Na tentativa de higienizar o território (teórico e
metodológico) para a atuação da história científica, a Escola francesa dos
Annales procurou combater alguns “inimigos” da prática historiográfica
empreendida até então. Dentre estes inimigos está o anacronismo. Lucien Febvre, por exemplo, define o anacronismo como
o pior de todos os pecados dos historiadores. Bloch diz que parecemos mais com
nosso tempo do que com nossos pais; e que é dever do historiador compreender os
homens de acordo com a época em que eles viveram. No entanto, na busca de
cientificidade para a História, os annales acabaram “demonizando”
demasiadamente algumas categorias e ferramentas teóricas que eles mesmos
utilizavam sem se atentar – ou porque não se davam conta ou porque ignoravam as
implicações de algumas escolhas metodológicas para o ofício do historiador.
Os fantasmas da 2ª Guerra Mundial: Técnica de manipulação de fotos que mistura temporalidades, desenvolvida por Sergey Larenkov |
A primeira questão se desdobra quando perguntamos: quem é
capaz de decidir que coisa (pessoas, sentimentos, valores, hábitos, significados,
etc.) tem ou não ligação com um determinado tempo histórico? O historiador. Quer dizer que esta
pessoa vai julgar também o que é ou não anacrônico? Sim. Mas – poderíamos
perguntar – por quê? Ora, o historiador é o profissional designado e
reconhecido para cumprir este tipo de função, porque foi capacitado com
recursos técnicos (teórico-metodológicos) precisos para determinar o que cabe a
cada parte no tempo. Outros “profissionais” que também escrevem sobre história,
como jornalistas, literatos, sociólogos, filósofos e políticos, utilizando-se
dos mesmos recursos poderiam cumprir igualmente esta tarefa; isto garantiria
sua(s) autoridade(s) no ramo: a autoridade sobre o tempo. Esta seria uma possível
resposta (simplificada) dos herdeiros dos annales. Em suma, isso significa que
a noção de delimitação sobre o anacronismo está intimamente ligada a uma
dimensão de controle político do saber e do poder.
“O anacronismo é assim chamado porque o que está em jogo não
é apenas um problema de sucessão. Não é um problema horizontal da ordem dos
tempos, mas um problema vertical da ordem do tempo na hierarquia dos seres. É um
problema de partilha do tempo no sentido ‘da parte que cabe a cada qual’” (RANCIÈRE,
2011, p. 23). A questão é que não existe uma hierarquia na ordem dos tempos,
nem uma determinação de fora sobre o que concerne a cada época e o que as
separa uma da outra. Todo este trabalho é feito por uma pessoa que está, por
sua vez, inserida também num determinado tempo, “sofrendo” pressões sociais,
políticas e culturais que são exercidas sobre sua consciência e seu agir. O
anacronismo é um pecado para o historiador, sobretudo porque ele desordena e
desafia o trabalho de organização do tempo, rompendo com a superioridade hierárquica
daquele que é reconhecido para tal função. Em última instância, o an-acronismo está para o tempo como a an-arquia está para política; não
porque representa o caos, mas porque reconfigura a possibilidade do qualquer
um, mostrando que atrás da ordem (aparente) existe uma desordem existencial que,
paradoxalmente, torna praticável a empreita de “organizar” e “dar sentido”
cronológico. Lembro-me de uma passagem de O
desentendimento na qual Rancière diz o seguinte sobre a crítica
anti-igualitária de Platão:
“A ‘igualdade’ que os chefes do partido popular deram ao
povo de Atenas é para ele [Platão] apenas a fome nunca saciada do cada vez
mais: cada vez mais portos e navios, mercadorias e colônias, arsenais e
fortificações. Mas ele sabe muito bem que o mal é mais profundo. É que, na
Assembleia do povo, qualquer sapateiro ou ferreiro possa levantar-se para dar
sua opinião sobre a maneira de conduzir esses navios ou de construir essas
fortificações e, mais ainda, sobre a maneira justa ou injusta de usá-los para o
bem comum. O mal não é o cada vez mais,
mas o qualquer um, a brutal revelação
da anarquia última que repousa toda hierarquia” (1996, p. 30). A legitimidade
do discurso de um historiador sobre o passado ou até mesmo por um político que
planeja um projeto grandioso se apoiando nesse tipo discurso (como o da raça
ariana no nazismo) passa diretamente pela ligação com as instâncias do poder
político e/ou pelo reconhecimento de uma comunidade sobre a validade de sua
elocução discursiva. E é desta maneira que o anacronismo coloca uma
problemática que atravessa o âmbito dos que mandam e dos obedecem.
Jacques Rancière (Argélia, 1940) |
O sentido de obediência aparece novamente em outra dissonância ao anacronismo. Mas, desta
vez, relacionado apenas indiretamente a autoridade do historiador. Refiro-me a
autoridade do tempo. Pois, se pertencer a uma determinada época é comungar de
princípios, senão idênticos, semelhantes ao da sociedade do período em que
vivemos, então, aqueles que não procedem de uma mesma forma (mesmo dentro de
certas margens de ‘liberdades’ consideradas pelos historiadores) são seres
históricos desobedientes de sua época, porque estão a “frente” de seu tempo –
são por isso homens anacrônicos. Contudo, para os historiadores que trabalham
com a noção hegeliana de “espírito da época” ou de “mentalidades” (inspirada em Durkheim) a proposição “de
uma pessoa ser a frente de seu tempo” está fora de cogitação. De acordo com
Rancière, foi isso que fez Lucien Febvre na obra O problema da descrença no século 16. Para Febvre, era impossível
que Rabelais, um ex-padre e médico humanista, fosse descrente ou ateu, pois seu
tempo (século 16) não permitia isso. Sabe-se que Rabelais escreveu livros
críticos e satíricos ao pensamento medieval e a determinados comportamentos e
tradições religiosas. Mas, para Febvre seria impossível que ele fosse
descrente, sendo um anacronismo o uso de tal argumento; pois o historiador dos
annales parte de uma descrição de mentalidades coletivas da época pesquisada para
explicar o particular – no caso, o pensamento ou a existência individual de
Rabelais. Rancière contrapõe que a explicação de Febvre acerca do anacronismo é
insustentável, porque o pesquisador não dispõe de materiais necessários para
investigar o consciente íntimo de seu objeto (Rabelais). No caso de dizer que
não seria possível a existência de uma metralhadora no século 4 a.C. Rancière
concorda, haja vista que temos materiais suficientes para verificar tal
impossibilidade. Porém, este é um objeto material, agora supor a inexistência
de sentimentos e de pensamentos íntimos se torna mais complicado; sobretudo,
porque a explicação de Febvre parte do
provável e do verossímil para construir uma verdade histórica que é a
seguinte: “Durante o século 16 era impossível qualquer um duvidar da existência
de Deus”. Não à toa, Rabelais, muito por conta de ter escrito o livro utópico “Faça
como queira”, é considerado um precursor do ideal político anárquico, pois sua
própria existência coloca em questão a autoridade que pretende dominar o
anacronismo. Neste sentido, Rabelais pode ser considerado também um anárquico
do tempo, pois sua existência não obedecia a lógica de pensamento hegemônico do
período no qual viveu.
O segundo eixo de problematização acerca do anacronismo tem
a ver com o uso do recurso discursivo poético (da tradição aristotélica)
relacionado à Providência ou a teleologia. A questão é que o discurso
historiográfico procura resolver uma questão de verdade e de cientificidade
apoiando-se nos instrumentos poéticos e literários; tendo em vista, que a
história moderna não quer simplesmente narrar acontecimentos sucessivos, mas
construir um todo significante, chamado em grego de symploké. Assim escreve
Rancière (2011, p. 27-8): “A teoria da symploké é uma resposta à hierarquia
aristotélica entre filosofia, poesia e história. A poesia, nos diz Aristóteles,
é mais filosófica do que a história. Com efeito, a história é o domínio do ‘um
por um’, que nos informa que uma coisa aconteceu e, em seguida, uma outra. A poesia,
por sua vez, é o domínio do geral que dispõe as ações numa só totalidade
articulada. [...] Segue-se dessa distinção uma importante consequência, que
atrapalha um pouco as honestas teleologias da conquista das verdades da ciência
contra as fantasias da ficção poética: a promoção da história como discurso
verdadeiro passa pela sua capacidade de tornar-se semelhante à poesia, de
imitar por sua própria conta a potência da generalidade poética”.
Para construir um discurso que articula não “do universal
para o individual” (como no caso das “mentalidades”), mas do que “particular
para o geral”, o historiador utiliza utensílios teóricos poéticos para forjar uma necessidade e uma
verossimilhança que abole a ideia de “desordem aleatória” dos
acontecimentos; passando estes agora a constituir uma totalidade que entrelaça
tempos distintos formando um eterno presente (dentro do texto historiográfico).
Isso significa que o historiador, em si, utiliza do próprio anacronismo para
amarrar seu texto. Sobretudo, quando escreve sobre o passado, usa verbos no
presente do indicativo – o que configura a ‘eternidade temporal’ de seu
escrito. Desta maneira, “o regime da verdade da história se constitui,
portanto, numa conexão específica entre a lógica poética da intriga necessária
ou verossímil e uma lógica ‘teológica’ da manifestação da ordem da verdade
divina na ordem do tempo humano” (RANCIÈRE, 2011, p. 28). A noção de Providência, que auxilia para fundamentar uma ordem ‘inevitável’ por trás dos
acontecimentos, é construída pelo próprio historiador.
Diante destas tantas complicações sobre o anacronismo o que podemos propor como horizonte a ser
visualizado pelos historiadores? Rancière (2011, p. 47) sugere que
abandonemos a categoria anacronismo para desatarmos o nó do tempo com o
possível e com a eternidade. Para o autor, “o conceito de ‘anacronismo’ é
anti-histórico porque ele oculta as condições mesmas de toda historicidade. Há história
à medida que os homens não se ‘assemelham’ ao seu tempo, com a linha de
temporalidade que os coloca em seus lugares impondo-lhes fazer do seu tempo
este ou aquele ‘emprego’. Mas essa ruptura mesma só é possível pela
possibilidade de conectar essa linha de temporalidades com outras, pela multiplicidade de linhas de temporalidades
presentes em ‘um’ tempo”. Ou seja, existe história porque os ‘tempos’ se
misturam, se entrecruzam, se convergem e se distanciam. Pensar essa
possibilidade parece um passo importante para romper com a caracterização do
tempo como espaço, e pior, às vezes como um espaço coeso e pré-definido.
Agamben (Itália, 1942) |
Já a proposta de Giorgio Agamben é pela defesa de uma ética que sirva a qualquer um, independente se historiador
ou não, se possuinte de uma consciência histórica (seja lá o que isso
signifique) ou não. O interessante para o autor é a possibilidade de dissociarmos
de nosso próprio tempo. Por isso, para Agamben, o contemporâneo não é aquele
que está encoberto pelas luzes de seu tempo, não é aquele que se assimila demais a
sua época. Mas, o que dela consegue se desprender o suficiente para observá-la.
Não se deixando ofuscar pelas luzes para conseguir entrever as trevas que acompanham seu presente.
Portanto, o contemporâneo é também o anacrônico. Assim, ele caracteriza
Nietzsche, um filósofo que escreveu no século 19, mas que seus livros só
fizeram sentido algumas décadas depois. O próprio filósofo alemão costumava
dizer que havia nascido póstumo (pois não se sentia acolhido totalmente a sua
época). Diante dos avanços industriais e do desenvolvimento material do período,
exclamava: “só vejo trevas e escuridão”. Talvez suas palavras hoje sejam mais
contemporâneas do que em seu tempo.
Fechamos com uma citação de Agamben (2009, p. 58): “Nietzsche
situa a sua exigência de ‘atualidade’, a sua ‘contemporaneidade’ em relação ao
presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente ao seu
tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente
com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido,
inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e
desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender
o seu tempo. [...] Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em
todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque,
exatamente por isso, não conseguem vê-la, não
podem manter fixo o olhar sobre ela”.
Referências:
**Discussão feita no grupo de estudos “Os malditos”, na UFU.
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? In:______. O que é contemporâneo e outros ensaios.
Chapecó-SC: Argos, 2009, P. 55-74.
RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do
historiador. In: SALOMON, Marlon (org.). História,
verdade e tempo. Chapecó-SC: Argos, 2011, p. 21-49.
RANCIÈRE, Jacques. O
desentendimento: filosofia e política.
São Paulo: Ed. 34, 1996.
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