Complementando
o texto "O homem que venderá o mundo", neste post procurarei expor as críticas
do anarco-capitalista David Friedman ao Estado. Também vou aproveitar a
oportunidade para abordar algumas ideias presentes no livro Anarquia, Estado e Utopia [1974] de Robert Nozick, ex-professor de
filosofia da Universidade de Havard e um destacado teórico político do
libertarianismo da terra do Tio Sam.
A
defesa da anarquia capitalista de Friedman se assenta diretamente na crítica
contumaz do Estado e do governo. O autor define o governo como uma “agência de
coerção legitimada”, similar a outras organizações criminosas que existem no
interior do Estado. A única diferença é que a máquina estatal tem garantido o
exercício da violência e da coerção através da aceitação da maioria da
população. Podemos fazer uma comparação com a máfia que age nas brechas do
Estado ou que possui parceria velada com determinados governantes. Um exemplo é
o “poder paralelo” de facções criminosas que atuam em favelas e que desenvolvem
corporações específicas, como o caso do PCC no Brasil. Sabe-se que o PCC possui um código de regras para
quem deseja filiar-se ao “partido”. Ao assinar este contrato o membro tem
garantido uma série de privilégios e de benefícios. Como, por exemplo, o
direito de sua família receber uma determinada quantia financeira caso ele vá
preso e não possa cumprir suas funções lucrativas dentro da cadeia. Entretanto,
ele é obrigado a arcar com os “impostos mensais” e seguir regras de conduta
acordadas assim que se une a “corporação”. Ou seja, este contrato assegura
direitos e deveres assim como funciona sob o Estado moderno. Contudo, o PCC,
embora seja uma organização criminosa, em tese não age de maneira coerciva
contra aqueles que não queiram participar da facção. Já o Estado, não. Obriga a
todos, que vivem no mesmo território, a obedecerem as suas regras, mesmo que não
tenham assinado nenhum tipo de contrato prévio, tampouco queiram receber os
benefícios que a arrecadação fiscal presume redistribuir.
Nozick
concorda com Friedman. O Estado é imoral e ilegal. Para Nozick, ele é imoral
porque no caso da redistribuição de impostos, ele usa o indivíduo como um
instrumento utilitário para o “bem de todos”, quando na verdade, está fazendo
este serviço apenas em benefício dos governantes, segundo Friedman. Nozick diz que
o Estado (de Rawls), alargado e social, não leva em consideração a
autopropriedade e a justiça histórica, mas apenas age pensando num pragmatismo
teleológico baseado no “fim em si mesmo”. Já Friedman, compara a Receita Federal com o ladrão, por tomar seu dinheiro sem
que ele aceite. Ele diz que não é justificável o argumento que é um mal para
seu bem no futuro, pois é como se um ladrão roubasse seu dinheiro e prometesse
lhe devolver futuramente em pequenas parcelas; portanto, para que este serviço
seja legal é preciso que o cidadão queira. Essa crítica de Friedman à Receita
Federal lembra a de Proudhon, quando o último disse que aquele que cercou um
pedaço de terra e disse que era seu, sem nada nele prover, estava cometendo um
roubo.
Nesta
mesma linha, que direciona a crítica à coação estatal, Friedman ataca a
obrigatoriedade do serviço militar: “Imagine
que um empregador privado, oferecendo baixos salários e longas horas de
trabalho desagradável, não conseguiu encontrar trabalhadores suficientes e
solucionou o problema escolhendo homens aleatoriamente e ameaçando prendê-los
caso se recusassem a trabalhar para ele. Ele seria indiciado por sequestro e
extorsão e absolvido por insanidade. É exatamente assim que o governo contrata
pessoas para lutarem uma guerra ou participarem de um júri” (FRIEDMAN, 1973, p.
92).
Assim
como os anarquistas clássicos, Friedman advoga que a anarquia não é o caos. Ele
acredita numa espécie de “encaixe” de interesses entre os homens (à maneira de
Smith). Os fatos cotidianos acontecem de maneira espontânea, sem atuação do
governo, isso mostra que não é necessário o uso da força para que a vida se
desenvolva de uma maneira relativamente harmônica. É possível a substituição do
governo por formas de cooperação,
entre os indivíduos, estabelecidas por acordos privados que cumpririam somente
as funções indispensáveis que o Estado exerce atualmente. Numa sociedade
libertária, do ideal friedmaniano, cada pessoa é livre para fazer o que bem
entender consigo e sua propriedade desde que não use nenhuma das duas para
iniciar a força contra outros.
Nozick (na imagem ao lado),
embora não deixe explícito, entende essa sociedade de Friedman não como
anarquia, mas como Estado ultramínimo. Este estágio decorreria de uma
consequência da anarquia, que pode ser entendida como o “estado de liberdade na
natureza” de Locke. Neste “estado de natureza”, os homens dispunham de uma
liberdade perfeita, estavam livres para organizar seus atos e dispor de seus
bens e pessoas sem depender ou pedir licença a outro homem. Os limites da lei
de natureza foram ultrapassados quando os homens prejudicaram a vida, a saúde,
a liberdade ou a propriedade de outrem. Como reação, o prejudicado tinha o
direito de procurar equiparação através de suas próprias forças, mas essa
medida de equidade nunca foi precisa podendo ser excessiva e injusta; além
disso, certos homens poderiam não dispor de força para sozinhos buscarem a
restituição. Então, criaram-se associações de proteção (e a organização
política caminhou para uma espécie de “Estado ultramínimo” ou muitos Estados
espalhados e “competindo”), que submetem seus clientes as suas normas,
punindo-os e restituindo-os conforme as leis que eles mesmos pagaram para ter.
Entretanto, a disputa entre as várias associações (o monopólio das maiores) e
entre os membros de associações diferentes mostraram entraves nas execuções
jurídicas, até que se criou uma Associação
de Proteção do Dominante, o início de um “Estado mínimo”.
O
livro de Nozick quer mostrar de como da anarquia surgiu um tipo de Estado
mínimo, mas sem recorrer ao argumento de que ele foi imposto pela violência. “Da
anarquia gerada por grupamentos espontâneos, associações de proteção mútua,
divisão de trabalho, pressão do mercado, economia de escala e auto-interesse
racional surge algo que se assemelha muito a um Estado mínimo ou a um grupo de Estados mínimos geograficamente
distintos” (NOZICK, 1991, p. 81).
É
o Estado mínimo que Nozick defende. Ele entende que o Estado deve se restringir
as funções de proteção contra a força, o roubo, a fraude e a fiscalização do
cumprimento de contratos. O “Estado não pode usar sua máquina coercitiva para obrigar certos cidadãos a ajudarem
uns aos outros ou proibir atividades a pessoas que desejam realiza-las para seu
próprio bem ou proteção” (p. 09). Sua argumentação parte da contraposição dos
anarquistas ao Estado, assim ele escreve: “Estudo com toda seriedade alegação
anarquista de que, na manutenção de seu monopólio do uso da força e da proteção
de todos dentro de um território, o Estado tem que violar direitos individuais
e, por conseguinte, é intrinsecamente imoral” (p. 11).
A
crítica de Nozick é dirigida ao trabalho de John Rawls (em Uma teoria da justiça). O libertarianismo de Nozick rejeita o
alargamento do Estado (ou Estado social) utilizando a “teoria da titularidade”,
como base de justiça social: justiça na aquisição (posse no caso da ausência de
um dono e a utilização desta propriedade da maneira que bem entender), justiça
na transferência (herança, doação e troca – compra e venda) e retificação na justiça
(direito de restituição por dano). Sobre o princípio de retificação, Nozick
chega a afirmar que as terras americanas deveriam ser devolvidas aos índios,
respeitando, assim, um direito consuetudinário. Entretanto, ao basear-se numa
noção de justiça histórica o autor acaba vendo que sua teoria pode ser bastante
alargada, embora não aceite essa possibilidade. Como, por exemplo, partindo do
pressuposto de que não sabíamos quem era o verdadeiro dono da terra e ela foi
adquirida por roubo ou fraude, então ela deveria ser desempossada, funcionando um socialismo (socialização
dos bens e dos meios usurpados), mas ele diz que não devemos pagar tanto pelos
nossos pecados. Obviamente, o filósofo – com tom de ironia – é contra o
socialismo, já que defende a propriedade privada com veemência. Todavia, por
ter uma sociedade fundamentada no contrato espontâneo entre os indivíduos livres,
ele diz que caso queiram, os cidadãos, dentro de um “Estado mínimo não-coercitivo”,
podem formar comunas ou mesmo fundarem um comunismo através dos contratos
mútuos, porém não podem forçar os que não querem viver sob as mesmas regras e
acordos (diferentemente da imposição do “socialismo real”).
Referências:
FRIEDMAN,
David. As engrenagens da liberdade: guia para um capitalismo radical. Portal Libertarianismo
Estudantes pela Liberdade. Ebook, s/d [ano da primeira publicação: 1973].
NOZICK,
Robert. Anarquia, estado e utopia.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
ROSAS,
João Cardoso. A concepção do estado em
Nozick. Crítica: Revista de Filosofia, 2009. Disponível em: http://criticanarede.com/nozick.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário