sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Liberdade de que somos escravos

O que é liberdade? Essa resposta parece tão óbvia. Mas é difícil de ser explicada. Liberdade é uma palavra que a gente vive usando, mas dificilmente para para pensar qual realmente é seu sentido. A liberdade pode ser um paradoxo na medida em que, se levada às raias do infinito, ela se aniquila. Vou tentar esboçar uma explicação aqui sobre pelo menos duas acepções do termo liberdade.

A primeira acepção é chamada de liberdade negativa. Acredito que esse entendimento seja o mais comum em nossos usos cotidianos. A liberdade negativa se explica pela ausência de coerção sobre nós. É quando não existe uma pressão externa física ou imaterial nos impedindo de realizar algo. Mas quando usamos a palavra “externa”, para descrever algo que age, obviamente, exterior a nós, começa o primeiro problema sério. O que de fato é "só" nosso? O que torna algo fora de mim ou dentro de mim? Imaginem o quanto "recebemos" de fora desde que nascemos, inclusive, para tornarmos quem nós somos. A própria noção de liberdade é construída como algo que chega de fora. Mas vamos deixar essas impertinências em suspensão para voltarmos a descrever a liberdade negativa.

A liberdade de ir e vir, por exemplo, é um tipo de liberdade negativa. Chamada negativa porque nega a participação-intervenção de outros. Esse tipo de liberdade é conhecido nas ciências humanas como liberdade liberal. Liberal, aqui, se refere a uma cultura política, uma “doutrina” filosófica e, por que não, a uma escolha política que se relaciona ao liberalismo. E não no sentido (senso comum) que pensamos significar, que geralmente designa uma pessoa como liberal se ela é permissiva - embora guarde uma relação intrínseca com essa caracterização sim. A liberdade liberal termina quando a do outro começa (lembram-se das tediosas aulas de história, filosofia e sociologia durante a escola?). 

A liberdade do liberalismo tem uma historicidade particular que aparece, sobretudo, a partir do momento de luta contra um Estado absolutista, centralizador, que censurava as liberdades religiosas. Daí a reforma de Lutero ser chamada de liberalismo religioso, pois representava uma reação contra os sacerdotes – padres, bispos, freis, papas - da Igreja Católica que funcionavam como intermediários entre os fiéis e Deus, submetendo os fiéis as autoridades deles caso quisessem “consultar” a Deus. As liberdades de expressão e imprensa (criticar o rei em público ou as verdades consagradas pela Igreja era assinar o “atestado de óbito”). As liberdades de ir e vir (as pessoas não podiam se mudar das cidades que nasciam. A não ser que fossem ligadas a nobreza e etc. As liberdades políticas (luta contra lideranças como Luís XIV de França, o rei que achava que era o sol). Há, além destes, outros exemplos. Nesse tipo de liberdade é suprimida a existência de intermediários; ela é, portanto, individual. A liberdade negativa se resume a liberdade de... Isto é, em relação a alguma coisa. Deve ser entendido como o seguinte: liberdade de pagar impostos. É a liberdade na qual estou "liberado" de tal tarefa/obrigação.

A segunda acepção é conhecida como liberdade positiva. Aparece conceitualizada pela primeira vez na obra Do Contrato Social do frânces Jean-Jacques Rousseau. Nesse tipo de liberdade, o indivíduo estaria livre para fazer algo. Isso dependeria de que ele já tivesse conquistado, em tese, a liberdade negativa - na qual não existem poderes externos atuando sobre ele. Agora, sem intervenção e dominação, ele estará livre para com outro estabelecer as regras que lhes convirem. Quanto mais houver acordos entre duas ou mais partes, que as satisfaçam igualmente, suas liberdades se tornarão cada vez maiores. Analisemos: a liberdade positiva agora nos possibilita que troquemos saberes, experiências, faculdades humanas, produtos sem que estes agridam a liberdade - negativa - de ninguém, conforme um acordo. A liberdade negativa levada ao extremo pode se tornar uma privação de quase tudo. Isolados, podemos fazer o que bem nos entender... pois não precisamos dos outros e quanto menos precisar deles mais livres seremos. Dominá-los e escravizá-los para que trabalhem para nós só mostraria o quanto somos dependentes deles e, portanto, não seríamos livres - no sentido de liberdade negativa. Neste caso, estaríamos livres de trabalhar, mas não estaríamos livres de precisar que alguém nos alimente. Neste sentido a liberdade positiva pode ser descrita como uma liberdade para... Uma liberdade que me concede uma possibilidade e que me dá alguma coisa. É uma liberdade social, não individual.

A liberdade dos filósofos

Por isso Marx critica Adam Smith em O Capital. Porque, afinal de contas, Smith em A Riqueza das Nações reivindica uma liberdade negativa; uma liberdade dos monopólios, das centralizações, das corporações, da escravidão que restringiam a livre circulação (ir e vir) dos trabalhadores e dos produtos. Ele dizia que agora os trabalhadores eram livres. Mas o sentido é de que são livres de e não livres para. Por isso Marx vai dizer: “sim, são livres como pássaros, e como pássaros não possuem nada, não tem proteção, não tem propriedades, só possuem a prole, por isso são proletários”. Sem dúvida a liberdade negativa é importante, mas só ela, solta e solteira serve apenas para tornarmo-nos escravos de nós mesmos. Pensem bem: a cada dia conhecemos algo que vem do exterior, aprendemos com o que vem de fora. Até na luta por nossa liberdade. Imaginem se não tivéssemos nenhum grau de “ligação social”, nenhum pouquinho de “prendimento”. Creio que, na condição de humanos, não sobreviveríamos. Por isso, a liberdade absoluta é algo impossível. Bakunin, contrariando a máxima liberal de que “a minha liberdade termina quando a do outro começa”, disse certa vez: “a liberdade do outro estende a minha ao infinito”! Claro, aqui ele levava muito a sério a liberdade nas duas acepções, no sentido de não precisar do outro, a não ser que a liberdade desse outro e a minha aumente com nossas necessidades coletivas, o que se tornaria liberdade positiva.

Por sua vez, Maurice Merleau-Ponty disse que “nunca há determinismo e nunca há escolha absoluta, nunca sou coisa e nunca sou consciência nua”. Todas as escolhas da vida têm alguma motivação, algum resquício do que é o social, do que não é liberdade no sentido de estar completamente solto. Mas também suas escolhas não são determinadas totalmente pelo o que ele apreendeu no social. Nesse caso a liberdade é paradoxal. Ela só aparece quando pensamos em seu oposto que é a escravidão e a prisão, mas só através das últimas é possível pensar a liberdade, porque é preciso algum grau de escravidão e de prisão para nos tornarmos livres.

O pessimista Emil Cioran disse que a única explicação para querer continuar vivo é justamente a possibilidade que ele tinha de se matar. Só é vivo pela liberdade que tem de tirar a própria vida, se não a tivesse já teria se matado. Sêneca disse que um homem só é inteiramente livre quando se mata. E Nietzsche reiterou que até para se matar ele é escravo do próprio corpo.

E você, ainda acha que é livre?

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