Os teóricos da área de humanidades comumente caracterizam a
modernidade como um estágio específico do processo histórico nas sociedades
ocidentais. Ela é entendida como um acontecimento que gradualmente transformou
as maneiras humanas de sentir o tempo, o espaço, a sociedade e a cultura; como
também tais sensibilidades foram (e são) transformadoras destes aspectos, num
percurso ininterrupto de mudanças. Marshall Berman (1986, p. 16-7) divide a
modernidade em três fases: a primeira vai do século 16 ao 18, período marcado
pela invenção da imprensa, pelas reformas e contrarreformas religiosas e pelo
renascimento cultural, este é um momento em que as pessoas não reconhecem
direito as transformações; a segunda fase inicia-se a partir de 1790 com a Revolução
Francesa e a Industrial, neste momento as pessoas tem a impressão de viver em
dois mundos ainda, o peso da tradição é atravessado pelas espadas da era
revolucionária que está carregada por perspectivas de um futuro promissor; a
última fase começa no século 20, nesse período a modernidade conseguiu abarcar
todo o mundo, o sentimento de viver uma vida de paradoxo e contradição e a experiência de estar num turbilhão de
permanente desintegração (e mudança) são agora partilhados por todos, entretanto
esse momento também configura a perda da capacidade das pessoas em darem
sentido e organizarem suas próprias vidas.
Ora, o modo como Foucault apresenta a modernidade é um pouco
distinto. O autor aponta que a modernidade pode ser encarada mais como uma
atitude do que como a descrição de um dado período (todavia, para que fique
claro, as duas não se excluem). E que
atitude é essa afinal e quando é seu início? A modernidade é um modo de
atuação em relação a atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; “enfim, uma maneira
de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao
mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como um tarefa. Um pouco, sem
dúvida, como aquilo que os gregos chamavam de êthos” (FOUCAULT, 2006, p. 342). O autor acredita que o início, ou
o principal limiar da atitude moderna, pode ter ocorrido com o exercício feito
por Kant quando escreveu um texto tentando responder a pergunta lançada por um
jornal alemão do século 18: O que é o Esclarecimento?
Foucault retorna então a este texto para fazer considerações precisas acerca da
modernidade. Tentaremos precisar aqui a questão que creditamos maior
importância: o uso da Razão e da
História como práticas de liberdade.
A maneira como Kant coloca o problema do Esclarecimento aparece como um senso negativo: é uma “saída”, uma “solução”,
não uma simples definição. Essa “saída” através do Esclarecimento é o processo
que nos liberta do estado de menoridade.
Completar 18 anos? Não, né! Não tem a ver com idade cronológica, a menoridade é
o estado que nos faz aceitar a autoridade de outro para nos conduzir. E aqui,
Kant dá três exemplos: 1º, quando o livro toma o lugar do entendimento, quando
não se reflete sobre ele e simplesmente se aceita o que nele tem – podemos descrever o modo
como a Bíblia é tratada por alguns. 2º, quando o orientador espiritual toma o
lugar da consciência, mais uma vez, nesta situação a pessoa aliena sua “vontade”
e capacidade de refletir por si mesma. 3º, quando um médico decide em nosso
lugar a dieta – quer dizer, você pode aceitá-la, mas não sem questioná-la e
perceber que ela é benéfica a si independente da autoridade do profissional,
portanto, estará apto para assumir sua responsabilidade pelas escolhas que
fizer. Em última instância, o Esclarecimento é definido pela modificação da
relação preexistente entre a vontade, a
autoridade e o uso da razão. Apesar do acontecimento do Iluminismo e de nos
julgarmos seres racionais, podemos questionar, partindo da leitura de Kant:
somos mesmo esclarecidos?
Cabe aqui fazer duas considerações sobre as proposições
kantianas. Essa saída da menoridade é um fato a se desenrolar, mas também uma
obrigação, pois o homem é o responsável
por seu estado de menoridade. Por isso, é uma mudança que ele deve operar
em si mesmo com uma máxima, uma palavra de ordem: “tenha coragem, audácia de
saber”. A condição do homem chega à maioridade
quando a regra que dizia “obedeçam e não raciocinem” (Kant usa o serviço
militar como exemplo), altera-se para “obedeçam e vocês vão poder raciocinar o
quanto quiserem”. Por último, é preciso salientar que essa Razão, a qual Kant se
refere, não é a da técnica, não é a que está dirigida a construção ou
gestão de algo, ou seja, ela não é instrumental, mas sim ontológica, possui um fim em si mesma – é a razão
autocrítica que nunca cessa, pois não há um ponto de chegada; essa prática de
liberdade precisa ser feita a todo instante, tendo em vista que é uma conquista que se perde sem
o exercício constante.
Agora que já falamos da Razão, o que tem a ver o tempo e a História nesse processo de busca pela
maioridade? Sejamos claro, não é qualquer método de utilização e reflexão
da história que é caro a esse exercício crítico-filosófico libertário. Foucault
diz que Kant usa a história (especificamente e somente neste texto sobre o
Esclarecimento) para pensar o presente de um modo inteiramente distinto dos
três modos já conhecidos. 1º) Não é como Platão em O político, no qual os interlocutores acreditam estar no meio de
uma dessas revoluções que fazem o mundo girar para trás, por participarem de um
momento de decadência na “política” ateniense. 2º) Não é como Santo Agostinho
que interroga o presente para tentar enxergar os sinais de algo que está
prestes a acontecer. 3º) Não é, por último, como Vico que vê seu presente como
o ponto de transição na direção da aurora de um mundo novo. Segundo Foucault
(2008, p. 337), geralmente Kant colocava a história através de questões sobre a
origem ou para definir a finalidade anterior de um processo histórico. Mas,
nesse texto “ele se refere à pura atualidade. Ele não busca compreender o
presente a partir de uma totalidade ou de uma realização futura. Ele busca uma
diferença”. Essa diferença é uma tarefa filosófica particular em que situa a
atualidade no processo de maioridade do qual cada um é responsável por ele – e pelo
seu.
Na mesma perspectiva, Foucault (p. 342) dialoga com o poeta
Baudelaire para apontar o seguinte sobre a modernidade: ser moderno não é simplesmente aceitar a contingência dela, mas assumir
determinada atitude em relação a esse movimento; esse exercício é uma “atitude
voluntária, difícil, consiste em recuperar alguma coisa de eterno que não está
além do instante presente, nem por trás dele, mas nele”. Podemos nos inspirar
em Agamben (2009, p. 72) e igualarmos o moderno ao contemporâneo, como aquele
que percebendo o escuro do presente, também apreende a resoluta luz do seu
tempo; “aquele que dividindo e interpolando o tempo, está a altura de
transformá-lo e de colocá-lo em relação a outros tempos, de nele ler de modo
inédito a história, de ‘citá-la’ segundo uma necessidade que não provém de
maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode
responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente,
projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de
sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora”.
Num tom pessimista e desconfiante, Foucault nos questiona se
a modernidade foi a constituição e o desenvolvimento do Esclarecimento ou se
marcou o ponto em que dele nos distanciamos. Parece-me que a opção pessimista é
a mais possível. Por isso a história é de importância cabal nesse processo de
reflexão. O autor, então, propõe uma pesquisa histórica crítica que percorra os
“acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos conhecer como sujeitos
do que fazemos, pensamos e dizemos”. Essa crítica é genealógica em sua
finalidade e arqueológica em seu método. Arqueológica
e não-transcendental, pois não vai procurar “resgatar” as estruturas universais
de qualquer conhecimento ou de qualquer ação moral possível; “mas tratar dos
discursos que articulam o que pensamos, dizemos e fazemos como os
acontecimentos históricos”. Significa dizer que não existe conhecimento para
além de como os descrevemos e entendemos. “E será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do que
somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer”. Ou seja, se são os homens
(e não Deus) que fazem a história, então será preciso compreender como os homens a
fizeram-na. “A genealogia deduzirá da contingência [do acaso] que nos fez ser o
que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos
ou pensamos” (2008, p. 348). Recusar o mito da origem inevitável!
É necessário retomarmos o limiar do Esclarecimento, retornar
à história para construir elementos para as
práticas de liberdade através do uso da razão. Por outro lado, não querer
fazer dessa proposta uma doutrina salvacionista, entendendo-a apenas como uma
possibilidade e não como uma “receita de bolo”. Afinal, o Esclarecimento é a
atitude filosófica que problematiza a relação com o presente, o modo de ser
histórico e filosófico, e não a fidelidade dos elementos de qualquer doutrina.
Cada um deve encontrar suas “linhas-de-fuga” na elaboração de si mesmo.
Referências:
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? In:______. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 65.
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In:______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento: ditos e escritos, vol. II. Organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 335-351.
Cara, que foda. Seu blog se tornou o meu favorito. Parabéns!
ResponderExcluirExcelente e elementar! Dá gosto.
ResponderExcluirMunis, gostei muito do texto apesar de não possuir raciocínio lógico para entender a filosofia hahahahahhaha.
ResponderExcluirMuito obrigado a todos pelos comentários e palavras de estímulo.
ResponderExcluirAbraços!
Muito Bom Munís, principalmente pela clareza e transparência nos conceitos. A discussão sobre a maioridade, pelo viés kantiano, ao meu ver, se faz de estrema necessidade na atualidade, onde as pessoas parecem ter consciência do que é a má fé sartreana e nela se apoiarem e quando questionadas alegam ignorância (traços expressivos de menoridade)... essa mesquinha transferência de tutela que mascara a vivência intensa e sincera da vida. O presente está posto nas singularidades da vida, como diria Dilthey, e o fluxo da história prossegue e os valores continuam em jogo diante da pretensão de validade universal.
ResponderExcluirMarcelo Silva.
Tenho muito apreço por tudo que leio aqui. Sou um professor de história que tenta levar aos alunos algo de arqueológico no entendimento de nação. Ir além da linearidade tradicional e etapista do progresso da civilização ocidental é um esforço que exige redimensionar todas as práticas da sala de aula. Mas é sempre libertador...
ResponderExcluirObrigado pelo comentário, meu caro. Fico realmente feliz quando encontro pessoas como você por aí. Dispostas a provocar alguma diferença em suas vidas e estimular que os outros façam o mesmo. Abraços!
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