sábado, 2 de julho de 2016

Como usar o terrorismo para manter uma ditadura: Assad e a Síria


“Se Gandhi passasse três meses na Síria, ele seria um extremista jihadi”.
(Muhammad Habash)


Amjad Rasmi é um premiado cartunista jordaniano que trabalha para o periódico árabe Asharq al-Awsat cuja matriz localiza-se em Londres. Suas charges são geralmente sátiras a elementos da hipermodernidade, como as redes sociais, e também sobre questões políticas relacionadas ao Oriente Médio. Meses atrás ele publicou o cartum postado aqui ao lado do texto, fazendo uma homenagem (e uma paródia) à obra “Saturno devorando um filho”, pintada por Francisco de Goya no início do século 19. O trabalho prefigura uma crítica ao regime do ditador sírio Bashar al-Assad no contexto da guerra civil que se desenrola na região desde 2011, quando eclodiu a chamada “Primavera Árabe”. Assim que bati o olho me lembrei do livro que li ano passado a respeito do Estado Islâmico e sobre o qual escrevi no post anterior. Isso porque uma das teses principais deste livro é que o terrorismo na Síria, inclusive a atuação decisiva e brutal do Estado Islâmico na guerra, bem como o acirramento do sectarismo étnico-religioso, tem como um de seus principais responsáveis o governo de al-Assad. Segundo os jornalistas Hassan Hassan e Michael Weiss, o ditador sírio soltou deliberadamente inúmeros prisioneiros perigosos pouco depois do início das revoltas contra sua ditadura. Seu intuito teria sido o de chamar atenção e conquistar a ajuda das autoridades internacionais para a sustentação do governo, tendo em vista que o terrorismo agora estaria misturado a inúmeros grupos insurgentes não-terroristas, como o Exército Livre da Síria e o YPG (Unidades de Defesa do Povo) – o primeiro formado por ex-combatentes do Estado e o último composto por uma parcela significativa de mulheres curdas. Isto é, trata-se nada mais do que uma estratégia de Estado contra uma deposição como houve com outros ditadores recentes no mundo árabe.

Na mitologia greco-romana, Saturno (ou Cronos) é o deus-titã que devora seus filhos assim que nascem. A prática de Saturno vem do medo da realização de uma profecia feita logo após ele próprio ter matado e deposto seu pai, um deus autoritário (Céu, Urano) que, por sua vez, enterrava seus filhos no ventre da esposa (Gaia, Terra) para que eles não viessem à luz. Ou seja, trata-se de uma mitologia cíclica sobre deposições e substituições (Cf. GRIMAL, 1982). Mas não, não é o caso de Bashar al-Assad. Ele não teve que depor nem tampouco matar o pai. Nem física nem simbolicamente. De semelhança com a mitologia eles só têm o autoritarismo. Hafez al-Assad foi um general das Forças Armadas e, após um golpe de Estado, governou a Síria de 1971 até 2000, quando morreu de infarto. O médico oftalmologista Bashar al-Assad o sucedeu no governo, onde está até hoje. Pai e filho são do Partido Baath. Cercado por teocracias, o partido pretende-se secular e foi criado sob influência do socialismo de meados do século 20 e defendia a união de todos os povos árabes sob um único Estado, o pan-arabismo. Além disso a família Assad é alauita, isto é, pertencem ao grupo étnico-religioso dentro do xiismo islâmico que, apesar de compor apenas 13% da população na Síria, detém a liderança política a mais de quarenta anos, como se pode ver.

Tudo ia muito bem, tudo ia muito bom, pensava Assad mesmo após estourar as revoltas no norte da África e adjacências – primeiro na Tunísia, depois Argélia, Jordânia, Egito e Iêmen. Ele deu uma entrevista em janeiro de 2011 sem demonstrar preocupação de uma revolução atingir seu domínio. Foi então que sírios começaram a se manifestar em apoio às insurgências fora de seu país mas ali no meio havia um cartaz indicando a esfera doméstica, “o povo sírio não será humilhado”, dizia. E tudo entrou em combustão quando prenderam um grupo de garotos que fazia protesto em sua escola com pichações pró-democracia, uma diretamente dirigida ao médico-presidente sírio na qual se podia ler: “É sua vez, Doutor!”. A situação piorou quando os pais dos garotos reivindicaram a soltura dizendo “estes são nossos únicos filhos”, ao que foram respondidos por um general, primo de Assad, “pois tragam aqui suas mulheres que faremos outros filhos nelas”. Não ficou só na provocação. De fato, órgãos internacionais registraram inúmeros estupros e gravidezes indesejadas resultantes da violência de soldados de Assad {clique aqui para ler a citação}. Daí em diante o protesto se espalhou, seguido por repressão do Estado com prisões, torturas, choques, estupros e execuções. Mais de 150 mil foram presos. Mais de 200 mil morreram desde então, inclusive por vias de armas químicas. Com medo de ser derrubado, Assad, assim como Saturno, passou a devorar seus próprios filhos: o seu povo.

Contudo, o terrorismo de Assad, de acordo com o que escrevem Hassan e Weiss, não é feito apenas diretamente pelas mãos de seus soldados. Há também, como mencionei no início do post, um estratagema cruel. O ditador usaria uma tática segundo à qual você deve prever um incêndio em sua casa e logo depois queimá-la para acertar a previsão. Não à toa os combatentes e apoiadores do presidente utilizem a máxima “Assad, ou queimamos o país”. Pois é bem isso que ocorre. Além da campanha de fome imposta, provocada quando o exército estatal sitia uma cidade, há outros mecanismos de morte em funcionamento.

Mesmo o Partido Baath promovendo em tese um governo secular e apesar da maioria numérica de sunitas estar representada no governo (a esposa de Assad é sunita, bem como alguns de seus generais e ministros), existe alguns fatores complexos no contexto de guerra civil e envolvimento internacional. Há a provocação a sunitas para que estes cometam atos extremos, assim, afastando-os dos demais (alauitas-xiitas e cristãos) e provocando a preocupação da comunidade internacional sobre um possível extermínio das minorias no país. Deste modo o sectarismo da guerra é tanto fruto do domínio de uma seita minoritária sobre uma maioria rebelde, como da disputa muçulmana sobre a linhagem do Profeta (mais de 70% da população é sunita). Este jogo precisa ser alimentado como estratégia de poder. Desde que estourou a guerra civil, o governo começou a pagar bandidos conhecidos como Shabiha (em sua maioria alauitas) para disseminar o crime e o terror. As Nações Unidas comprovaram o esquema. Os Shabiha durante a revolução entravam nas casas cometendo diversas atrocidades sem serem importunados pela polícia, enquanto o governo se dizia sem envolvimento. Devido a essa série de coisas os próprios aliados e combatentes de Assad tem o abandonado, se integrando a forças insurgentes como o Exército Livre da Síria.

Neste contexto, de acordo com Hassan e Weiss, o Irã desempenha uma função semelhante à dos Estados Unidos no Iraque, fazer ocupação militar e manter a união do exército nacional sírio. Alianças e financiamentos com grupos terroristas têm sido prática comum do governo assadista para se manter no domínio. As Forças Quds e o Hezbollah libanês, por exemplo, teriam sido responsáveis por treinar exércitos para combater os rebeldes e recuperar territórios perdidos, devido ao enfraquecimento do exército nacional.

Diante de pressões por reformas em 2011, Assad promoveu anistia para alguns presos políticos. Mas estes foram escolhidos a dedo para alimentarem o caos da situação. A maioria é composta por salafistas-jihadistas que, logo após saírem da prisão, foram compor as fileiras de al-Baghdadi no Estado Islâmico. Em janeiro de 2014, o Major-general Fayez Dwairi, um ex-oficial de inteligência militar sírio, afirmou ao jornal baseado em Abu-Dhabi, o National:

“ – Muitas das pessoas que estabeleceram o Jabhat Al Nusra foram capturadas pelo regime em 2008 e estavam na prisão. Quando a revolução começou, eles foram soltos seguindo o conselho de oficiais da inteligência síria, que disseram a Assad: ‘eles farão um bom trabalho para nós. Há muitas desvantagens ao deixá-los partir, mas há mais vantagens, pois convenceremos o mundo que estamos enfrentando o terrorismo islâmico’”. Outro ex-soldado, que trabalhou doze anos no próprio Diretório de Inteligência Militar da Síria, disse algo no mesmo sentido:

“ – O regime não apenas abriu a porta das prisões e deixou os extremistas saírem, ele facilitou o seu trabalho, em sua criação de brigadas armadas – disse o oficial de inteligência, um alauita que havia desertado de sua unidade na região norte da Síria no verão de 2011, ao National. – Isto não é algo de que ouvi rumores a respeito, na realidade ouvi as ordens, eu vi isto acontecendo. Essas ordens vinham do quartel general [da Inteligência Militar] em Damasco. O regime também disponibilizou uma abundância de armas para estes extremistas em Idlib e Deraa, acrescentou o oficial” (WEISS; HASSAN, 2015, p. 140).

Saturno de Goya
Segundo a mitologia, depois de devorar seus cinco primeiros filhos, Saturno é deposto pelo sexto, Júpiter (Zeus para os gregos). Mas ele recebe ajuda para tal tarefa. É sua mãe Cíbele (Réia) que, cansada de ver seus filhos mortos, ludibria o marido, fazendo-o engolir uma pedra no lugar do corpo do recém-nascido. Já crescido e com ajuda de seus irmãos, regurgitados após Saturno tomar um veneno, Júpiter luta contra seu pai e contra seus aliados titãs, vencendo-os e se tornando o deus mais importante do Olimpo. O mito de Saturno, cujo nome grego é Cronos, se confunde com a metáfora do tempo cronológico que destrói aquilo que acabou de gerar, transformando ininterruptamente o presente em passado. O fim de Cronos seria o fim dos tempos? Coincidentemente Bashar al-Assad, em sua primeira entrevista a uma mídia ocidental após o início dos protestos, descreveu o cenário sírio como apocalíptico. Talvez seja o fim mesmo. Mas sob a perspectiva do próprio Saturno. O fim da ditadura da família Assad e o despoletar de uma outra era para o povo sírio. Mas tomara que não precisem de um outro deus autoritário para fazer este duplo trabalho hercúleo: destronar Saturno e reconstruir o país com os escombros que sobraram. A democracia agradeceria.

Referências:

GRIMMAL, Pierre. A mitologia grega. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982.
WEISS, Michel; HASSAN, Hassan. Estado islâmico: desvendando o exército do terror. São Paulo: Seoman, 2015.

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