sábado, 9 de julho de 2011

A natureza do homem é (des)fazer-se.

Tenho duas amigas de nomes bastante peculiares, Fayga e Sálua, com as quais dialogo cotidianamente sobre política, história e outros assuntos. A primeira é “recém-chegada” de uma experiência de intercâmbio em Portugal e, se mostra pouco paciente com o comportamento social dos brasileiros em relação ao desrespeito com o próximo. A última está beirando um niilismo essencialista, se mostrando descrente com o ser humano em geral e chegando a postular que o homem constrói a sociedade partindo do ponto de seu “egoísmo de nascença”. Todas as duas colegas instigam meus pensamentos; ou com suas posições definidas, ou com suas dúvidas inquietantes e provocativas que me lançam. Certamente que esta discussão em torno da natureza humana atravessa milênios, mas gostaria de em poucas linhas expor alguns comentários.

Para começo de conversa, se pudermos adiantar os postulados de Aristóteles, “o homem é um ser social”. Mas que significa dizer isso? Significa que o homem é um único animal que modifica seu meio ambiente e as relações com os de sua mesma espécie. É ele que constrói, em conjunto, seu próprio ambiente e o modo como se relaciona com os Outros, sobretudo, através da cultura. É esta que nos diferencia dos demais animais, e que nos tornam humanos; sem apreender e aprender seríamos somente “animaizinhos” com nossa constituição biológica. Prova disso são os chamados meninos-lobos: crianças encontradas depois de longos anos vivendo em isolamento da sociedade, as vezes, convivendo com animais selvagens e, que por isso, demonstraram comportamentos bem semelhantes a eles. Defecavam em público, não sentiam frio, não sabiam falar, utilizar o banheiro, tampouco assistir o “Vai Dar Namoro”.

Gostaria de salientar que não é somente com a instrução oral sobre o que é certo e o que é errado que aprendemos a nos comportar, aliás, isto representa um ínfimo de nossa educação humana, e talvez possa ser até anulada se as práticas sociais que observamos e com a qual nos inserimos no meio são contrastantes. Nossa condição (e não natureza) humana se edifica sobretudo através das experiências sensíveis que envolvem o pensar, o agir e o sentir. Não é possível que o homem se torne mal, desrespeitoso, egoísta, se essas possibilidades não estiverem dispostas, oferecidas e aprendidas no meio social. Também é quase impossível (a não ser que seja divino e não-humano) que seja altruísta, misericordioso, benevolente vivendo em um meio social onde quem pratica esses valores são desfavorecidos ou considerados otários. Depois de um pouco de teoria, vamos para um estudo de caso.

Uma de minhas amigas diz andar contrariada com as atitudes dos brasileiros. O desrespeito, o machismo e o assédio rude com as mulheres; a intolerância e impaciência com os “deficientes”, idosos e homossexuais; o “jeitinho brasileiro” de querer tirar proveito das coisas e das pessoas; a indiferença com o meio ambiente; a lei da selva no trânsito; a violência; são aspectos que fazem com que ela pense em se mudar, impreterivelmente, para Portugal. O senso comum pode dizer que ela está certa, afinal, o Brasil é um país de “terceiro mundo”, economicamente atrasado e com uma série de problemas sociais diretamente relacionados com a falta de dinheiro.

Mas vejam bem! Portugal passa por uma das maiores crises econômicas de sua história, pessoas desempregadas, cadernetas de poupanças reduzidas, idade para aposentadoria aumentando, políticas de contenção à imigração, recorrência a empréstimos pela União Europeia e etc. Então, como ainda conservam a educação, o respeito e a tolerância com próximo se são as condições do meio que “determinam” a estratégia de comportamento dos indivíduos? A experiência histórica do país contribui para entendermos isso.

Como todos estamos carecas de saber, nós brasileiros, fomos colonizados por Portugal. Pode-se dizer que o Imperialismo representou um degrau significativo para o Capitalismo[1]. Neste período, os bigodudos usaram e abusaram das colônias portuguesas. Foram séculos de coação e exploração. Comportamento nada “civilizado”, né? Mas, após terem mergulhados em piscinas cheias de moedas de ouro extraídas do Brasil através do trabalho escravo africano, os portugueses atingiram um nível econômico considerável, depois, procuraram distribuir a renda de modo mais igualitário[2] aos seus cidadãos para conter revoluções que solapariam o capitalismo[3].

Nesta etapa de luta por uma melhor qualidade de vida, o atropelamento desenfreado de uns pelos outros no capitalismo ascendente representava um entrave para atingir tal estágio. Quando as condições de renda possuem uma paridade maior, é possível que outros valores, que não o da disputa por espaço e por dinheiro, ganhem uma alavancada relevante. Aqui, os cidadãos já podem reconhecer que o respeito, a tolerância, a solidariedade são condições imprescindíveis para uma boa qualidade de vida. O outro deixa de ser concorrente e passa a ser colaborador numa espécie de ajuda mútua[4]. Deste modo, a cultura do respeito gestada nesses longos anos consegue sobressair à luta de todos contra todos, que já não faz mais sentido algum. Neste momento histórico contemporâneo em Portugal, mesmo diante da crise, a cultura do respeito ao próximo consolidada representa um entrave no pisar na goela do próximo para conquistar a todo custo um lugar ao sol numa sociedade capitalista de recessão econômica. Agora, caso a crise perdure por muito tempo não sabemos até quando essa cultura vai resistir.

E no Brasil? Me parece que essa cultura do respeito ainda não foi “ovulada”. Primeiro porque nossa experiência histórica é muito diferente de Portugal. Nós fomos a colônia! Somos um país muito maior, com uma diversidade étnica, regional e geográfica bastante significativa, conseguimos nossa independência a menos de 200 anos (será que conseguimos mesmo?), acabamos de sair de uma Ditadura Militar e temos muito ainda a aprender com as experiências recentes.

Mesmo que atingir uma determinada ascensão social atualmente aqui seja mais “fácil” que em Portugal, ainda estamos na fase de pisar na goela do outro para conseguir nosso espaço, não tem vagas de emprego para todos; essa é uma dinâmica constante no capitalismo em ascensão. É deste modo que vemos reinar acontecimentos cotidianos como: esvaziar o pneu do concorrente da mesma vaga de emprego que almejamos; acotovelar as pessoas para entrar no transporte coletivo e sentarmos sem amarrotar nossos uniformes; acelerarmos o carro para passar no sinal amarelo mesmo quando pessoas já se posicionam na faixa de pedestres; estacionar na vaga de deficientes e idosos para que nosso belo veículo comprado em 400 prestações não descasque no sol; ou seja, estabelecer nossos princípios morais e éticos logo após as consequências que nos gerarão lucro e vantagem sobre o outro. Como disse, a cultura do respeito ainda precisa ser gestada no Brasil, mas até que as condições dignas de renda estejam ao alcance de todos, se torna quase que impossível um “santo nascer” altruísta, cordial e respeitoso.

As coisas mudarão? Provavelmente! Agora, se para melhores isso não podemos prever, pois o ser humano é imprevisível nas diversas maneiras de surpreender a si mesmo.
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1E caminham de mãos dadas hoje sob outra forma: o imperialismo de mercado. No qual os países desenvolvidos economicamente entopem de produtos materiais e simbólicos os países “periféricos”, exercendo desta maneira forte influência na formação dos valores morais, nos padrões estéticos e outros.
2Chamado Estado de Bem-estar Social, ou Welfare State.
3Este apontamento é somente uma hipótese bem generalista que desconsidera outros fatores.
4Aristóteles afirma que só é possível existir Justiça entre Iguais.
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