quarta-feira, 27 de junho de 2012

Da (im)possibilidade de historiar uma vida


Há cerca de um mês me deparei com um post interessante da colega e jornalista Renata Arruda. Em Prosa Espontânea: de volta ao passado, ela expôs um reencontro com escritos de sua pré-adolescência, os quais transmitiam aspectos de sua vida naquele momento. Ela fez um balanço temporal deixando entrever a possibilidade daquela garota de alguns anos atrás ser uma pessoa bem diferente do que ela é na atualidade (ou sequer ter existido), especialmente se considerarmos sua mudança da maneira de pensar a vida. Imediatamente, me lembrei da discussão que corre solta entre historiadores sobre o gênero biográfico; sobretudo, com a contribuição de pesquisadores como Bourdieu, Foucault e Barthes acerca da “simulação” biográfica – e da presença da ficção na escrita de uma vida.

Numa entrevista recente, Benito B. Schmidt (um importante historiador-biógrafo brasileiro) considerou que a atenção dada ultimamente a este tipo de produção historiográfica é relativa à valorização do indivíduo e do cotidiano da vida privada, associada ao desejo de espionar a vida alheia pelo “buraco da fechadura”. Em grande medida, esta situação histórica é explicada pela falência (ou descrédito) dos projetos universais que se baseavam na ação de sujeitos coletivos, como o povo, o proletariado, o partido e a vanguarda intelectual. Mas, como chegamos nesta condição contemporânea?

A partir de 1930, durante o período de “combate pela história científica”, a Escola dos Annales criticou as biografias de figuras heroicas, pois estas dissociavam o personagem do caldo cultural que nutria sua existência. Em contrapartida, usou as biografias para reconstruir contextos históricos de uma determinada sociedade, classe ou cultura; ainda flertando com a noção de sujeito coletivo baseada numa ‘mentalidade’ como substrato cultural. Em tese, o indivíduo biografado funcionava como uma espécie de janela para olharmos o funcionamento da dinâmica social do período no qual ele viveu. Por exemplo, para compreender questões e aspectos ligados a Ordem dos Cavaleiros Templários durante as cruzadas na Idade Média, podia se recorrer a historiar a vida de um dos cavaleiros, para representar sua classe e descrever as relações com a sociedade e o tempo num determinado contexto medieval.

Outra maneira de uso da biografia, na tentativa de reconstruir um dado contexto social e cultural, é praticada pela micro-história. De acordo com Alexandre Avelar (historiador do gênero biográfico), esta modalidade utiliza a história da vida de um indivíduo que não é um representante do conjunto da sociedade, mas que possui pensamentos e ações que vão contra as regras sociais hegemônicas (2011, p. 143). O pesquisador do microcosmo procura compreender os conflitos e as experiências-limites de uma vida que demonstram aspectos culturais que passam despercebidos dos olhares dos historiadores, por estarem de alguma forma naturalizados na sociedade pesquisada. Estas preocupações também estão presentes nos trabalhos de história social de E. P. Thompson. O historiador pesquisou rituais de humilhação pública na sociedade inglesa moderna para extrair deles as regras culturais contra as quais eles atentavam. “A importância desses rituais reside no fato de que, identificados quais tipos de conduta (serviu, marital, pública) ofendem a comunidade, revelam-se também as normas dessa comunidade” (2001, p. 249).

O maior exemplo de uma biografia histórica nos moldes da micro-história foi escrita por Ginzburg em O queijo e os vermes. O livro, que já se tornou clássico do gênero, conta a história de Menocchio, um moleiro italiano que viveu no século 16. A primeira diferença da maioria das biografias está justamente no interesse à vida de uma pessoa comum. Entretanto, apesar de “comum”, Menocchio não representava o pensamento da comunidade na qual vivera. O moleiro construiu uma explicação bastante peculiar para o surgimento do mundo (cosmogonia): “’No princípio este mundo era nada, e [...] a água do mar foi batida com a espuma e se coagulou como queijo, do qual nasceu uma infinidade de vermes; esses vermes se tornaram homens, dos quais o mais potente e sábio foi Deus’: foram mais ou menos essas as palavras ditas por Menocchio” (GINZBURG, 2006, p. 103). Imaginem falar coisas deste tipo na época de caça às bruxas, em plena política de contrarreforma da Igreja Católica! Menocchio ainda foi além, questionando a autoridade dos líderes e de rituais específicos que constituíam dogmas da Igreja. Mesmo se declarando cristão, depois de uma série de interrogatórios, de torturas e de prisões, a “Santa Inquisição” resolveu executar o moleiro. Entretanto, Ginzburg quer deixar claro que Menocchio não estava a frente de seu tempo; que sua existência só foi possível pela invenção da imprensa (que possibilitou a circulação de textos heréticos e críticos) e pela reforma protestante via anabatistas e luteranos. A própria singularidade do personagem parece ficar cada vez mais apagada na medida em que Ginzburg vai relacionando as opiniões do moleiro, expressas nos interrogatórios, aos diversos livros sobre religião que Menocchio ou teve acesso, ou poderia ter tido contato com alguém que os leu. No fim, Ginzburg mostra que houve outras pessoas como Menocchio (inclusive moleiros do mesmo período) que pensavam de maneira se não igual, muito parecida. Embora, entendamos que o trabalho de Ginzburg foque na reconstrução dos conflitos existentes num período de efervescência religiosa, passando do micro para o macrocosmo, o autor acaba desconsiderando o elemento humano da criação de algo totalmente novo; assim como foi possível a existência dos livros com os quais Menocchio tivera contato. Quer dizer, quem foi o primeiro a pensar diferente e escrever esses pensamentos? Deve ter existido vários Thomas Edison na história. Ou qualquer um de mesma cultura poderia ter inventado a lâmpada em sua época? Em todo caso, parece absurdo falar de ‘singularidade’ como algo recorrente, já que o singular é um.

Justamente por levar em consideração as questões referentes à criação, à contingência, ao acaso e à complexidade da realidade, alguns autores expuseram críticas as narrativas históricas que pretendem reconstruir ou representar uma vida através da escrita explicada pela síntese de muitas determinações coletivas. Boa parcela destas contribuições parte de uma releitura das críticas de Marx, Nietzsche e Freud às noções de sujeito universal em Hegel e de consciência “absoluta” em Descartes, mas também da impossibilidade de exprimir linguisticamente a fluidez do real.  No texto A ilusão biográfica, o sociólogo Pierre Bourdieu coloca que a primeira “abstração” da biografia é acreditar que a vida tem uma história. Ou seja, que ela possui um caminho orientado, seja do vício a virtude ou da esperança a tragédia. O problema, neste caso, é supor que existe uma essência por trás de tudo que regula os acontecimentos – como o famoso “desde pequeno”. O historiador preocupado, por exemplo, em explicar porque Caco Barcellos se tornou um famoso jornalista, buscará registros de sua infância e adolescência que comprovem seu interesse “desde sempre” pela informação e pela reportagem (quem sabe dizendo que ele era um menino muito fofoqueiro na escola), e talvez, abandone desenhos de aviões em seus cadernos, porque afinal de contas ele não virou aeronauta. Segundo Bourdieu: “produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar” (1998, p. 185). É preciso tratar o real como algo “descontínuo, formado por elementos justapostos sem vazão”, todos eles únicos e difíceis de apreender porque são imprevisíveis e aleatórios. O que o historiador faz - como considera Avelar (2011) - é tentar encontrar um sentido para a vida do biografado, e mais, construir um texto que fundamente este sentido baseando-se em documentos sobre a vida da pessoa.

Sobre a questão da fundamentação em documentos, Foucault aponta a impossibilidade de recontar uma vida baseando-se neles, pois quais os resquícios que devemos considerar ou relevar? É possível que, para Foucault, a ideia de sujeito seja absurda, porque somos pessoas completamente diferentes conforme o passar do tempo e das interações sociais. Assim, os sujeitos são produzidos e se produzem incessantemente de formas completamente novas conforme as relações de poder que os atravessam. Sua exposição relembra a clássica frase de Heráclito: “não podemos entrar no mesmo rio duas vezes”, pois no segundo momento que entrássemos seríamos pessoas diferentes e o rio também já seria outro, porque é fluxo. Entretanto, existem estratégias vinculadas as instâncias do poder que pretendem determinar uma existência. É desta maneira que Foucault pretendeu mostrar o caso de um parricida no livro Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (que virou filme na França), ao contrapor o discurso médico, o discurso jurídico e o do próprio assassino. Embora eles estivessem falando do mesmo assunto, a vida de Pierre Rivière a partir da relação com seu crime, numa tentativa de decidir o destino do assassino (se mandado para uma cadeia ou para um hospício), os discursos se contradiziam parecendo tratar-se – às vezes – de pessoas distintas (um doente desde a infância, um homicida cruel ou um homem comum cometendo um ato absurdo). Muitas críticas foram feitas a Foucault porque o filósofo não comentou os discursos apresentados. Mas esta ausência se ancora na coerência da própria proposta do autor para este trabalho, que era mostrar como funcionam os mecanismos de poder que localizam uma existência para poder dominá-la, tratando o homem como objeto do saber. Caso Foucault tivesse feito comentários, explicações ou defesas de Rivière, teria cometido o que acabara de denunciar, que é o falar pelos outros.

Mais do que admitir a imprecisão de contar uma vida através da narrativa, o trabalho de Foucault demonstra como essa construção linguística pode servir a propósitos políticos que pretendem assegurar uma verdade utilizada para o governo das pessoas (como no caso dos loucos e dos presos). No entanto, tais estratégias seriam não só intencionadas como também mentirosas, pois “o filósofo francês rejeita uma universalidade, uma autonomia plena de consciência e uma liberdade de ação abstrata tal como se postula em diversos discursos biográficos, pois nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Não há, portanto, uma identidade esquecida, sempre pronta a renascer, mas um sistema complexo de elementos múltiplos, distintos que nenhum poder de síntese domina” (AVELAR, 2011, p. 151). Algumas instituições criadas no social dão a ilusão de uma continuidade ou de uma essência do indivíduo; o caso do nome próprio é uma delas, conforme salienta Bourdieu. O nome próprio e a autoria são instâncias que podem visar a regulação e a culpabilização dos sujeitos, mas são impressões frágeis diante das transformações operadas numa vida. Com base nas arguições de Foucault e Barthes para desestabilizar o aspecto temporal de causa e efeito, o ser vivente está em constante invenção de si mesmo. Nossa existência é descontínua, pois como cantou Alanis: “somos arranjos temporários”.


Referências:

AVELAR, Alexandre. Figurações da escrita biográfica. Revista ArtCultura. Uberlândia, v. 13, n. 22, p. 137-155, jan.-jun., 2011.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J. ; FERREIRA, M (Coord.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 183-191.
FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio do século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
MORISSETE, Alanis. No pressure over cappuccino. Faixa 03. Álbum: Alanis Unplugged, 1999.
SCHMIDT, Benito B. Entrevista com Benito Bisso Schmidt por Manuela Areias Costa. Revista Cantareira. Rio de Janeiro, 15ª edição, jul.-dez., 2011.
THOMPSON, Edward Palmer. Folclore, antropologia e história social. In:______. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 227-268.

Um comentário:

  1. Como eu suspeitava, excelente texto! Fiquei ainda mais interessada em ler este livro que você me mandou e vou começar a leitura em e-book mesmo mas parece que é algo que valha a pena comprar. Também não sabia sobre o livro de Foucault e o filme, vou procurar.

    Nunca tinha parado pra pensar sobre esse assunto antes de você chamar a minha atenção e cada parágrafo do seu texto me deixou reflexiva e animada para mergulhar nos links que me enviou e não por interesse acadêmico, mas por ser o tipo de assunto que desperta a vontade de criar. Veio em boa hora.

    (A citação de Alanis me surpreendeu)

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