A liberdade do outro estende a minha ao infinito.
Mikhail Bakunin
Há muitos significados que dão conteúdo ao vocábulo
“História”. Mas eu gosto particularmente de um que é apresentado por Jacques
Rancière (1994). Ele diz que a história é feita na medida em que palavras e
noções antigas (às vezes soterradas) são novamente postas em circulação no
presente, provocando uma redistribuição dos papéis sociais ao alterar nossas
maneiras de ver, sentir e enunciar o mundo e as coisas. Significa que história
é uma coisa rara. Que não se trata de uma sucessão de fatos que pode servir às
narrações. Nem de um determinado contexto conjuntural ou estrutural que pode
servir às descrições. A história sob este sentido tão particular refere-se,
antes, a um entrecruzamento de temporalidades e não a uma continuidade. Um
pedacinho de passado submerge no presente, interagindo com este e tornando-o (tão
mais) vivo e diferente. É como se tivessem enterrado uma lanterna 1876 e, 138
anos depois, nós a desenterrássemos, agora, em 2014; e ela emitisse uma luz,
que é do passado, mas que ilumina coisas do presente, mostrando-as de uma forma
que nunca as vimos antes. Esse é o entrecruzamento de temporalidades produtor
de história.
Usei este trololó filosófico todo para falar da atualidade
de Bakunin e do anarquismo. Circula pela imprensa do país que a polícia incluiu o nome de Bakunin no inquérito contra ativistas (alguns anarquistas!) no Rio de Janeiro. Pelo
visto esta é uma homenagem da polícia brasileira ao bicentenário do nascimento
do anarquista russo. No próximo novembro, haverá um Colóquio Internacional no Brasil cuja
temática é a Associação Internacional dos Trabalhadores e Mikhail Bakunin. Não
sou da organização, mas estão todos convidados. Bakunin costuma receber bem os
amigos... e até os inimigos. Isto se deve ao fato de ter sido ele hóspede de
tantos anfitriões desde que partiu fugido da Rússia, em 1839, para morar na
Alemanha e depois percorrer toda a Europa tentando espalhar revolução por onde
passava.
Nascido no extremo oeste russo, em 1814,
Mikhail Aleksandrovitch Bakunin era um dos sete filhos de uma família
aristocrata proprietária de terras. Seu pai era doutor em filosofia e admirador
das ideias liberais, embora apoiasse o czarismo. Na infância Mikhail recebeu
uma educação de nobre, aprendendo pelo menos quatro idiomas. Foi enviado para o
exército quando jovem. Mas sua indisciplina e seu amor pelos livros não
encontraram conciliação com a carreira militar. Após fingir uma doença,
finalmente conseguiu ser dispensado, conforme conta George Woodcock (2007, p.
165). Foi Aleksandr Herzen quem introduziu Bakunin ao radicalismo político da
filosofia e foi também ele quem lhe emprestou dinheiro para sua viagem a
Alemanha. Lá concluiu seus estudos filosóficos e conheceu as obras de Weitling
e Proudhon (importantes filósofos para sua formação intelectual, bem como,
anteriormente, Hegel e Fichte). A partir de 1848, com emergência da Primavera dos Povos, Bakunin se integrou às frentes de luta política que ocorriam por
toda a Europa. A época vivia um ambiente de agitação política relacionado à
grande depressão industrial de 1840. Após uma das rebeliões (em Dresden em
1849), Bakunin foi preso e rodou cadeias da Saxônia e da Áustria até ser
mandando para a famosa fortaleza russa de Pedro-e-Paulo, onde contraiu
escorbuto e perdeu seus dentes. Conseguiu exílio do czar em 1857, e até 1961 ficou
na Sibéria, quando então fugiu em direção ao Japão num navio americano. Daí foi
para Londres. O exílio e as prisões debilitaram a saúde de Bakunin, mas suas
ideias permaneciam ainda mais fortes, era o que ele mesmo dizia. Estava de
volta à luta revolucionária! Na Europa passou uma longa fase na Itália
participando de ligas e círculos de luta política; e amadurecendo suas ideias,
que se tornariam anarquistas a partir de meados da década de 60 (a isto se deve
também seus muitos encontros com Proudhon, em Paris, pouco antes do parceiro
anarquista morrer). Em 1868, Bakunin é integrado à Associação Internacional dos
Trabalhadores. Já em 1864, Marx havia lhe convidado pessoalmente a participar,
contudo, a importância de tal associação se deu somente depois do segundo
congresso, ocorrido em 1867, e da greve geral do ano posterior em Genebra. Dentro
da AIT é que se desenrolarão os conflitos entre socialistas libertários (de
onde sairão futuramente conhecidos como “anarquistas”) e socialistas marxistas (chamados
de “autoritários” por aqueles). Conto parte destas disputas em Cartas contra Bakunin [clique no azul para ler].
Bakunin morre em 1876. Com o envelhecimento
precoce nas prisões, o cansaço e a desilusão das lutas políticas, ele havia se
“aposentado” três anos antes. Na carta que enviou a federação que participava,
ele dizia: “Não me sinto mais com as forças necessárias para a luta: seria,
pois, no campo do proletariado, um estorvo, não uma ajuda. [...] Continuarei
seguindo com ansiedade fraterna todos os vossos passos e saudarei com alegria
cada um dos vossos novos triunfos. Até a morte serei vosso” (citado por
GUILLAUME, 2006, p. 34). Coitado! Ele pensava que era só até morte. É sabido
que Bakunin não foi um grande teórico do anarquismo. Era um homem muito mais
prático. Talvez lhe faltasse concentração. Talvez o preocupasse o fato de estar
escrevendo no momento em que a revolução se irrompesse. Tem-se escrito que ele
era um homem de ímpeto. Um gigante, muito alto e gordo, que nem tinha tempo de
preocupar-se com sua aparência, porque era mesmo afobado, imediatista. Que
convencia os outros mais pela imponência e pela oratória do que pela
argumentação elaborada. Mas, neste último caso, se comete alguma injustiça.
Bakunin, embora não tenha produzido uma obra teórica, nos deixou escritos fundamentados
e inteligentes. Tanto é que seu legado vive até hoje. Aproveito este espaço
para discorrer brevemente sobre um dos conceitos mais interessantes em Bakunin,
a liberdade.
Rejeitando a metafísica, a liberdade para
Bakunin é sempre coletiva, social, partilhada e construída através das
condições materiais do ser humano e de seu ambiente. A noção de liberdade em
Bakunin é produzida em contraponto a Jean-Jacques Rousseau. Haja vista que o
russo discorda deste quando afirma que não há liberdade no suposto estado de
natureza (do qual muita gente crê que representa fielmente a anarquia. Pois
bem, pode ser que se refira a um certo sentido de anarquia, mas não a
“anarquia” segundo anarquistas como Bakunin). Não há liberdade no estado de natureza
simplesmente porque neste momento não há humanidade, não há ainda sociedade, a
espécie humana em solidão não passa de um animal, um macaco que sequer possui
linguagem. A liberdade é necessariamente uma positividade. Ela está envolvida
numa relação de elementos culturais que se somam e se expandem. Ao vincular
pensamento e palavra, o filósofo diz que as palavras são produzidas pela
comunicação que naturalmente só pode ser feita entre dois ou mais indivíduos.
Desta forma, um indivíduo solitário, isto é, sem contato com os demais, não tem
a possibilidade de realizar sua humanidade, culturalmente falando, e, tampouco,
sua liberdade no mundo, uma vez que suas faculdades intelectuais e morais são
interrompidas. Para ser livre o homem precisa, primeiro, conhecer a natureza
que o criou, para também, conhecer a si mesmo.
Ao se conhecer, o ser humano se torna livre se
emancipando e emancipando (se necessário, instigando revolta e crítica) os
outros homens e mulheres, seus irmãos. Aqui aparece outro aspecto da liberdade
em Bakunin, a igualdade social. Não é possível que eu seja livre em uma
sociedade que não é livre, onde há pessoas que não são livres. O indivíduo só
se conscientiza de sua humanidade e conquista sua liberdade através dos
esforços de todos os membros passados e presentes de sua sociedade,
completando-se com outros indivíduos que o cercam, graças ao trabalho (no
sentido de todas as realizações materiais que transformam a natureza) e força
coletiva. A sociedade não diminui ou limita, pelo contrário, cria a liberdade
dos indivíduos. A liberdade do outro estende a minha ao infinito, aponta
Bakunin (1975, p. 14).
O anarquista disserta sobre as dependências
sociais inerentes as quais o homem está ligado. O homem “não nasceu livre, mas
acorrentado, produto de um meio social particular criado por uma longa série de
influências passadas, por desenvolvimentos e factos históricos. Está marcado
pela região, o clima, o tipo étnico, a classe a que pertence, as condições
econômicas e políticas da sua vida social e, finalmente, pelo local, cidade ou
aldeia, pela casa, pela família e vizinhança, em que nasceu” (1975, p. 12-13).
Ademais, ele aponta que este é um tipo de pressão quase imperceptível, pois,
desde o nascimento, bastante contínua e sutil. Para que o indivíduo se revolte
contra estas condições ele terá que revoltar-se, em parte, contra ele próprio,
contra suas tendências, aspirações materiais, intelectuais e morais, já que ele
é um produto da sociedade. Mais do que isso, é importante conhecer as pessoas
que te cercam, tendo em vista que a sua individualidade está relacionada à
deles. “Mesmo que eu queria ser livre, não posso, porque a minha volta ainda
nenhum homem quer ser livre e não o querendo, eles transformam-se contra mim,
em instrumentos de opressão” (1975, p. 21).
De todo modo, Bakunin não vê problema na
característica da sociedade exercer coerção, não havendo sentido em se revoltar
contra seu formato, assim como não faz sentido se revoltar contra a natureza. O
alvo de transformação são as instituições dentro do tecido social (como a
Estado, a Igreja e o sistema econômico) que produzem o culto divino, a
autoridade, a mentira, o privilégio, a exploração, a corrupção e outros males.
É preciso primeiro moralizar a sociedade, ele diz (p. 21). E para isso
acontecer, somente com uma revolução social. A atual configuração da sociedade
produz os crimes em vez de reprimi-los, impele os indivíduos a serem imorais e
autoritários. Enquanto uma sociedade anárquica, organizada de baixo para cima,
federalizada, criará condições propícias para, ao contrário do que ocorre, os
indivíduos serem cada vez mais solidários e livres. É por esta razão que
Bakunin não vê problema no fato de uma sociedade exercer coerção sobre seus
membros, a questão é que tipo de coerção. Assim ele escreve: “A única
autoridade grande e toda-poderosa e ao mesmo tempo natural e racional, a única
que nós podemos respeitar, será a do espírito coletivo e público duma sociedade
fundada na igualdade e na solidariedade, assim como na liberdade e no respeito
humano e mútuo de todos os seus membros” (p. 19). Importante atentar para a
palavra “natural”, pois os anarquistas do séc. 19 repisam o argumento de que a
anarquia é uma adequação à natureza e, por isso, querem o fim do Estado e de
instituições que exercem influências “artificiais” e que são intermediárias
entre os indivíduos.
Ressalto ainda que Bakunin não gosta nem um
pouco da ideia de “contrato social” que, segundo Rousseau, retiraria uma
parcela de liberdade dos indivíduos para garantir seu restante. Isto porque a
liberdade para Bakunin é radical e integral ou não é nada. O máximo que o
contrato pode fazer é produzir segurança em detrimento da liberdade. Pois este
“pouco” de liberdade que ele retira é essencial. Seria um contrassenso tentar
proteger a liberdade restringindo-a. Atualmente temos assistido a prisão de
ativistas aparecendo lado a lado com discursos de defesa dos “interesses
coletivos da maioria” (pois os manifestantes não representariam o povo), de que
“não há motivos para se protestar num Estado democrático de direito” e de que
“protesto se faz nas urnas”. Para os emissores destes discursos, Bakunin
escreve com uma atualidade implacável: “Mas o Estado, dir-se-á, o Estado
democrático, baseado no sufrágio livre de todos os cidadãos, não poderia ser a
negação da liberdade destes. E porque não? Isso dependerá absolutamente da
missão e do poder que os cidadãos delegarem ao Estado. Um Estado republicano,
baseado no sufrágio universal, poderá ser muito despótico, mesmo mais despótico
do que o Estado monárquico, logo que sob o pretexto de representar a vontade de
toda a gente, ele esmague a vontade e o movimento livre de cada um dos seus
membros, com todo o peso do seu poder coletivo. É em nome desta ficção a que se
chama, tantas vezes, interesse coletivo, direito colectivo ou vontade e liberdade
colectivas, que os absolutistas jacobinos, os revolucionários da escola de
J.-J. Rousseau e de Robespierre, proclamam a terrível e desumana teoria do
direito absoluto do Estado” (1975, p. 27).
Para finalizar, gostaria de voltar à contemporaneidade do
anarquismo. O esgotamento do marxismo, acompanhado pela derrocada do socialismo
estatista, as seguidas depressões e crises sofridas pelo capitalismo pós-industrial
e o descontentamento da população mundial com as atuais formas de governo e de
representação política não são senão as previsões de futuro que os anarquistas
desde o século 19 alardeavam. No plano teórico o anarquismo é hoje um
importante referencial para se compreender a sociedade, os poderes, os
indivíduos e as instituições. É verdade que os autores ainda pareçam por demais
otimistas e ingênuos a nossos olhos (contaminados de realismo pessimista) quando
apresentam suas propostas de um mundo diferente. Mas como ferramenta de
crítica, eles são quase impecáveis. No plano prático, depois de a crise mundial
de 2008, pipocam no mundo todo inúmeros grupos que se distanciam cada vez mais
do formato do partido e de militância hierarquizada antes tão comum. E com esta
nova realidade aparece a dificuldade da repressão atuar. Isso ficou nítido no
processo contra os ativistas que participaram das manifestações desde junho do
ano passado no Brasil. Não há um centro ou uma liderança. Algumas pessoas, que
a justiça brasileira insiste em aglutinar em uma organização, nem ao menos se
conhecem. E ainda sobre esse inquérito, se engana quem pensa que o nome do
anarquista aparece como inspiração política ou instrução tática às
manifestações, ele é um dos suspeitos mesmo. E, convenhamos, Bakunin é culpado.
É ele (e tantos outros) que alimenta os sonhos de gerações que acreditam que
uma sociedade mais livre e igual é questão de vontade. Com efeito, o maior
crime do russo Mikhail Bakunin foi esse, o de ter nutrido em nós
a esperança de um mundo melhor.
Lembram do que eu disse sobre um certo significado de “História”
no início do post? Lembram do objeto que utilizei na metáfora? Pois é. “A Lanterna”
era o nome também de um jornal anarquista que circulou na primeira metade do
século 20, aqui no Brasil. Quem sabe o anarquismo seja uma lanterna que
acabamos de desenterrar e que nos ajudará a enxergar de maneira nova o
presente, iluminando o caminho para novos horizontes. A força desta luz é a
possibilidade da história ser feita. Talvez assim Bakunin possa finalmente descansar
em paz ao, assim que realizado aquele objetivo com sua ajuda, darmos então o
sentido mais comum ao vocábulo “História”, aquele de honrar os mortos
escrevendo uma narrativa redentora. Enfim o russo poderá ser livre. E nós
também. Já que a sua liberdade estende a nossa até o infinito.
Referências:
BAKUNINE. Conceito de
liberdade. Tradução Jorge Dessa. Porto, Portugal: Edições RES limitada,
1975.
BAKUNIN, Mikhail. Textos
anarquistas. Notas e seleção de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, 2006.
RANCIÈRE, Jacques. Os
nomes da história: um ensaio de poética do saber. São Paulo: EDUC/Pontes,
1994.
WOODCOCK, George. História das ideias e dos movimentos anarquistas, vol. I: a ideia.
Porto Alegre: L&PM, 2007.
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