Há cerca de um mês me deparei com um post interessante da
colega e jornalista Renata Arruda. Em Prosa Espontânea: de volta ao passado, ela expôs um reencontro com
escritos de sua pré-adolescência, os quais transmitiam aspectos de sua vida
naquele momento. Ela fez um balanço temporal deixando entrever a possibilidade
daquela garota de alguns anos atrás ser uma pessoa bem diferente do que ela é
na atualidade (ou sequer ter existido), especialmente se considerarmos sua mudança da maneira de pensar
a vida. Imediatamente, me lembrei da discussão que corre solta entre
historiadores sobre o gênero biográfico; sobretudo, com a contribuição de
pesquisadores como Bourdieu, Foucault e Barthes acerca da “simulação”
biográfica – e da presença da ficção na escrita de uma vida.
Numa entrevista recente, Benito B. Schmidt (um importante
historiador-biógrafo brasileiro) considerou que a atenção dada ultimamente a
este tipo de produção historiográfica é relativa à valorização do indivíduo e
do cotidiano da vida privada, associada ao desejo de espionar a vida alheia
pelo “buraco da fechadura”. Em grande medida, esta situação histórica é
explicada pela falência (ou descrédito) dos projetos universais que se baseavam
na ação de sujeitos coletivos, como o povo, o proletariado, o partido e a vanguarda
intelectual. Mas, como chegamos nesta condição contemporânea?
A partir de 1930, durante o período de “combate pela
história científica”, a Escola dos Annales criticou as biografias de figuras
heroicas, pois estas dissociavam o personagem do caldo cultural que nutria sua
existência. Em contrapartida, usou as biografias para reconstruir contextos
históricos de uma determinada sociedade, classe ou cultura; ainda flertando com
a noção de sujeito coletivo baseada numa ‘mentalidade’ como substrato cultural.
Em tese, o indivíduo biografado funcionava como uma espécie de janela para
olharmos o funcionamento da dinâmica social do período no qual ele viveu. Por
exemplo, para compreender questões e aspectos ligados a Ordem dos Cavaleiros
Templários durante as cruzadas na Idade Média, podia se recorrer a historiar a
vida de um dos cavaleiros, para representar sua classe e descrever as relações
com a sociedade e o tempo num determinado contexto medieval.
Outra maneira de uso da biografia, na tentativa de reconstruir
um dado contexto social e cultural, é praticada pela micro-história. De acordo
com Alexandre Avelar (historiador do gênero biográfico), esta modalidade
utiliza a história da vida de um indivíduo que não é um representante do
conjunto da sociedade, mas que possui pensamentos e ações que vão contra as
regras sociais hegemônicas (2011, p. 143). O pesquisador do microcosmo procura
compreender os conflitos e as experiências-limites de uma vida que demonstram
aspectos culturais que passam despercebidos dos olhares dos historiadores, por
estarem de alguma forma naturalizados na sociedade pesquisada. Estas
preocupações também estão presentes nos trabalhos de história social de E. P.
Thompson. O historiador pesquisou rituais de humilhação pública na sociedade
inglesa moderna para extrair deles as regras culturais contra as quais eles
atentavam. “A importância desses rituais reside no fato de que, identificados
quais tipos de conduta (serviu, marital, pública) ofendem a comunidade,
revelam-se também as normas dessa comunidade” (2001, p. 249).
O maior exemplo de uma biografia histórica nos moldes da
micro-história foi escrita por Ginzburg em O
queijo e os vermes. O livro, que já se tornou clássico do gênero, conta a
história de Menocchio, um moleiro italiano que viveu no século 16. A primeira
diferença da maioria das biografias está justamente no interesse à vida de uma
pessoa comum. Entretanto, apesar de “comum”, Menocchio não representava o
pensamento da comunidade na qual vivera. O moleiro construiu uma explicação bastante
peculiar para o surgimento do mundo (cosmogonia): “’No princípio este mundo era
nada, e [...] a água do mar foi batida com a espuma e se coagulou como queijo,
do qual nasceu uma infinidade de vermes; esses vermes se tornaram homens, dos
quais o mais potente e sábio foi Deus’: foram mais ou menos essas as palavras
ditas por Menocchio” (GINZBURG, 2006, p. 103). Imaginem falar coisas deste tipo
na época de caça às bruxas, em plena política de contrarreforma da Igreja
Católica! Menocchio ainda foi além, questionando a autoridade dos líderes e de
rituais específicos que constituíam dogmas da Igreja. Mesmo se declarando
cristão, depois de uma série de interrogatórios, de torturas e de prisões, a
“Santa Inquisição” resolveu executar o moleiro. Entretanto, Ginzburg quer
deixar claro que Menocchio não estava a frente de seu tempo; que sua existência
só foi possível pela invenção da imprensa (que possibilitou a circulação de
textos heréticos e críticos) e pela reforma protestante via anabatistas e
luteranos. A própria singularidade do personagem parece ficar cada vez mais
apagada na medida em que Ginzburg vai relacionando as opiniões do moleiro,
expressas nos interrogatórios, aos diversos livros sobre religião que Menocchio
ou teve acesso, ou poderia ter tido contato com alguém que os leu. No fim,
Ginzburg mostra que houve outras pessoas como Menocchio (inclusive moleiros do
mesmo período) que pensavam de maneira se não igual, muito parecida. Embora,
entendamos que o trabalho de Ginzburg foque na reconstrução dos conflitos existentes
num período de efervescência religiosa, passando do micro para o macrocosmo, o
autor acaba desconsiderando o elemento humano da criação de algo totalmente
novo; assim como foi possível a existência dos livros com os quais Menocchio
tivera contato. Quer dizer, quem foi o primeiro a pensar diferente e escrever
esses pensamentos? Deve ter existido vários Thomas Edison na história. Ou
qualquer um de mesma cultura poderia ter inventado a lâmpada em sua época? Em
todo caso, parece absurdo falar de ‘singularidade’ como algo recorrente, já que
o singular é um.
Justamente por levar em consideração as questões referentes
à criação, à contingência, ao acaso e à complexidade da realidade, alguns
autores expuseram críticas as narrativas históricas que pretendem reconstruir
ou representar uma vida através da escrita explicada pela síntese de muitas
determinações coletivas. Boa parcela destas contribuições parte de uma
releitura das críticas de Marx, Nietzsche e Freud às noções de sujeito
universal em Hegel e de consciência “absoluta” em Descartes, mas também da
impossibilidade de exprimir linguisticamente a fluidez do real. No texto A
ilusão biográfica, o sociólogo Pierre Bourdieu coloca que a primeira “abstração”
da biografia é acreditar que a vida tem uma história. Ou seja, que ela possui
um caminho orientado, seja do vício a virtude ou da esperança a tragédia. O
problema, neste caso, é supor que existe uma essência por trás de tudo que
regula os acontecimentos – como o famoso “desde pequeno”. O historiador
preocupado, por exemplo, em explicar porque Caco Barcellos se tornou um famoso
jornalista, buscará registros de sua infância e adolescência que comprovem seu
interesse “desde sempre” pela informação e pela reportagem (quem sabe dizendo
que ele era um menino muito fofoqueiro na escola), e talvez, abandone desenhos
de aviões em seus cadernos, porque afinal de contas ele não virou aeronauta. Segundo
Bourdieu: “produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto
é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e
direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação
comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de
reforçar” (1998, p. 185). É preciso tratar o real como algo “descontínuo,
formado por elementos justapostos sem vazão”, todos eles únicos e difíceis de
apreender porque são imprevisíveis e aleatórios. O que o historiador faz - como
considera Avelar (2011) - é tentar encontrar um sentido para a vida do biografado, e
mais, construir um texto que fundamente este sentido baseando-se em documentos
sobre a vida da pessoa.
Sobre a questão da fundamentação em documentos, Foucault
aponta a impossibilidade de recontar uma vida baseando-se neles, pois quais os
resquícios que devemos considerar ou relevar? É possível que, para Foucault, a
ideia de sujeito seja absurda, porque somos pessoas completamente diferentes
conforme o passar do tempo e das interações sociais. Assim, os sujeitos são
produzidos e se produzem incessantemente de formas completamente novas conforme
as relações de poder que os atravessam. Sua exposição relembra a clássica frase
de Heráclito: “não podemos entrar no mesmo rio duas vezes”, pois no segundo
momento que entrássemos seríamos pessoas diferentes e o rio também já seria
outro, porque é fluxo. Entretanto, existem estratégias vinculadas as instâncias
do poder que pretendem determinar uma existência. É desta maneira que Foucault
pretendeu mostrar o caso de um parricida no livro Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (que virou filme na França),
ao contrapor o discurso médico, o discurso jurídico e o do próprio assassino.
Embora eles estivessem falando do mesmo assunto, a vida de Pierre Rivière a
partir da relação com seu crime, numa tentativa de decidir o destino do
assassino (se mandado para uma cadeia ou para um hospício), os discursos se
contradiziam parecendo tratar-se – às vezes – de pessoas distintas (um doente
desde a infância, um homicida cruel ou um homem comum cometendo um ato absurdo).
Muitas críticas foram feitas a Foucault porque o filósofo não comentou os
discursos apresentados. Mas esta ausência se ancora na coerência da própria
proposta do autor para este trabalho, que era mostrar como funcionam os
mecanismos de poder que localizam uma existência para poder dominá-la, tratando
o homem como objeto do saber. Caso Foucault tivesse feito comentários,
explicações ou defesas de Rivière, teria cometido o que acabara de denunciar,
que é o falar pelos outros.
Mais do que admitir a imprecisão de contar uma vida através
da narrativa, o trabalho de Foucault demonstra como essa construção linguística
pode servir a propósitos políticos que pretendem assegurar uma verdade
utilizada para o governo das pessoas (como no caso dos loucos e dos presos). No
entanto, tais estratégias seriam não só intencionadas como também mentirosas,
pois “o filósofo francês rejeita uma universalidade, uma autonomia plena de
consciência e uma liberdade de ação abstrata tal como se postula em diversos
discursos biográficos, pois nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante
fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Não há, portanto,
uma identidade esquecida, sempre pronta a renascer, mas um sistema complexo de
elementos múltiplos, distintos que nenhum poder de síntese domina” (AVELAR,
2011, p. 151). Algumas instituições criadas no social dão a ilusão de uma
continuidade ou de uma essência do indivíduo; o caso do nome próprio é uma
delas, conforme salienta Bourdieu. O nome próprio e a autoria são instâncias
que podem visar a regulação e a culpabilização dos sujeitos, mas são impressões
frágeis diante das transformações operadas numa vida. Com base nas arguições de
Foucault e Barthes para desestabilizar o aspecto temporal de causa e efeito, o
ser vivente está em constante invenção de si mesmo. Nossa existência é
descontínua, pois como cantou Alanis: “somos arranjos temporários”.
Referências:
AVELAR,
Alexandre. Figurações da escrita biográfica. Revista ArtCultura. Uberlândia, v. 13, n. 22, p. 137-155, jan.-jun.,
2011.
BOURDIEU, Pierre.
A ilusão biográfica. In: AMADO, J. ; FERREIRA, M (Coord.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p.
183-191.
FOUCAULT, Michel.
Eu,
Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio do século
XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as
ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das Letras,
2006.
MORISSETE,
Alanis. No pressure over cappuccino.
Faixa 03. Álbum: Alanis Unplugged, 1999.
SCHMIDT, Benito
B. Entrevista com Benito Bisso Schmidt por Manuela Areias Costa. Revista Cantareira. Rio de Janeiro, 15ª
edição, jul.-dez., 2011.
THOMPSON, Edward
Palmer. Folclore, antropologia e história social. In:______. As peculiaridades dos ingleses e outros
artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 227-268.
Como eu suspeitava, excelente texto! Fiquei ainda mais interessada em ler este livro que você me mandou e vou começar a leitura em e-book mesmo mas parece que é algo que valha a pena comprar. Também não sabia sobre o livro de Foucault e o filme, vou procurar.
ResponderExcluirNunca tinha parado pra pensar sobre esse assunto antes de você chamar a minha atenção e cada parágrafo do seu texto me deixou reflexiva e animada para mergulhar nos links que me enviou e não por interesse acadêmico, mas por ser o tipo de assunto que desperta a vontade de criar. Veio em boa hora.
(A citação de Alanis me surpreendeu)