quarta-feira, 6 de junho de 2012

Anarquia made in USA

Complementando o texto "O homem que venderá o mundo", neste post procurarei expor as críticas do anarco-capitalista David Friedman ao Estado. Também vou aproveitar a oportunidade para abordar algumas ideias presentes no livro Anarquia, Estado e Utopia [1974] de Robert Nozick, ex-professor de filosofia da Universidade de Havard e um destacado teórico político do libertarianismo da terra do Tio Sam.

A defesa da anarquia capitalista de Friedman se assenta diretamente na crítica contumaz do Estado e do governo. O autor define o governo como uma “agência de coerção legitimada”, similar a outras organizações criminosas que existem no interior do Estado. A única diferença é que a máquina estatal tem garantido o exercício da violência e da coerção através da aceitação da maioria da população. Podemos fazer uma comparação com a máfia que age nas brechas do Estado ou que possui parceria velada com determinados governantes. Um exemplo é o “poder paralelo” de facções criminosas que atuam em favelas e que desenvolvem corporações específicas, como o caso do PCC no Brasil. Sabe-se que o PCC possui um código de regras para quem deseja filiar-se ao “partido”. Ao assinar este contrato o membro tem garantido uma série de privilégios e de benefícios. Como, por exemplo, o direito de sua família receber uma determinada quantia financeira caso ele vá preso e não possa cumprir suas funções lucrativas dentro da cadeia. Entretanto, ele é obrigado a arcar com os “impostos mensais” e seguir regras de conduta acordadas assim que se une a “corporação”. Ou seja, este contrato assegura direitos e deveres assim como funciona sob o Estado moderno. Contudo, o PCC, embora seja uma organização criminosa, em tese não age de maneira coerciva contra aqueles que não queiram participar da facção. Já o Estado, não. Obriga a todos, que vivem no mesmo território, a obedecerem as suas regras, mesmo que não tenham assinado nenhum tipo de contrato prévio, tampouco queiram receber os benefícios que a arrecadação fiscal presume redistribuir.

Nozick concorda com Friedman. O Estado é imoral e ilegal. Para Nozick, ele é imoral porque no caso da redistribuição de impostos, ele usa o indivíduo como um instrumento utilitário para o “bem de todos”, quando na verdade, está fazendo este serviço apenas em benefício dos governantes, segundo Friedman. Nozick diz que o Estado (de Rawls), alargado e social, não leva em consideração a autopropriedade e a justiça histórica, mas apenas age pensando num pragmatismo teleológico baseado no “fim em si mesmo”. Já Friedman, compara a Receita Federal com o ladrão, por tomar seu dinheiro sem que ele aceite. Ele diz que não é justificável o argumento que é um mal para seu bem no futuro, pois é como se um ladrão roubasse seu dinheiro e prometesse lhe devolver futuramente em pequenas parcelas; portanto, para que este serviço seja legal é preciso que o cidadão queira. Essa crítica de Friedman à Receita Federal lembra a de Proudhon, quando o último disse que aquele que cercou um pedaço de terra e disse que era seu, sem nada nele prover, estava cometendo um roubo.

Nesta mesma linha, que direciona a crítica à coação estatal, Friedman ataca a obrigatoriedade do serviço militar: “Imagine que um empregador privado, oferecendo baixos salários e longas horas de trabalho desagradável, não conseguiu encontrar trabalhadores suficientes e solucionou o problema escolhendo homens aleatoriamente e ameaçando prendê-los caso se recusassem a trabalhar para ele. Ele seria indiciado por sequestro e extorsão e absolvido por insanidade. É exatamente assim que o governo contrata pessoas para lutarem uma guerra ou participarem de um júri” (FRIEDMAN, 1973, p. 92).

Assim como os anarquistas clássicos, Friedman advoga que a anarquia não é o caos. Ele acredita numa espécie de “encaixe” de interesses entre os homens (à maneira de Smith). Os fatos cotidianos acontecem de maneira espontânea, sem atuação do governo, isso mostra que não é necessário o uso da força para que a vida se desenvolva de uma maneira relativamente harmônica. É possível a substituição do governo por formas de cooperação, entre os indivíduos, estabelecidas por acordos privados que cumpririam somente as funções indispensáveis que o Estado exerce atualmente. Numa sociedade libertária, do ideal friedmaniano, cada pessoa é livre para fazer o que bem entender consigo e sua propriedade desde que não use nenhuma das duas para iniciar a força contra outros.

Nozick (na imagem ao lado), embora não deixe explícito, entende essa sociedade de Friedman não como anarquia, mas como Estado ultramínimo. Este estágio decorreria de uma consequência da anarquia, que pode ser entendida como o “estado de liberdade na natureza” de Locke. Neste “estado de natureza”, os homens dispunham de uma liberdade perfeita, estavam livres para organizar seus atos e dispor de seus bens e pessoas sem depender ou pedir licença a outro homem. Os limites da lei de natureza foram ultrapassados quando os homens prejudicaram a vida, a saúde, a liberdade ou a propriedade de outrem. Como reação, o prejudicado tinha o direito de procurar equiparação através de suas próprias forças, mas essa medida de equidade nunca foi precisa podendo ser excessiva e injusta; além disso, certos homens poderiam não dispor de força para sozinhos buscarem a restituição. Então, criaram-se associações de proteção (e a organização política caminhou para uma espécie de “Estado ultramínimo” ou muitos Estados espalhados e “competindo”), que submetem seus clientes as suas normas, punindo-os e restituindo-os conforme as leis que eles mesmos pagaram para ter. Entretanto, a disputa entre as várias associações (o monopólio das maiores) e entre os membros de associações diferentes mostraram entraves nas execuções jurídicas, até que se criou uma Associação de Proteção do Dominante, o início de um “Estado mínimo”.

O livro de Nozick quer mostrar de como da anarquia surgiu um tipo de Estado mínimo, mas sem recorrer ao argumento de que ele foi imposto pela violência. “Da anarquia gerada por grupamentos espontâneos, associações de proteção mútua, divisão de trabalho, pressão do mercado, economia de escala e auto-interesse racional surge algo que se assemelha muito a um Estado mínimo ou a um grupo de Estados mínimos geograficamente distintos” (NOZICK, 1991, p. 81).

É o Estado mínimo que Nozick defende. Ele entende que o Estado deve se restringir as funções de proteção contra a força, o roubo, a fraude e a fiscalização do cumprimento de contratos. O “Estado não pode usar sua máquina coercitiva para obrigar certos cidadãos a ajudarem uns aos outros ou proibir atividades a pessoas que desejam realiza-las para seu próprio bem ou proteção” (p. 09). Sua argumentação parte da contraposição dos anarquistas ao Estado, assim ele escreve: “Estudo com toda seriedade alegação anarquista de que, na manutenção de seu monopólio do uso da força e da proteção de todos dentro de um território, o Estado tem que violar direitos individuais e, por conseguinte, é intrinsecamente imoral” (p. 11).

A crítica de Nozick é dirigida ao trabalho de John Rawls (em Uma teoria da justiça). O libertarianismo de Nozick rejeita o alargamento do Estado (ou Estado social) utilizando a “teoria da titularidade”, como base de justiça social: justiça na aquisição (posse no caso da ausência de um dono e a utilização desta propriedade da maneira que bem entender), justiça na transferência (herança, doação e troca – compra e venda) e retificação na justiça (direito de restituição por dano). Sobre o princípio de retificação, Nozick chega a afirmar que as terras americanas deveriam ser devolvidas aos índios, respeitando, assim, um direito consuetudinário. Entretanto, ao basear-se numa noção de justiça histórica o autor acaba vendo que sua teoria pode ser bastante alargada, embora não aceite essa possibilidade. Como, por exemplo, partindo do pressuposto de que não sabíamos quem era o verdadeiro dono da terra e ela foi adquirida por roubo ou fraude, então ela deveria ser desempossada, funcionando um socialismo (socialização dos bens e dos meios usurpados), mas ele diz que não devemos pagar tanto pelos nossos pecados. Obviamente, o filósofo – com tom de ironia – é contra o socialismo, já que defende a propriedade privada com veemência. Todavia, por ter uma sociedade fundamentada no contrato espontâneo entre os indivíduos livres, ele diz que caso queiram, os cidadãos, dentro de um “Estado mínimo não-coercitivo”, podem formar comunas ou mesmo fundarem um comunismo através dos contratos mútuos, porém não podem forçar os que não querem viver sob as mesmas regras e acordos (diferentemente da imposição do “socialismo real”).

Referências:

FRIEDMAN, David. As engrenagens da liberdade: guia para um capitalismo radical. Portal Libertarianismo Estudantes pela Liberdade. Ebook, s/d [ano da primeira publicação: 1973].
NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
ROSAS, João Cardoso. A concepção do estado em Nozick. Crítica: Revista de Filosofia, 2009. Disponível em: http://criticanarede.com/nozick.html

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