quinta-feira, 31 de julho de 2014

Liberdade para Bakunin (!)

A liberdade do outro estende a minha ao infinito.
 Mikhail Bakunin


Há muitos significados que dão conteúdo ao vocábulo “História”. Mas eu gosto particularmente de um que é apresentado por Jacques Rancière (1994). Ele diz que a história é feita na medida em que palavras e noções antigas (às vezes soterradas) são novamente postas em circulação no presente, provocando uma redistribuição dos papéis sociais ao alterar nossas maneiras de ver, sentir e enunciar o mundo e as coisas. Significa que história é uma coisa rara. Que não se trata de uma sucessão de fatos que pode servir às narrações. Nem de um determinado contexto conjuntural ou estrutural que pode servir às descrições. A história sob este sentido tão particular refere-se, antes, a um entrecruzamento de temporalidades e não a uma continuidade. Um pedacinho de passado submerge no presente, interagindo com este e tornando-o (tão mais) vivo e diferente. É como se tivessem enterrado uma lanterna 1876 e, 138 anos depois, nós a desenterrássemos, agora, em 2014; e ela emitisse uma luz, que é do passado, mas que ilumina coisas do presente, mostrando-as de uma forma que nunca as vimos antes. Esse é o entrecruzamento de temporalidades produtor de história.

Usei este trololó filosófico todo para falar da atualidade de Bakunin e do anarquismo. Circula pela imprensa do país que a polícia incluiu o nome de Bakunin no inquérito contra ativistas (alguns anarquistas!) no Rio de Janeiro. Pelo visto esta é uma homenagem da polícia brasileira ao bicentenário do nascimento do anarquista russo. No próximo novembro, haverá um Colóquio Internacional no Brasil cuja temática é a Associação Internacional dos Trabalhadores e Mikhail Bakunin. Não sou da organização, mas estão todos convidados. Bakunin costuma receber bem os amigos... e até os inimigos. Isto se deve ao fato de ter sido ele hóspede de tantos anfitriões desde que partiu fugido da Rússia, em 1839, para morar na Alemanha e depois percorrer toda a Europa tentando espalhar revolução por onde passava.

Nascido no extremo oeste russo, em 1814, Mikhail Aleksandrovitch Bakunin era um dos sete filhos de uma família aristocrata proprietária de terras. Seu pai era doutor em filosofia e admirador das ideias liberais, embora apoiasse o czarismo. Na infância Mikhail recebeu uma educação de nobre, aprendendo pelo menos quatro idiomas. Foi enviado para o exército quando jovem. Mas sua indisciplina e seu amor pelos livros não encontraram conciliação com a carreira militar. Após fingir uma doença, finalmente conseguiu ser dispensado, conforme conta George Woodcock (2007, p. 165). Foi Aleksandr Herzen quem introduziu Bakunin ao radicalismo político da filosofia e foi também ele quem lhe emprestou dinheiro para sua viagem a Alemanha. Lá concluiu seus estudos filosóficos e conheceu as obras de Weitling e Proudhon (importantes filósofos para sua formação intelectual, bem como, anteriormente, Hegel e Fichte). A partir de 1848, com emergência da Primavera dos Povos, Bakunin se integrou às frentes de luta política que ocorriam por toda a Europa. A época vivia um ambiente de agitação política relacionado à grande depressão industrial de 1840. Após uma das rebeliões (em Dresden em 1849), Bakunin foi preso e rodou cadeias da Saxônia e da Áustria até ser mandando para a famosa fortaleza russa de Pedro-e-Paulo, onde contraiu escorbuto e perdeu seus dentes. Conseguiu exílio do czar em 1857, e até 1961 ficou na Sibéria, quando então fugiu em direção ao Japão num navio americano. Daí foi para Londres. O exílio e as prisões debilitaram a saúde de Bakunin, mas suas ideias permaneciam ainda mais fortes, era o que ele mesmo dizia. Estava de volta à luta revolucionária! Na Europa passou uma longa fase na Itália participando de ligas e círculos de luta política; e amadurecendo suas ideias, que se tornariam anarquistas a partir de meados da década de 60 (a isto se deve também seus muitos encontros com Proudhon, em Paris, pouco antes do parceiro anarquista morrer). Em 1868, Bakunin é integrado à Associação Internacional dos Trabalhadores. Já em 1864, Marx havia lhe convidado pessoalmente a participar, contudo, a importância de tal associação se deu somente depois do segundo congresso, ocorrido em 1867, e da greve geral do ano posterior em Genebra. Dentro da AIT é que se desenrolarão os conflitos entre socialistas libertários (de onde sairão futuramente conhecidos como “anarquistas”) e socialistas marxistas (chamados de “autoritários” por aqueles). Conto parte destas disputas em Cartas contra Bakunin [clique no azul para ler].

Bakunin morre em 1876. Com o envelhecimento precoce nas prisões, o cansaço e a desilusão das lutas políticas, ele havia se “aposentado” três anos antes. Na carta que enviou a federação que participava, ele dizia: “Não me sinto mais com as forças necessárias para a luta: seria, pois, no campo do proletariado, um estorvo, não uma ajuda. [...] Continuarei seguindo com ansiedade fraterna todos os vossos passos e saudarei com alegria cada um dos vossos novos triunfos. Até a morte serei vosso” (citado por GUILLAUME, 2006, p. 34). Coitado! Ele pensava que era só até morte. É sabido que Bakunin não foi um grande teórico do anarquismo. Era um homem muito mais prático. Talvez lhe faltasse concentração. Talvez o preocupasse o fato de estar escrevendo no momento em que a revolução se irrompesse. Tem-se escrito que ele era um homem de ímpeto. Um gigante, muito alto e gordo, que nem tinha tempo de preocupar-se com sua aparência, porque era mesmo afobado, imediatista. Que convencia os outros mais pela imponência e pela oratória do que pela argumentação elaborada. Mas, neste último caso, se comete alguma injustiça. Bakunin, embora não tenha produzido uma obra teórica, nos deixou escritos fundamentados e inteligentes. Tanto é que seu legado vive até hoje. Aproveito este espaço para discorrer brevemente sobre um dos conceitos mais interessantes em Bakunin, a liberdade.

Rejeitando a metafísica, a liberdade para Bakunin é sempre coletiva, social, partilhada e construída através das condições materiais do ser humano e de seu ambiente. A noção de liberdade em Bakunin é produzida em contraponto a Jean-Jacques Rousseau. Haja vista que o russo discorda deste quando afirma que não há liberdade no suposto estado de natureza (do qual muita gente crê que representa fielmente a anarquia. Pois bem, pode ser que se refira a um certo sentido de anarquia, mas não a “anarquia” segundo anarquistas como Bakunin). Não há liberdade no estado de natureza simplesmente porque neste momento não há humanidade, não há ainda sociedade, a espécie humana em solidão não passa de um animal, um macaco que sequer possui linguagem. A liberdade é necessariamente uma positividade. Ela está envolvida numa relação de elementos culturais que se somam e se expandem. Ao vincular pensamento e palavra, o filósofo diz que as palavras são produzidas pela comunicação que naturalmente só pode ser feita entre dois ou mais indivíduos. Desta forma, um indivíduo solitário, isto é, sem contato com os demais, não tem a possibilidade de realizar sua humanidade, culturalmente falando, e, tampouco, sua liberdade no mundo, uma vez que suas faculdades intelectuais e morais são interrompidas. Para ser livre o homem precisa, primeiro, conhecer a natureza que o criou, para também, conhecer a si mesmo.

Ao se conhecer, o ser humano se torna livre se emancipando e emancipando (se necessário, instigando revolta e crítica) os outros homens e mulheres, seus irmãos. Aqui aparece outro aspecto da liberdade em Bakunin, a igualdade social. Não é possível que eu seja livre em uma sociedade que não é livre, onde há pessoas que não são livres. O indivíduo só se conscientiza de sua humanidade e conquista sua liberdade através dos esforços de todos os membros passados e presentes de sua sociedade, completando-se com outros indivíduos que o cercam, graças ao trabalho (no sentido de todas as realizações materiais que transformam a natureza) e força coletiva. A sociedade não diminui ou limita, pelo contrário, cria a liberdade dos indivíduos. A liberdade do outro estende a minha ao infinito, aponta Bakunin (1975, p. 14).

O anarquista disserta sobre as dependências sociais inerentes as quais o homem está ligado. O homem “não nasceu livre, mas acorrentado, produto de um meio social particular criado por uma longa série de influências passadas, por desenvolvimentos e factos históricos. Está marcado pela região, o clima, o tipo étnico, a classe a que pertence, as condições econômicas e políticas da sua vida social e, finalmente, pelo local, cidade ou aldeia, pela casa, pela família e vizinhança, em que nasceu” (1975, p. 12-13). Ademais, ele aponta que este é um tipo de pressão quase imperceptível, pois, desde o nascimento, bastante contínua e sutil. Para que o indivíduo se revolte contra estas condições ele terá que revoltar-se, em parte, contra ele próprio, contra suas tendências, aspirações materiais, intelectuais e morais, já que ele é um produto da sociedade. Mais do que isso, é importante conhecer as pessoas que te cercam, tendo em vista que a sua individualidade está relacionada à deles. “Mesmo que eu queria ser livre, não posso, porque a minha volta ainda nenhum homem quer ser livre e não o querendo, eles transformam-se contra mim, em instrumentos de opressão” (1975, p. 21).

De todo modo, Bakunin não vê problema na característica da sociedade exercer coerção, não havendo sentido em se revoltar contra seu formato, assim como não faz sentido se revoltar contra a natureza. O alvo de transformação são as instituições dentro do tecido social (como a Estado, a Igreja e o sistema econômico) que produzem o culto divino, a autoridade, a mentira, o privilégio, a exploração, a corrupção e outros males. É preciso primeiro moralizar a sociedade, ele diz (p. 21). E para isso acontecer, somente com uma revolução social. A atual configuração da sociedade produz os crimes em vez de reprimi-los, impele os indivíduos a serem imorais e autoritários. Enquanto uma sociedade anárquica, organizada de baixo para cima, federalizada, criará condições propícias para, ao contrário do que ocorre, os indivíduos serem cada vez mais solidários e livres. É por esta razão que Bakunin não vê problema no fato de uma sociedade exercer coerção sobre seus membros, a questão é que tipo de coerção. Assim ele escreve: “A única autoridade grande e toda-poderosa e ao mesmo tempo natural e racional, a única que nós podemos respeitar, será a do espírito coletivo e público duma sociedade fundada na igualdade e na solidariedade, assim como na liberdade e no respeito humano e mútuo de todos os seus membros” (p. 19). Importante atentar para a palavra “natural”, pois os anarquistas do séc. 19 repisam o argumento de que a anarquia é uma adequação à natureza e, por isso, querem o fim do Estado e de instituições que exercem influências “artificiais” e que são intermediárias entre os indivíduos.

Ressalto ainda que Bakunin não gosta nem um pouco da ideia de “contrato social” que, segundo Rousseau, retiraria uma parcela de liberdade dos indivíduos para garantir seu restante. Isto porque a liberdade para Bakunin é radical e integral ou não é nada. O máximo que o contrato pode fazer é produzir segurança em detrimento da liberdade. Pois este “pouco” de liberdade que ele retira é essencial. Seria um contrassenso tentar proteger a liberdade restringindo-a. Atualmente temos assistido a prisão de ativistas aparecendo lado a lado com discursos de defesa dos “interesses coletivos da maioria” (pois os manifestantes não representariam o povo), de que “não há motivos para se protestar num Estado democrático de direito” e de que “protesto se faz nas urnas”. Para os emissores destes discursos, Bakunin escreve com uma atualidade implacável: “Mas o Estado, dir-se-á, o Estado democrático, baseado no sufrágio livre de todos os cidadãos, não poderia ser a negação da liberdade destes. E porque não? Isso dependerá absolutamente da missão e do poder que os cidadãos delegarem ao Estado. Um Estado republicano, baseado no sufrágio universal, poderá ser muito despótico, mesmo mais despótico do que o Estado monárquico, logo que sob o pretexto de representar a vontade de toda a gente, ele esmague a vontade e o movimento livre de cada um dos seus membros, com todo o peso do seu poder coletivo. É em nome desta ficção a que se chama, tantas vezes, interesse coletivo, direito colectivo ou vontade e liberdade colectivas, que os absolutistas jacobinos, os revolucionários da escola de J.-J. Rousseau e de Robespierre, proclamam a terrível e desumana teoria do direito absoluto do Estado” (1975, p. 27).

Para finalizar, gostaria de voltar à contemporaneidade do anarquismo. O esgotamento do marxismo, acompanhado pela derrocada do socialismo estatista, as seguidas depressões e crises sofridas pelo capitalismo pós-industrial e o descontentamento da população mundial com as atuais formas de governo e de representação política não são senão as previsões de futuro que os anarquistas desde o século 19 alardeavam. No plano teórico o anarquismo é hoje um importante referencial para se compreender a sociedade, os poderes, os indivíduos e as instituições. É verdade que os autores ainda pareçam por demais otimistas e ingênuos a nossos olhos (contaminados de realismo pessimista) quando apresentam suas propostas de um mundo diferente. Mas como ferramenta de crítica, eles são quase impecáveis. No plano prático, depois de a crise mundial de 2008, pipocam no mundo todo inúmeros grupos que se distanciam cada vez mais do formato do partido e de militância hierarquizada antes tão comum. E com esta nova realidade aparece a dificuldade da repressão atuar. Isso ficou nítido no processo contra os ativistas que participaram das manifestações desde junho do ano passado no Brasil. Não há um centro ou uma liderança. Algumas pessoas, que a justiça brasileira insiste em aglutinar em uma organização, nem ao menos se conhecem. E ainda sobre esse inquérito, se engana quem pensa que o nome do anarquista aparece como inspiração política ou instrução tática às manifestações, ele é um dos suspeitos mesmo. E, convenhamos, Bakunin é culpado. É ele (e tantos outros) que alimenta os sonhos de gerações que acreditam que uma sociedade mais livre e igual é questão de vontade. Com efeito, o maior crime do russo Mikhail Bakunin foi esse, o de ter nutrido em nós a esperança de um mundo melhor.

Lembram do que eu disse sobre um certo significado de “História” no início do post? Lembram do objeto que utilizei na metáfora? Pois é. “A Lanterna” era o nome também de um jornal anarquista que circulou na primeira metade do século 20, aqui no Brasil. Quem sabe o anarquismo seja uma lanterna que acabamos de desenterrar e que nos ajudará a enxergar de maneira nova o presente, iluminando o caminho para novos horizontes. A força desta luz é a possibilidade da história ser feita. Talvez assim Bakunin possa finalmente descansar em paz ao, assim que realizado aquele objetivo com sua ajuda, darmos então o sentido mais comum ao vocábulo “História”, aquele de honrar os mortos escrevendo uma narrativa redentora. Enfim o russo poderá ser livre. E nós também. Já que a sua liberdade estende a nossa até o infinito.

Referências:
BAKUNINE. Conceito de liberdade. Tradução Jorge Dessa. Porto, Portugal: Edições RES limitada, 1975.
BAKUNIN, Mikhail. Textos anarquistas. Notas e seleção de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, 2006.
RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da história: um ensaio de poética do saber. São Paulo: EDUC/Pontes, 1994.
WOODCOCK, George. História das ideias e dos movimentos anarquistas, vol. I: a ideia. Porto Alegre: L&PM, 2007.  
___________

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Real Time Analytics