É possível construirmos um conhecimento sobre o passado nos
baseando em resíduos que chegam até nós no presente? Registros, documentos,
monumentos e vestígios podem demonstrar que existiram pessoas, acontecimentos,
instituições e processos reais no passado? Estas evidências podem nos fornecer
informações relativamente precisas? Dispondo de métodos científicos, conforme
cada cultura e época, podemos transformar essas informações em conhecimento
útil para nossas vidas? O teórico literário Hayden White responderia “sim”
para todas estas questões. Então porque muitos historiadores lhes fazem
críticas tão pesadas – algumas inclusive desonestas – e rejeitam sua obra como
um material importante para o estudo da história? Embora eu tenha algumas
ressalvas às considerações de White, acredito que esse ataque à obra do teórico
se deu por um fator específico:
objeção à necessidade de pensar diferente. Sair do ritual burocrático e
reprodutivista é uma emergência não apenas na história, mas na vida. Hayden
White (e o giro-linguístico) ao colocar um desafio para o ofício do historiador,
também deu a estes profissionais uma ótima oportunidade de mudança. Mas que
desafio oportuno é esse? Nas linhas a seguir percorro algumas das questões apresentadas
no texto: Teoria literária e escrita da
história, publicado pela revista Estudos
Históricos em 1994.
A discussão sobre a presença (intrínseca) da ficção na
história não significa a impossibilidade de sabermos verdades sobre o passado.
Essa questão é dirigida a um produto específico do saber histórico: o texto historiográfico. Mais
precisamente: a narrativa que
compõe o discurso histórico. Este é o objeto de pesquisa de Hayden White. O
autor não questiona a tangibilidade da realidade histórica, mas os instrumentos
que mediam esse conhecimento. Tudo porque a história (que não é o passado
desenrolado, vivenciado e experimentado) só pode ser lida; mas, sobretudo, antes disso,
precisa ser escrita. Portanto, a re-experiência com a história é dependente do
modo diferenciado com que lidamos com a linguagem.
A problemática de White se desenrola justamente sobre o uso
que o historiador faz da linguagem como mediação para o conhecimento histórico
e para a representação do passado. A preocupação crucial de sua obra é entender
a forma, crendo que ela é indissociável e interfere de modo cabal no conteúdo.
“A linguagem nunca é um conjunto de formas vazias esperando para serem
preenchidas com um conteúdo ‘factual’ e conceitual ou para serem conectadas a
referentes [apontadores para ‘coisas’ fora do texto, segundo Saussure (2006)]
pré-existentes no mundo, mas está ela própria no mundo como uma ‘coisa’ entre
outras e já é carregada de conteúdos figurativos, tropológicos e genéricos
antes de ser atualizada numa enunciação qualquer” (WHITE, 1994, p. 27).
Portanto, a linguagem é também um produto cultural específico de cada sociedade numa dada época; permite “liberdades controladas” e possui regras próprias que são diferentes dos acontecimentos desencadeados
na realidade. Podemos entender a colocação de White como um puxão de orelha nos
historiadores (modernos) que patinaram em seu próprio terreno: ao se
preocuparem em entender a historicidade de seus “objetos de pesquisa” esqueceram, até certo ponto, de problematizarem a própria historicidade dos
meios com os quais transmitiam suas pesquisas; acreditando que a linguagem era
um meio natural e transparente tanto para a representação do passado, como para
expressão de seus pensamentos sobre os eventos narrados.
White faz uma diferenciação entre evento passado e evento
histórico (ou evento e fato). Tudo o que aconteceu é do âmbito dos eventos
passados, mas apenas o que é resgatado é histórico. No livro Meta-história,
ele chama esses eventos do passado de crônica, que seria o que o historiador
reúne e atribui mais ou menos a um acontecimento, um pertencimento, uma época e
etc. Entretanto, a conectividade entre esses eventos seria concebida através de
procedimentos discursivos, como a estória e o enredamento (processo de enredo),
que são as construções ordenadas – causa e efeito – ou relacionamentos de outro
tipo entre eles mediados por uma trama
ou gênero (estória romanesca, comédia, tragédia e sátira). Acontece que,
apesar de lidar com o conhecimento histórico, a informação sobre os eventos
históricos em si não é histórica, segundo White. São ferramentas e modos de
construção textual meta-históricos, similar as estruturas linguísticas
utilizadas numa ficção literária.
Mais do que isto, esse discurso histórico não produz
informação nova sobre o passado. Qualquer informação nova ou velha é recolhida
no trabalho prévio do historiador quando busca a verdade resgatando informações
esquecidas ou suprimidas (neste primeiro processo um ofício parecido com o do
jornalista e do detetive). Portanto, tais informações são uma pré-condição para
a existência do discurso histórico. Só que, o mais interessante, segundo White, é que os direcionamentos dos referentes para o histórico são exercidos pela
narrativa. É ela que “encanta” o texto
criando a noção de histórico, como uma máquina de girar fotogramas (princípio
do cinema) “imita” o movimento. Neste processo, a função da narratividade
mistura discurso científico e literário, literal e figurativo, sendo impossível
dissociá-los. É verdade que alguns historiadores acreditavam (e ainda
acreditam) na capacidade de distinguir o discurso factual e conceitual do linguístico
e literário, mas, para White, isso foi uma tentativa de afirmar o caráter de
verdade de seu ofício, assegurando-o em elementos das ciências exatas.
White não diz que história e literatura são as
mesmas coisas. “O discurso literário pode diferir do discurso histórico devido a
seus referentes básicos, concebidos mais como eventos ‘imaginários’ do que
‘reais’, mas os dois tipos de discurso são mais parecidos do que diferentes em
virtude do fato de que ambos operam a linguagem de tal maneira que qualquer
distinção clara entre sua forma discursiva e seu conteúdo interpretativo
permanece impossível” (1994, p. 28). Essa aproximação se dá na medida em que existe mais
interpretação do que descrição e explicação no discurso histórico. E ainda
porque ao explicar um evento do passado, o discurso histórico recorre a
informações geralmente contidas no próprio texto; ocorrendo uma tentativa de convencimento auto-referencial. Durante
a narrativa, o historiador usa mais elementos trópicos (referentes à própria
linguagem enredada) do que lógicos que, por sua vez, causam não apenas verossimilhança, mas
também prazer ao leitor (o que está longe de ser um problema).
O encadeamento dos eventos na estrutura da obra – começo,
meio e fim; desfechos e viradas; nó e desfecho – são operações da escolha e da perspectiva do
historiador e interferem sobremaneira na composição representativa do passado.
É o historiador que escolhe o enredamento dos eventos. “Existiria uma estória
intrinsecamente trágica ou depende da perspectiva?”, questiona White.
Enredando, os tropos são operados na história. “Isso acontece porque as
histórias não são vividas, não existe uma estória ‘real’. As estórias são
contadas ou escritas, não encontradas. E quanto à noção de uma estória ‘verdadeira’,
ela é virtualmente uma contradição em termos. Todas as histórias são ficções. O
que significa, é claro, que elas só podem ser ‘verdadeiras’ num sentido metafórico e no sentido em
que uma figura de linguagem pode ser verdadeira” (WHITE, 1994, p. 32).
É preciso, portanto, que se atente para a diferenciação
entre realidade passada e discurso historiográfico. Os eventos do passado não
são fatos históricos a não ser que sejam feitos, por isso a necessidade de não confundir fatos com eventos. Os
eventos acontecem, os fatos são constituídos pela descrição linguística. Segundo
White, “acontece uma pane na consciência histórica quando se esquece
que a ‘história’, no sentido tanto de eventos, como de relatório de eventos,
não acontece apenas, e sim é feita” (p. 36). Contudo, o autor não defende a
inexistência da linha que separa narrativa histórica e ficção literária, mas
ela é tão tênue quanto impossível de ser detectada. O aspecto figurativo e
ficcional dos textos históricos e dos textos literários não desqualificam suas
verdades. Para White, é absurdo supor que somente porque um discurso é
anunciado no modo de uma narrativa, ele tem de ser mítico, ficcional,
imaginário ou ‘não-realista’ naquilo que nos diz sobre o mundo. A verdade e o realismo são sempre
culturalmente determinados e variam de cultura para cultura. Em contrapartida, “será que alguém acredita
seriamente que o mito e a ficção literária não se refiram ao mundo real, não
digam verdades sobre ele e não forneçam um conhecimento útil a seu respeito?” (ibid.,
p. 39). Neste ponto, White inclusive se afasta de alguns estetas que consideram
que a literatura e a arte não possuem nenhuma conexão com o mundo de fora e
referencial.
White defende sua “teoria
tropológica” como instrumento necessário para a pesquisa do passado e para a
construção do discurso histórico, por isso rebate algumas críticas dos
historiadores. Esta teoria não é relativista porque não coloca em discussão a
percepção, mas a representação simbólica da linguagem. Também não é
determinista porque, ao estudar e compreender a linguagem permite ao
historiador a escolha livre e consciente das opções para diferentes estratégias
de figuração. A teoria de White não nega a existência de realidade
extra-discursiva. Nem tudo é fala, linguagem, discurso ou texto. Mas defende
que a representação e a referencialidade linguísticas são assuntos mais
complicados do que as noções literalistas do discurso. Por último, a teoria
tropológica não destrói a distinção entre fato e ficção, mas redefine as
relações entre os dois dentro de qualquer discurso.
* * *
Pitaco safado: as
críticas dos historiadores a Hayden White são exageradas demais. O meio-tom de
ressentimento e de desconhecimento da obra é nítido em muitas das acusações. Em
grande medida, o autor parece apenas preocupado em justificar a plausibilidade
de seu trabalho e sua possível utilidade para os historiadores. O conflito
entre historiadores e o White também se dá por uma questão de princípios
filosóficos. Por exemplo, o tratamento a noção de verdade que o autor trabalha
é diferente da maioria dos historiadores. Neste sentido, White possui uma
inspiração nietzschiana de uso e de valor da verdade, enquanto muitos
historiadores ainda estão preocupados em defender a ferro e fogo suas verdades -
e até impô-las coletivamente em alguns casos. O teórico parece estar mais preocupado com as
construções destas verdades como prerrogativas que podem justificar (e
justificam) uma hierarquia moral e um projeto universal ao preço da pluralidade
de interpretações e de perspectivas da realidade. Acima de tudo, e o mais
importante, as críticas literárias de White podem servir para os historiadores
repensarem os usos que fazem da história, propondo antes da transformação do
mundo, a transformação de si mesmos e de seus ofícios. Emergencial: se o tempo é mudança, por que os instrumentos e o
trabalho do historiador devem permanecer sempre os mesmos?
Referências:
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso
de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2006.
WHITE, Hayden. Meta-história:
A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995.
WHITE, Hayden. Teoria da
literatura e escrita da história. Estudos Históricos, Rio de janeiro,
vol. 7, n. 13, 1994, p. 21-48.
Pois é Munhoz, esse contexto de pensar diferente também recaí na literatura (alias, acho que em qualquer ciência).
ResponderExcluirGostei muito da frase:"O encadeamento dos eventos na estrutura da obra – começo, meio e fim; desfechos e viradas – são operações da escolha e da perspectiva do historiador e interferem sobremaneira na composição representativa do passado"
Achei isso muito verdade, acabei de receber o resultado de um concurso literário, onde metade das pessoas gostaram e outra não. Eu estava tentando achar uma explicação e este seu artigo me esclareceu.
A grande verdade é que as pessoas interpretam conforme sua expectativa. o que na verdade a interpretação deveria ser livre e sem preconceitos.
Adorei o artigo!
Ótima exposição! Mas tenho três questões baseadas no tal debate:
ResponderExcluir"O teórico parece estar mais preocupado com as construções destas verdades como prerrogativas que podem justificar (e justificam) uma hierarquia moral e um projeto universal ao preço da pluralidade de interpretações e de perspectivas da realidade."
Concordo que grande parte das tais críticas tenha esse caráter “ressentido”, mas será que o Hayden White não inverte a posição? Ou seja, sacrifica qualquer chance de “projeto universal” e “hierarquia moral” para privilegiar a tal “pluralidade de interpretações e perspectivas”? Não será ilusório querer combater a tal perspectiva retrógrada sem propor algo novo em termos de ordem política que possa substituir um mundo cujas tendências são cada vez mais para a desigualdade e homogeneização cultural? Acredito que “safadeza” anarquista, na teoria e prática, de tentar reunir estes dois caráteres deve ser considerado.
“Acima de tudo e o mais importante, as críticas literárias de White podem servir para os historiadores repensarem os usos que fazem da história, propondo antes da transformação do mundo, a transformação de si mesmos e de seus ofícios.”
Concordo com quase tudo, exceto o “antes”. Nós não mudamos a nós mesmos, como se fôssemos separados do mundo, mas nós somos efetivamente formandos pelo mundo (e por nós mesmos), assim como interferimos na sua formação (e outros indivíduos), dentro de uma História que herdamos. Há como transformar a nós mesmos sem transformar o mundo, simultaneamente? Ou não? Acredito que os debates anarquistas dão excelente subsídio pra essa questão que não é desenvolvida no texto (e nem poderia ser).
“Também não é determinista porque, ao estudar e compreender a linguagem permite ao historiador a escolha livre e consciente das opções para diferentes estratégias de figuração.”
Eu entendo que esta seja a perspectiva do Hayden White, mas você concorda com ela? O conhecimento das artimanhas linguísticas do discurso simbólico nos dá a capacidade de uma “escolha livre e consciente das opções para diferentes estratégias de figuração”, mas apenas em condições ideais em que o historiador, já estabelecido em determinada posição, não tem de se preocupar com pressões políticas, culturais, sociais, econômicas. Esse ambiente ideal é possível, epistemologicamente? Esse “lugar social” não é permeado de duros conflitos em torno de problemáticas não-acadêmicas?
Olá, André.
ExcluirAgradeço sua intervenção aqui alimentando o debate. Eu escrevi esse post há algum tempo, desde lá mudei algumas impressões sobre White. Isso me parece importante sobretudo para clarear sua primeira questão que foi extraída de um trecho em que faço um comentário pessoal. Creio que esta seja uma leitura (de valor) possível a partir de White, uma leitura "anárquica", mas não necessariamente anarquista ("clássica"). Contudo, após ler outras obras do autor, hoje essa (o rompimento de uma hier-arquia moral) não me parece ser a preocupação de White. Talvez outra leitura possível do autor seja perceber o quanto a construção desta hierarquia é frágil. Entretanto, ele não sacrifica o projeto universal de composição retórica e poética desde Aristóteles - e os leitores de Aristóteles saberão o quão é importante o componente moral (seja pela reputação do orador/relator, seja pelo "bom" uso que se faz dos recursos linguísticos) para dividir hierarquicamente aqueles que sabem daqueles que não sabem, aqueles de conduta reconhecida na e pela comunidade e aqueles que não pode dizer sobre o que é belo, bom e útil, os que mandam e os que obedecem. O trabalho de White, de certa maneira, parte desta premissa e estabelece uma continuidade aristotélica, crendo que é possível compreender e classificar um autor e uma obra conforme os tropos linguísticos utilizados dentro de uma cadeia bastante limitada, operando como numa espécie de estruturalismo textual que não vê a possibilidade do novo e do fora.
Neste sentido, posso responder sua terceira questão. Concordo com o autor que o método utilizado por ele não é determinista, mas também não é totalmente livre. Você escolhe as ferramentas de linguagem dentro de um conjunto já previamente estabelecido pela tradição que é permeada por interesses de todos os tipos (econômicos, sociais, políticos, culturais, etc.). Não acho que seja possível entender um (social e histórico) e depois o outro (linguagem), pois a linguagem é engendrada a partir de posições e jogos de força históricos, mas a linguagem não é meramente o reflexo delas, ela também constroi, justifica, abala e resiste a tais posições. Temos que parar de olhar com inocência para a linguagem, talvez esse sim seja um "ensinamento" do White.
São estas pequenas coisas que podem mudar o mundo e a nós mesmos (pelo menos assim acredito). Concordo contigo que não há mudanças apartadas entre o ser o mundo, é concomitante. Porém, o que estou cansado de ver em determinados movimentos sociais é uma tentativa de mudar o mundo (a organização social e política) e endurecer cada vez mais, atacar uma hierarquia defendendo outra, cair no mais do mesmo. Não me parece que a mudança aconteça de cima para baixo, não me parece que é possível construir ou inventar algo realmente novo somente tirando o projeto universal que está em vigor por um outro com cheiro diferente, mas com o mesmo efeito no final. Acreditar nisso é simplemente concordar que os seres humanos são nada mais do que receptores e executores das decisões de um projeto "universalista" previamente traçado. Tentar escapar disso pode ser uma atividade importante para pensarmos e inventarmos a "anarquia", mas esta estará longe das idealizações dos "anarquistas". O novo é imprevisível. Quem realmente quer?
Muito obrigado e abraços!
hayden white é um romancista fracassado que não aceita a existência da realidade. Como levá-lo a sério?
ResponderExcluirComo faço pra citar você na minha pesquisa? Como é seu nome completo?
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