
FRIEDMAN, David. As engrenagens da liberdade: guia para um capitalismo radical. Portal Libertarianismo Estudantes pela Liberdade. Ebook, s/d [ano da primeira publicação: 1973].
MISES, Ludwin von. As seis lições. São Paulo: Instituto Ludwin von Mises Brasil, 2009.
ROSANVALLON, Pierre. O liberalismo econômico: história da ideia de mercado. Bauru, SP: EDUSC, 2002.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultura, 1996.


sábado, 19 de maio de 2012

Quando Nietzsche criticou os anarquistas

Os escritos nietzschianos disparam críticas para todo o lado como uma metralhadora giratória na mão de um soldado enlouquecido dos filmes de Kubrick. Não é à toa que o filósofo alemão gostava da ideia de guerra, mas essa não parecia estar restrita a um campo de batalha determinado entre nações. Acontecia a todo tempo e em todo lugar! Embora Nietzsche não tenha poupado nenhuma teoria ou movimento político (como o liberalismo e o socialismo), suas críticas políticas mais violentas foram disparadas ao anarquismo.

Contudo, é preciso considerar que algumas impressões de Nietzsche sobre o anarquismo demonstram preconceitos e desconhecimento. Atualmente, leituras contemporâneas enxergam – inclusive – pontos de encontro entre a filosofia do bigodudo e dos anarcos. Os historiadores do anarquismo gostam de enfatizar que Nietzsche educou os estômagos dos futuros leitores de Max Stirner, que após a morte e o ostracismo, teve sua obra reconhecida como ícone do anarquismo individualista. No entanto, grandes anarquistas como Kropotkin e Malatesta fizeram duras críticas a filosofia de Nietzsche. Já Emma Goldman, de modo surpreendente disse: “Nietzsche não era um teórico social, mas um poeta e um inovador. A sua aristocracia nem era de berço nem de bolsa; era de espírito. A este respeito era um anarquista, e todos os verdadeiros anarquistas foram aristocratas” (apud. JOLL, 1964, p. 199).

Na contemporaneidade, após uma atualização de Nietzsche, via Foucault-Deleuze, alguns pensadores autointitulados pós-anarquistas, estabelecem abordagens interessantes na tentativa de renovação da teoria política anarquista através dos escritos dos autores clássicos do anarquismo, de Nietzsche e dos “nietzschianos”. Porém, deixaremos para abordar estas questões “porosas” em outro post. Neste, vamos nos deter na principal crítica de Nietzsche aos anarquistas, que de certa maneira, será abordada pelos teóricos do pós-anarquismo.

Creio que a crítica de Nietzsche não se refere especificamente a um aspecto político (de ação ou estratégia), mas sim cultural e moral. Neste sentido, não tem nada de inovador em relação ao que o bigode já havia postulado sobre os cristãos. Em O crepúsculo dos ídolos (obra de 1888), o alemão compara o cristão e o anarquista, dizendo que ambos são ressentidos que postergam seu momento de gozo para um futuro. O cristão espera o Juízo Final e o anarquista, a Revolução. Os dois colocam a culpa de seu mal-estar nos outros, sendo que essa atitude de indignação e de impotência já é para tais um prazer (2001, p.75). Aparentemente, isso nem poderia ser um problema, mas os conhecedores da filosofia nietzschiana sabem que essa crítica se assenta sobre uma base ferrenha de verdadeira guerra contra a moral. Como dizia o filósofo, contra a moral dos escravos ressentidos.

O trecho citado de Emma Goldman sobre Nietzsche, no início do século 20, é algo bastante polêmico, se pensarmos que o alemão historicizou a geração de duas morais: a dos escravos e a dos senhores; uma da aristocracia, outra do rebanho. Para Nietzsche, o modo como interpretamos e impomos valores ao mundo tem uma história. “O valor de ‘bom’, por exemplo, foi inventado pelos nobres e superiores para ser aplicado a eles mesmos, em contraste com a plebe, os comuns e inferiores. Era o valor do senhor – o ‘bom’ – enquanto oposto ao do escravo – o ‘mau’” (NEWMAN, 2008, p. 146). Entretanto, a superioridade da aristocracia começou a ser rompida por uma revolta de escravos contra os valores morais existentes. Essa revolta começa com os judeus, que a partir de certo momento, vão dizer que somente os miseráveis são os bons; os sofredores, os necessitados, os feios, os fracos e os doentes serão os únicos abençoados – os nobres e poderosos são os maus, os lascivos e os malditos (NIETZSCHE, 1998, p. 62).

Neste sentido, Nietzsche contrapõe duas morais. A da aristocracia é a exaltação da vida enquanto potência criativa a partir de si mesma. A dos escravos, judeus e cristãos, é uma negação da vida, não é ação, mas reação, pois sua qualidade está baseada num fator externo, num inimigo do qual se atribui a causa do dano e da ofensa a sua classe. Portanto, esta moral do ressentimento não pode existir em si mesma, viver para si e a partir de si. Ela precisa estar sempre em contraposição, sempre negando a existência do outro, concomitantemente, também a sua. Tal moral desloca o sentido de viver para “um outro” que não é o ser que vive. Os valores morais considerados bons passam a se relacionarem à piedade, ao altruísmo, à docilidade. “Para Nietzsche, os valores de igualdade e democracia, que formam a pedra fundamental da teoria política radical, emergiram da revolta do escravo na moralidade. [...] Ele vê o movimento democrático como uma expressão da moral do rebanho derivada da reavaliação judaico-cristã dos valores. O anarquismo é para Nietzsche o mais extremado herdeiro dos valores democráticos – a expressão mais violenta do respectivo instinto de manada. Busca equalizar as diferenças entre indivíduos, abolir as distinções de classe, nivelar completamente as hierarquias pela altura do chão e igualar o potente com o impotente, o rico com o pobre, o senhor com o escravo. [...] Nietzsche considera isso como o pior excesso de niilismo europeu – a morte dos valores e da criatividade” (NEWMAN, 2008, p. 148).

Bom, mesmo que essa crítica tenha resquícios de verdade, ela mostra o quão Nietzsche leu mal os anarquistas (se é que leu). O que boa parte dos pensadores propõe é justamente uma quebra da homogeneidade e da padronização da sociedade. Uma libertação do Estado para que cada um possa desenvolver ao máximo suas potencialidades e capacidades criativas. Aliás, a crítica severa de Proudhon (foto ao lado com suas filhas) em O que é a propriedade? em direção aos comunistas é justamente neste sentido, ou seja, advém do medo de que o filósofo francês tinha de um regime que apagasse as individualidades e as diferenças. Por outro lado, a educação integral e a defesa da sociabilidade feita por Bakunin, responde de maneira certeira que a pretensão dos anarquistas era fundar uma sociedade autogovernada que proporcionasse as possibilidades infinitas de criações plurais de existência.

A crítica de Nietzsche aos anarquistas talvez encontre melhor fundamentação quando se volta para a questão do maniqueísmo criador de um inimigo. Enquanto o escravo atribui sua desgraça ao senhor, os marxistas ao Capital, os anarquistas atribuem ao Estado. Acho que a crítica dos anarquistas a opressão está bem à frente dos marxistas, inclusive, por enxergarem que as questões políticas sobrepõem-se às econômicas. Mas ao acreditar numa ordem natural do mundo, os anarquistas caem novamente no maniqueísmo de entender que existe algum poder neutro que harmonizaria os homens. Pois, como expõe Newman (2008, p. 154): “O anarquismo pode ser entendido como uma luta entre autoridade natural e autoridade artificial – os anarquistas não rejeitam todas as formas de autoridade como o velho cliché costuma dizer. Ao contrário, declaram sua absoluta obediência à autoridade materializada pelo que Bakunin denomina de leis naturais”. Ao fazer isso, o anarquismo engendra uma lógica binária de bom e mau, de sociedade e Estado, que acaba essencializando o próprio poder que opõe.

Assim, segundo Newman, não importa o inimigo; mas que ele exista e tenha que ser destruído, numa promessa de batalha final e de vitória final. Essa é a característica do ressentimento no anarquismo. A proposta de Nietzsche, para sair deste engodo, é que o ser não negue o poder, pois a vontade de poder é algo intrínseco aos instintos e a supressão desse desejo debilita o homem, fazendo-o voltar contra si mesmo. Neste caso, é melhor o anarquista agir do que reagir. Os princípios da ética do cuidado, da cooperação e ajuda mútua podem ser eixos interessantes já dentro do anarquismo clássico que permitam sobrepujar o ressentimento como estratégia de construção política. Além disso, é preciso negar a luta que se embasa simplesmente na oposição aos valores que estão em voga e também recusar a proposta de escolha do “menos ruim” ou daquilo que vai atacar seu suposto adversário. Em vez disso, criar novos valores, afirmar os que consideramos bons e melhores, até com certo ar de indiferença aos demais valores. Tem que fazer valer!


Referências:

JOLL, James. Anarquistas e anarquismo. Lisboa: Dom Quixote, 1964.
NEWMAN, Saul. O anarquismo e a política do ressentimento. Revista Verve. São Paulo: PUC-SP, n° 14, p. 145-178, outubro, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich. O crepúsculo dos ídolos. Curitiba: Hemus, 2001.
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? Lisboa: Estampa, 1975.

sábado, 12 de maio de 2012

Bourdieu pensando o sistema de ensino e a naturalização das desigualdades sociais

No texto, de 1966, A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura, o sociólogo francês Pierre Bourdieu desenvolve um de seus principais conceitos teóricos, o capital cultural"; através do qual explica o atraso “educacional” das classes populares. Fundamentado em dados empíricos, o autor faz uma crítica vigorosa à função desempenhada pelas instituições escolares francesas. Salvo às especificidades da realidade escolar da França, da pesquisa sociológica científica e da época em que Bourdieu escreve, acredito que, a partir de seu texto, podemos ainda pensar algumas questões à política e à educação contemporânea no Brasil.

O sociólogo abre o texto com a seguinte paulada: “É provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da ‘escola libertadora’, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade as desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural” (BOURDIEU, 2007, p. 41).

Por que a escola não é um fator de mobilidade social? Bom, para o autor, existe uma série de aspectos culturais que precisam ser levados em conta para explicar a mobilidade social (aquilo que pode fazer com que uma pessoa saia de uma classe social inferior para uma superior). Dentre os aspectos das relações sociais que levam ao êxito escolar e à ascensão social, são perceptíveis algumas formas grosseiras: (a) Recomendações, quer dizer, o famoso “Quem Indica”. (b) Ajuda no trabalho escolar ou ensino suplementar. Pais, familiares e outros que auxiliam os alunos nas tarefas escolares; e as atividades fora do âmbito da escola, como cursos de idiomas ou de disciplinas específicas como português e matemática (famoso Kumon) e de pré-vestibulares, no atual caso brasileiro. (c) Informação sobre o sistema de ensino e perspectivas profissionais. Este ponto se refere ao conhecimento detalhado de profissões e de particularidades de estudos conforme as exigências de uma prova classificatória, como no vestibular ou ENEM. Porém, nenhuma dessas três formas consegue dar conta da sofisticação cultural relacionada à classe social do aluno, que podemos enumerar em dois tipos: (1) Transmissão do capital cultural da família e (2) do Ethos (como proceder) no agir ao capital cultural e à instituição social. Essas duas heranças culturais que diferem entre as classes sociais são responsáveis pela diferença inicial das crianças diante da experiência escolar e pelas suas taxas de êxito. Tento explicar minimamente a seguir os valores culturais sofisticados captados por Bourdieu, que estão implícitos na relação familiar – os modos de aprender e de agir, e as expectativas de futuro.

A transmissão do capital cultural

As pesquisas do sociólogo Paul Clere mostram que a parcela de bons alunos em uma amostra de 5ª série cresce em função da renda de suas famílias. Entretanto percebe-se que aqueles alunos cujos pais possuem formação superior têm maior sucesso escolar. Ainda assim os alunos de famílias que possuem diplomas iguais, muito pouco diferem entre si, mesmo que a renda de uma ou de outra família seja superior. Isto demonstra que dentro das heranças dois fatores são determinantes para o êxito escolar: a renda e o “conhecimento” dos familiares. Mas, acima de tudo, o conhecimento dos membros da família. Este está à frente da renda. O que significa que o sucesso da criança na escola está diretamente ligado à cultura. Esta tem um valor maior do que o financeiro, embora geralmente os dois apareçam atrelados.

Podemos dizer então que o capital cultural possui uma relação direta com os atributos familiares (cultura e renda), logo, com a rede sociocultural da qual a criança participa. A herança cultural deve levar em conta não somente o nível cultural do pai ou da mãe, mas também o dos demais componentes da família, especialmente, o dos avós. As localidades regionais onde se residiu para os estudos na adolescência e na juventude também precisam ser colocadas nesse cálculo. Pois em determinados lugares existe uma maior disponibilidade de bens simbólicos, como museus, teatros, parques culturais, cinemas, instituições escolares de melhor qualidade, centros de cultura e etc. Soma-se a estes dois aspectos o conjunto das características do passado escolar, como o tipo de curso secundário e o tipo de estabelecimento – se municipal, estadual, federal ou privado. Para a pesquisa sociológica sobre as causas do êxito escolar, é necessário “consequentemente, um modelo que leve em conta essas diferentes variáveis – e também as características demográficas do grupo familiar, como o tamanho da família – que permita fazer um cálculo muito preciso das esperanças de vida escolar” (p. 43). É perceptível que Bourdieu atribui um valor muito maior a família do que a escola. Ele conta que os filhos das classes populares com maior propensão a ingressar na faculdade têm famílias diferentes da média de sua categoria, seja por seu nível cultural global ou por seu tamanho.

Contudo os níveis de instrução da família são apenas indicadores e não mostram quais conteúdos são transmitidos às crianças. Nisso as pesquisas demonstram que o capital cultural mais rentável para o sucesso escolar é constituído pelas informações e conhecimentos relacionados ao mundo universitário, à facilidade verbal e à cultura livre adquirida nas experiências extra-escolares. Quer dizer que a transmissão cultural eficaz é a que não está separada da vida comum do aluno e que não se trata de uma tarefa específica que ele fará metodicamente, mas um eixo de relações culturais que participa de sua vida de maneira integral sem parecer forçosa. Neste sentido, os alunos de família rica e culta interagem numa cultura de gostos, de linguagens e de fazeres propícios ao que é cobrado nas instituições formais. Por conta de haver essas relações desde “berço” acredita-se, enganosamente, que as qualidades destas crianças, transmitidas quase por osmose, são dons naturais. Ao contrário desta crença, Bourdieu (p. 46) escreve que: “o êxito com os estudos literários está estreitamente ligado à aptidão para o manejo da língua escolar, que só é uma língua materna para as crianças oriundas das classes cultas”, enquanto as crianças das classes populares precisam se desdobrar para fugir do linguajar próprio ao seu cotidiano.

A escolha do destino e a questão do ethos familiar

Geralmente a atitude de pais e de crianças em relação à escola está relacionada às suas posições sociais. Esse caso é particularmente importante no âmbito do ensino francês deste período. Pois os alunos após terminarem o nível básico precisavam mudar para outra escola. Entre as opções, as melhores “públicas” eram concorridas através de exames, de indicações e de regularidades de notas boas no ensino básico. O pai do aluno esperava que ele atingisse um bom desempenho nas séries iniciais, sobretudo, baseado num certo índice medido conforme os incentivos dos professores, para que ele continuasse os estudos e/ou concorresse a uma vaga nas melhores escolas. As pesquisas de Bourdieu mostram que “a escolha da escola e das maneiras do ensino (técnico ou teórico) tem a ver com as lembranças das experiências direta e imediata pela estatística intuitiva das derrotas ou dos êxitos parciais das crianças de seu meio”. A desesperança, não raras vezes, tomam as classes populares e então dizem: “Isso não é para nós”. O que significa: “Não temos meios para isso”.

As condições econômicas e culturais das classes médias também são diferentes das classes superiores, haja vista que a cada dois alunos das classes superiores que acessam a faculdade, somente um aluno das classes médias consegue. Mas “diferentemente das crianças das classes populares, que são duplamente prejudicadas no que respeita à faculdade de assimilar cultura e a propensão para adquiri-la, as crianças das classes médias devem à sua família não só os encorajamentos ao esforço escolar, mas também um ethos de ascensão social e de aspiração ao êxito na escola e pela escola, que lhe permite compensar a privação cultural com a aspiração fervorosa à aquisição de cultura” (BOURDIEU, 2007, p. 48).

O capital cultural e o ethos combinam-se na concorrência para definir as condutas escolares que excluirão os alunos das classes populares. A questão da desesperança e do ethos aparece de modo paradoxal para as crianças pobres, pois se espera que compensem suas carências de capital cultural através de um desempenho melhor que aqueles que possuem melhores condições econômicas e culturais. Desta maneira, aponta Bourdieu (p. 50): “o princípio geral que conduz à superseleção das crianças das classes populares e médias estabelece-se assim: as crianças dessas classes sócias que, por falta de capital cultural, têm menos oportunidades que outras de demonstrar um êxito excepcional, devem, contudo, demonstrar um êxito excepcional para chegar ao ensino secundário”.

Como a escola cumpre a função de conservar as desigualdades sociais?

As práticas e os métodos de ensino na escola são homogêneos, não atentam para as especificidades como as carências de cada pessoa associada a uma dada classe social. A escola trata todos “os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, assim, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura”. Pode-se afirmar que a escola nega o princípio de isonomia da justiça liberal (inclusive), pois não trata particularmente cada um da maneira adequada à suas necessidades. Ou seja, há um tratamento igual (baseado no modelo da cultura formal das classes superiores) que reproduz as desigualdades já existentes tanto nas condições simbólicas (como a linguagem) quanto nas condições materiais (econômicas).

Segue uma longa citação que acho interessante fazê-la para finalizar a resenha: “Ao atribuir aos indivíduos esperanças de vida escolar estritamente dimensionadas pela sua posição na hierarquia social, e operando uma seleção que – sob as aparências da equidade formal – sanciona e consagra as desigualdades reais, a escola contribui para perpetuar uma sanção que se pretende neutra, e que é altamente reconhecida como tal, nas aptidões socialmente condicionadas que trata como desigualdades de ‘dons’ ou de mérito, ela transforma as desigualdades de fato em desigualdades de direito, as diferenças econômicas e sociais em ‘distinção de qualidade’, e legitima a transmissão da herança cultural. [...] Além de permitir a elite se justificar de ser o que é, a ‘ideologia do dom’, chave do sistema escolar e do sistema social, contribui para encerrar os membros das classes desfavorecidas no destino que a sociedade lhes assinala, levando-os a perceber como inaptidões naturais o que não é senão efeito de uma condição inferior, e persuadindo-os de que eles devem o seu destino social à sua natureza individual e à sua falta de dons. O sucesso excepcional de alguns indivíduos que escapam ao destino coletivo dá uma aparência de legitimidade à seleção escolar, e dá crédito ao mito da escola libertadora junto àqueles próprios indivíduos que ela eliminou, fazendo crer que o sucesso é uma simples questão de trabalho e de dons” (BOURDIEU, 2007, p. 58-59)

Nossas considerações

Bourdieu, quando defende a historicidade dos bens culturais, dá aula de história para os políticos contemporâneos e para os defensores da "igualdade de oportunidades" do atual modelo liberal. Mostrando a quem quiser ver que não vivemos no estado de natureza, mas que existe "positividade" (no sentido de relevos criados pelos homens) nas relações sócio-culturais que permeiam as ascensões sociais e os êxitos escolares. Este modelo de sociedade e de instituições sociais desta época não são naturais. Esse jogo é inventado, arbitrado e mapeado, embora se acredite que sempre foi assim e assim deverá continuar. Lendo Bourdieu, lembrei-me de um trecho de E. P. Thompson (1987) em que o historiador descreve o quanto os lavradores, que trabalhavam no campesinato sofreram com o cercamento das terras produtivas (e expulsões), concomitante ao processo de urbanização. Tiveram que ralar sol a sol nas fábricas; viver a novidade do tempo programático do relógio; e conviver com as constantes epidemias na Europa. Muitos resistiram, muitos morreram. Mas as gerações futuras, filhos desses homens retirados do campo, não sabiam mais como era antes, então, aceitavam as condições como naturais, por mais gritantes que elas fossem. Essa resiliência foi essencial para o desenvolvimento do capitalismo, mas é importante não aceitá-la como condição última para nossa existência. Neste sentido apesar de não concordar com alguns pontos das lutas de movimentos sociais e raciais, acho importante buscar juridicamente o que vem sendo lhes negado social e culturalmente. Isto é, aquilo que através das experiências práticas não vem sendo concretizado; seus acessos ao consumo, a liberdade de expressão e ao respeito pela personalidade dentro do próprio capitalismo. Estas lutas, jurídicas ou não, são criações de novas positividades, de novas realidades. Talvez daqui a alguns anos ninguém mais levante questionamento sobre essas "mudanças", assim como não se questiona mais sobre a propriedade privada e o aprisionamento de pessoas (o que é sempre lamentável).

Segundo a lição de Bourdieu, não é possível haver igualdade diante das desigualdades pré-existentes. Como cobrar as mesmas coisas para pessoas com condições materiais e simbólicas totalmente diferentes? As estatísticas dos vestibulares da UFU mostram que em dez anos nenhum aluno da rede pública conseguiu ingressar no curso de medicina (o mais concorrido desta instituição). Seria porque nasceram burros? Porque estudaram pouco? Ou porque não estudaram nas mesmas instituições e cursinhos que os alunos aprovados? Ou porque não tiveram tempo ($) suficiente para aprenderem inglês no CCA e matemática no Kumon? Talvez seja porque seus professores da rede pública precisaram pegar 32 aulas por semana em 18 salas diferentes, com cerca de 40 alunos em cada (360 alunos ao todo), fazendo com que seu tempo fosse bastante pequeno para que pudessem preparar melhor as aulas. Aulas as quais a direção da escola e o governo não deram apoio nenhum além do livro didático de História escrito por um bacharel em Direito. Ou então talvez porque os alunos tiveram que trabalhar de atendente de telemarketing para ajudar nas despesas de casa. Vai saber! Talvez sejam mesmo preguiçosos, sem méritos e burros inatos. Por isso seus lugares atualmente estão reservados nas faculdades particulares, enchendo os bolsos dos donos, não só com o dinheiro suado de mão-de-obra semi-escrava, mas também com a grana de programas paliativos e de financiamentos custeados pelo dinheiro público, estratégia esta que acaba desviando o foco principal dos problemas educacionais do país.
 
Referências:
BOURDIEU, P. A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In:______. Escritos de educação. Organizadores Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 41-64.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, vol. II: a maldição de Adão trad. Renato Busatto Neto, Cláudia Rocha de Almeida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

A exportação do saber e a questão racial no Brasil segundo Pierre Bourdieu

Este texto pretende ser um resumo do ensaio “Sobre as artimanhas da Razão imperialista” do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Levantaremos questões que nos chamaram atenção nesse escrito para discutirmos com a amiga e historiadora Laila C. Pereira, que atualmente se “debruça” sobre o autor.

Bourdieu escreveu este ensaio em 1998, quatro anos antes de sua morte. Ele diz que o texto serve de grande utilidade para os sociólogos no mundo inteiro. Do que se trata? O autor postula sobre o perigo na adoção de categorias, questões e conceitos criados ou surgidos num local e tempo para pensar problemas específicos de um determinado contexto histórico, mas que depois são “exportados” em larga escala para outros lugares e tempos díspares. Para o sociólogo, esta desistorização arruína as particularidades de um povo e de suas experiências histórica e sociológica, totalmente distintas daquelas de onde vieram essas ferramentas do saber.

“O imperialismo cultural repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais. [...] inúmeros tópicos oriundos diretamente de confronto intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades americanas (EUA) impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro. Esses lugares-comuns no sentido aristotélico de noções ou de teses com as quais se argumenta, mas sobre as quais não se argumenta ou, por outras palavras, esses pressupostos da discussão que permanecem indiscutidos, devem uma parte de sua força de convicção ao fato de que, circulando de colóquios universitários para livros de sucesso, de revistas semi-eruditas para relatórios de especialistas, de balanços de comissões para capas de magazines, estão presentes por toda parte ao mesmo tempo, de uma forma poderosa por esses espaços pretensamente neutros como são os organismos internacionais e os centros de estudos e assessoria para políticas públicas” (BOURDIEU, 2007, p. 17-18).

É interessante notar que o autor chama atenção àqueles que não pensam sobre o sentido ou a empiria dessas teses em diferentes lugares. Ou seja, em vez de primeiro julgarmos a validade das teses presente no debate, apenas as usamos para convencer o outro, como se elas fossem categorias neutras e irrefutáveis. O domínio (no sentido de poderio imperialista) desse saber é naturalizado e instituído por alguns fatores: (1º) A insistência midiática na criação e repetição dessas categorias. Nesse caso, as teses caem numa espécie de senso comum que faz esquecer sua origem nas realidades históricas complexas de uma sociedade forjada que se coloca como modelo e medida de todas as coisas. (2º) Palavras como “flexibilidade” e “empregabilidade” funcionam como palavras de ordem política visando aceitação da precariedade salarial como algo natural, que por sua vez, neutraliza as intenções e os interesses por trás delas. Assim como “globalização”, “mundialização”, “pós-modernismo” e “fim da história” passam a ser padrões universais para todos os lugares, retirando a carga ideológica e colonialista cultural de onde nascem esses conceitos. (3°) Fundações de filantropia e de pesquisa (sobretudo dos EUA) que financiam institutos em outros países para difundirem os saberes, as representações e as práticas (de pesquisa, de cultura e de política) inventadas no país que custeia os “empreendimentos” acadêmicos. (4°) Integração de livros de língua inglesa e o desaparecimento na distinção entre editoras comerciais e acadêmicas. Existe, atualmente, imposição de títulos, capas e até conteúdos pelas editoras preocupadas em vender mais e melhor a ideia transmitida “pelo” autor (mas será mesmo do autor?).

Bourdieu dá uma atenção especial à discussão racial no Brasil. Ele explica que não é possível adotar a mesma categoria dicotômica (branco/negro) forjada para pensar a sociedade americana, porque no caso brasileiro existem particularidades que precisam ser tratadas. A definição de raça nas Américas passa por muitas definições: Ascendência, Aparência física e Status sociocultural. Os norte-americanos são os únicos a definir raça somente à ascendência aos afro-americanos, onde filhos de uma união mista são postos sempre no grupo “negro”. No Brasil se define por um “continuum” de cor, traços físicos e posição de classe (renda e educação), portanto, engendram categorias intermediárias, que não podem ser reunidas num só grupo. Inclusive, as pesquisas mostram índices de segregação diferentes dos EUA. O problema racial no Brasil não leva necessariamente a Ostracização e a Estigmatização sem remédios.

Entretanto, as pesquisas das faculdades norte-americanas (e a colonização refletida nos estudos latino-americanos) dizem que o Brasil é um país tão racista quanto os EUA, e que por isso, os brancos brasileiros não tem nada que se “invejar” dos norte-americanos. O cientista político afro-americano Michael Hanchard, aponta que o racismo no Brasil é ainda mais perverso que no caso estadunidense, usando as mesmas categorias dicotômicas para enquadrar os brasileiros. “Em vez de considerar a constituição da ordem etnorracial brasileira em sua lógica própria, essas pesquisas (como de Hanchard) contentam-se, na maioria das vezes, em substituir na sua totalidade o mito nacional da ‘democracia racial’, pelo mito segundo o qual todas as sociedades são racistas, inclusive aquelas no seio das quais parece que, à primeira vista, as relações ‘sociais’ são menos distantes e hostis. De utensílio analítico, o conceito de racismo torna-se um simples instrumento de acusação sob o pretexto de ciência [...]” (BOURDIEU, 2007, p. 22).

O autor conta ainda sobre a vinda de pesquisadores norte-americanos para o Brasil, que incentivam líderes do movimento negro a lutarem contra as categoriais intermediárias (como no caso do “pardo”), estabelecendo a dicotomia mistificada norte-americana para explicação racial, o que parece um contrassenso, já que nos EUA, atualmente (na época do texto) luta-se para que o Estado reconheça a “etnia” mestiça. Sobre o financiamento de pesquisas o autor coloca: “A Fundação Rockefeller financia um programa sobre “Raça e etnicidade” na UFRJ, bem como o Centro de Estudos Afro-asiáticos (e sua revista Estudos Afro-asiáticos) da universidade Cândido Mendes, de maneira a favorecer o intercâmbio de pesquisadores e estudantes. Para a obtenção de seu patrocínio, a Fundação impõe como condição que as equipes de pesquisa obedeçam aos critérios de affirmative action à maneira americana, o que levanta problemas espinhosos já que, como se viu, a dicotomia branco/negro é de aplicação, no mínimo, arriscada na sociedade brasileira” (p. 25).

Parece haver uma colonização do saber acadêmico assim como houve uma colonização cultural pelas músicas e pelo cinema americano: “Do mesmo modo que os produtores da grande indústria cultural americana como o jazz ou o rap, ou as modas de vestuário e alimentares mais comuns, como o jeans, devem uma parte da sedução quase universal que exercem sobre a juventude e ao fato de que são produzidas e utilizadas por minorias dominadas, assim também os tópicos da nova vulgata mundial tiram, sem dúvida, uma boa parte de sua eficácia simbólica do fato de que, utilizados por especialistas de disciplinas percebidas como marginais e subversivas, tais como os cultural studies, os minority studies, os gay studies ou os women studies, eles assumem, por exemplo, aos olhos dos escritos das antigas colônias europeias, a aparência de mensagens de libertação” (p.29).
 
Confesso que Bourdieu levanta questões que eu ainda preciso refletir, pois estão contra muitas coisas que acredito. Mas a maneira sofisticada que o autor argumenta usando exemplos práticos e problematizando assuntos polêmicos tem meu respeito, sobretudo, porque põe o dedo na ferida dos brasileiros sobre o “orgulho” de ser colonizado sem pensar muito a respeito das consequências disso. A questão da colonialidade do saber, com vistas ao poder, já havia sido levantada pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano (2006), quando disse que o subdesenvolvimento na América Latina se devia não por incompetência, mas por uma interrupção na experiência histórica própria quando os europeus exportaram objetivos culturais eurocêntricos como o progresso, o desenvolvimento, a democracia, a identidade, a modernidade e a unidade, chamados pelo autor de fantasmas da América Latina. Neste sentido, o ensaio de Bourdieu pode ser entendido como um aviso para que os brasileiros tenham cautela na adoção de proposições que venham de fora e que os impossibilite de andar com as próprias pernas.

Referências:

BOURDIEU, P. Sobre as artimanhas da Razão imperialista. In:______. Escritos de educação. Organizadores Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 17-32.
QUIJANO, A. Os fantasmas da América Latina. In: NOVAES, A. (org). Oito visões da América Latina. São Paulo: Senac, 2006, p. 49-85.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Ética através da escrita em Foucault: poética e (est)ética

Vejo muitas pessoas cobrando o filósofo Michel Foucault por aquilo que ele não se propôs a fazer. Entendo esse fato como parte de um movimento que deseja um projeto político pronto ou esquemático, de onde brote uma fonte que devemos beber incessantemente para sermos bem sucedidos na vida. O careca era contra as filosofias que tentavam impor ou defender programas universais à conduta humana e por isso não se empenhou em desenvolver um projeto político. Primeiro porque ele temia que acontecesse o mesmo que fizeram com a filosofia de Hegel no Estado prussiano de Bismarck, de Marx na antiga União Soviética e de Nietzsche no totalitarismo nazista, ou seja, temia que propostas filosóficas de liberdade se tornassem regimes opressivos e desastrosos. Segundo porque ele acreditava que a ética e a vida privada não estavam descoladas da vida pública, pelo contrário, a política tende a ser a expressão da ética.

Sabemos que os eixos principais dos trabalhos de Foucault giraram em torno da desconstrução dos discursos de verdade ligados às esferas do saber e do poder, que sujeitavam os seres humanos através dispositivos de poder, porém, o autor também dedicou uma parte importante para pesquisar as práticas de liberdade e de libertação. No texto Uma estética da existência, o autor mostra (ao contrário da gritaria de alguns críticos) um profundo otimismo com relação a nossa época. Ele diz que atualmente tem percebido o ressurgimento da ética voltada para as escolhas particulares de cada pessoa, se desprendendo de regras universais que antes as totalizavam e submetiam. Neste sentido, o francês separa dois tipos de morais: uma é voltada para um determinado código de regras, como nas religiões de textos ao qual se deve obediência; e a outra é uma ética da existência como esforço de afirmação da liberdade, dando à sua própria vida uma forma específica na qual é possível se reconhecer, ser reconhecido pelos outros e onde a posteridade pode encontrar um exemplo (2006, p. 290).

No estudo histórico da modernidade, a partir do século 16, Foucault procurou compreender como os sujeitos foram produzidos pelos mecanismos de poder, ou seja, como foram sujeitados através das práticas discursivas que disseram que eles eram loucos, presos, homossexuais, doentes e etc. Não somente como foram construídos esses discursos de verdade, as intenções políticas por trás deles, mas também como os “sujeitos” acreditaram e obedeceram a essas “orientações”. Então, por entender que existe um movimento de mudança, o autor volta seu foco para a história da antiguidade, procurando atravessar as práticas de liberdade e do cuidado de si, antes destes discursos “científicos” surgirem e se tornarem hegemônicos.

Como os gregos e os romanos exprimiam sua ética de liberdade? Foucault acredita que um dos exercícios na arte de aprender a viver era desempenhado pela escrita. Mas não qualquer tipo de escrita. É a chamada Escrita de Si. Não são narrativas pessoais, nem tem como objetivo a purificação, como em substituição às confissões religiosas. Não se trata também de revelar o oculto, de dizer o não-dito, mas captar o já dito; reunir o que se pode ouvir e ler, apenas para a constituição de si. Esses discursos podem ser reunidos em espécies de cadernetas e anotações para consultar e refletir sempre que necessário. São para ser usados cotidianamente, mas não no sentido de um manual de sobrevivência e de ação, é preciso que a escrita no caderno esteja já imprensa na alma do escrevente, que se modela através dele, que escreve a si mesmo na realidade e na prática.

De onde vem esses discursos se não são igualmente dispositivos de poder? Isso é o mais interessante no pensamento de Foucault. Dispositivo vem da derivação de positividade. É algo que não só alija, como também a partir do qual se cria o novo e com o qual se trava uma relação de forças. Ora, o sujeito se constitui através das práticas de sujeição e também através das práticas de liberação a partir obviamente de um certo número de regras, de estilos, de convenções que podemos encontrar no meio cultural (2006, p. 291). Por isso não se trata de um sujeito metafísico transcendental que extrai sua liberdade do além ou de si mesmo sem intervenção do meio social onde vive, há um diálogo e uma interação constante.

“A escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a askésis: ou seja, a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de ação. Como elemento de treinamento de si, a escrita tem, para utilizar uma expressão que se encontra em Plutarco, uma função etopoiética [ética e poética]: ela é operadora da transformação da verdade em êthos [caráter]” (FOUCAULT, 2006, p. 145).

A escrita além de moldar a vida como uma obra de arte (poética), também cumpre outras funções importantes. Ela propõe uma organização ao pensamento e à existência, que afasta a tribulação, a mudança repentina de opinião e de vontade, a fragilidade diante dos acontecimentos e agitação da mente. Assim, a concentração, por exemplo, dos estoicos e epicuristas que usavam desta prática no mundo greco-romano, estava voltada à ação no presente.  Com os escritos, podiam construir seu passado para o qual era possível retornar ou se afastar, enquanto o pensamento para o futuro era rejeitado, por representar insegurança e inquietude.

A correspondência por cartas também era um exercício da escrita de si. Esta atividade permitia a retrospecção de sua vida para narrar ao destinatário, como também dar conselhos dos quais se acredita levar o bem viver. Desta maneira, a carta age através da escrita tanto sobre aquele que escreve, quanto àquele que a receberá através da leitura e releitura. A prática da correspondência procura “abrir sua porta àqueles que têm a esperança de se tornarem melhores; são ofícios recíprocos. Quem ensina se instrui” (p. 153). Esse exercício de correspondência configura que a prática da escrita de si não é solitária e antissocial, ele é uma espécie de treino amistoso entre lutadores. Porém, não se trata de levar tais conselhos ao pé da letra ou apreendê-los em sua totalidade, o cuidado de si pressupõe que se reúnam após uma reflexão criteriosa as proposições julgadas válidas para o contorno de sua própria vida. “É uma escolha de elementos heterogêneos. Nisto, ela se opõe ao trabalho do gramático que procura conhecer uma obra em sua totalidade ou todas as obras do autor. Pouco importa, diz Epícteto, que se tenha apreendido exatamente aquilo que eles quiseram dizer, e que se seja capaz de reconstituir o conjunto de sua argumentação” (p. 151).

Acima de tudo, a prática de liberdade mediada pela escrita entre os gregos e os romanos pode ser entendida como uma provocação ácida aos historiadores pretensiosos de reconstruir o passado em sua integridade, de prender-se como numa camisa-de-força a uma dada teoria metodológica, de dizer o que nunca foi dito e de querer compreender os mínimos detalhes da obra de um autor como se fosse a tentativa de ter o direito reconhecido de poder falar em nome do ilustre falecido que se pesquisa.



FOUCAULT, M. A escrita de si [1983]. In:______. Ética, sexualidade e política: Ditos e escritos, vol. 5. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 144-162.
FOUCAULT, M. Uma estética da existência [1984]. In:______. Ética, sexualidade e política: Ditos e escritos, vol. 5. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 288-293.

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