
O filósofo é chamado equivocadamente de
niilista. Aliás, tal característica foi explicitamente usada por ele para fazer uma
crítica a nossa sociedade. É possível que Nietzsche seja um niilista, mas não
no sentido do termo em voga, segundo o qual descreve o indivíduo descrente que rejeita qualquer
tipo de hierarquia de valores estéticos, éticos, políticos e etc. Nietzsche teria
utilizado esse adjetivo para criticar justamente uma determinada época da
modernidade, inclusive, sem saber, o seu futuro – nosso presente.
Para Nietzsche o niilismo começa com o
período socrático grego e se estende até a modernidade ocidental. Contudo, o
niilismo é atravessado por diversas fases e sofre mutações durante o tempo. Possui uma historicidade. Na época antes de Sócrates, isto é na Grécia Antiga, não havia
o niilismo, pois a religião era politeísta e composta por seres antropomórficos, na qual os deuses inclusive se pareciam com os seres humanos. Não havia uma regra
geral nem um princípio norteador que determinasse os conceitos de bem e de mal. Os
diferentes deuses olímpicos afirmavam a diversidade e a multiplicidade de existência.
Neste sentido, Nietzsche acreditava que o politeísmo grego pré-socrático legitimava a liberdade
e a pluralidade do pensamento humano.
O aparecimento do niilismo coincide com
a decadência do politeísmo grego e com a ascensão do monoteísmo judaico-cristão. Devido
a uma grande rigidez moral que se quer orientadora da existência humana, o
conflito e a hostilidade, que são os princípios instintivos inerentes à vida para
Nietzsche, são renegados, considerados males, com o advento da ética do “bem de todos”. Toda ação afirmativa que pretende ser
potencialmente criadora da existência humana é rejeitada e a exaltação dos fracos
tornar-se uma apologia da impotência em oposição à força criativa. Esta nova
característica cultural chamada de niilismo incompleto é a negação da vida. Não
da vida como acontecimento, mas sim da vida enquanto ontologia, enquanto criação
incessante de si mesmo. Daqui podemos entender a dimensão da crítica do
filósofo ao cristianismo compreendido, por ele, como a "moral dos escravos". Isto é, a religião que exalta os
fracassados, inventada a partir da pobreza, não só material, mas espiritual. E que
promete a esses fracassados uma outra vida - agora de abundância - ao preço que
neguem essa vida, a vida terrena.
Por isso o cristianismo é considerado
uma filosofia niilista que prega a negação da vida. A criação e o conflito não
são mais os valores que orientam a existência, estes são substituídos pela compaixão.
Ou seja, o sentido de existência agora é transcendente, ele está fora do
próprio ser. “A moral que se instaura termina por fazer uma apologia exclusiva
do sofrimento. Esse sofrimento é criado, mantido e exaltado pelo cristianismo.
Nota-se assim que a existência da moral, da verdade e do bem são totalizações
de ordem filosófica que guiam a vida social produzindo um enfraquecimento da
vida, um vir-a-ser nada, afinal niilismo” (RIBEIRO, 2008, p. 05).
Assim, após a melhor época grega vieram
os filósofos da moral. Platão, já estando impregnado de moral, inventou o
conceito de bem supremo. Houve antes a filosofia que instaurou a racionalidade
e engendrou a oposição verdade/aparência. Platão fechou a tampa do caixão escrevendo "o mito da caverna" com a oposição de luzes/trevas. Portanto, começará a
vigorar a chamada filosofia da Vontade de Verdade. Mas, a verdade, nesse caso, é
o absoluto. Algo transcendente e exterior que atribui o sentido de existência
aos seres e a noção de verdade ou de mentira às coisas. Portanto, para Nietzsche
a invenção de Deus, o todo-poderoso, o demiurgo maçônico, o deus-único, o Uno platônico[1], o
Absoluto hegeliano é parte de uma única totalização que se quer norteadora da
existência e da expressão de verdade dos seres e das coisas. De igual modo
quando a ciência critica a religião, e obriga desacreditar “nessas mentiras”,
nada mais está fazendo do que se pautar por uma Vontade de Verdade de acordo com uma moral similar.
Com a morte de Deus anunciada, não foram
poucos os que tentaram (e ainda tentam) tomar seu lugar: a ciência, a
tecnologia, as consciências revolucionárias. Todos arrogantemente crentes de
uma verdade absoluta que prometeria uma vida plenamente feliz após a negação da
nossa existência em favor de algo exterior a nós. A Vontade de Verdade é um
niilismo incompleto, pois é a negação da vida como criação, mas busca um
sentido totalizador para ela.
O niilismo completo é o que rejeita qualquer
possibilidade de existência de algum sentido totalizador à realidade e à vida.
Essa espécie de niilismo não aceita mais a crença em um verdadeiro mundo, ela é
ainda um niilismo passivo como no niilismo incompleto, pois apesar de abandonar
a credulidade em algo que dê sentido a existência e a realidade fora de si,
ainda assim nega a criação. Talvez essa seja a fase mais nítida que passamos na
contemporaneidade - exacerbada pelo relativismo absoluto dos autores pós-modernos
que tentaram se desembaraçar dos ideais da modernidade (liberdade, igualdade,
fraternidade, progresso, desenvolvimento, emancipação) quando se desiludiram
com o cenário internacional do pós-guerra, a ascensão dos totalitarismos (de
direita e de esquerda), as crises do capitalismo, a destruição ambiental e etc.;
o esvaziamento das participações políticas tradicionais e dos movimentos
sociais; a violência urbana e a respeito à alteridade; a fuga para a
neurose que rejeita a realidade do mundo através das drogas, das orgias, das
ortodoxias religiosas. Todos, sem dúvida, atravessados pela dor e pela
impotência. Ressentidos com as promessas de um futuro grandioso pelo Iluminismo
e pela fé na razão.
Todavia, tais filósofos e atores sociais
não podem ser confundidos com a personalidade de Nietzsche. Eles foram apenas
pacientes da filosofia "terapêutica" do bigodudo. Nietzsche acredita que o
niilismo contemporâneo é um niilismo completo porém ainda passivo. Com efeito, ele é
um passo importante para a próxima fase, que seria a do niilismo ativo. Conforme o
autor, a partir da descrença nos ideais totalizadores e transcendentais, que dão
sentido à realidade e à existência, é possível surgir um momento no qual o ser
humano (chamado além-do-homem, ou übermensch
em alemão) poderia ser capaz de criar novos mundos a partir de si mesmo. Tal empreendimento seria a retomada da capacidade inventiva da vida e da
vontade de potência.
A proposta da filosofia nietzschiana não
se trata de criar utopias (não-lugares), mas heterotopias (lugares-diferentes). Não se trata de resistir, mas de reexistir.
Referências:
Referências:
NIETZSCHE,
F. O Anticristo:
Maldição do Cristianismo. Rio de Janeiro: Newton Compton, 1996.
______. O Niilismo. In:
Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1978.
______. Genealogia da Moral.
São Paulo: Brasiliense, 1988.
RIBEIRO, A. Niilismo e pós-modernidade. Revista Litteris. Rio de Janeiro, v.1, nov. 2008.
[1] E
aqui podemos relembrar que a filosofia grega – Platão e Aristóteles – foi
retomada na Idade Média pelos filósofos sacerdotes cristãos Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino para explicar a existência de Deus, a divisão entre dois
mundos, que por sua vez sistematizou a ideia de verdade/mentira, luzes/sombras
da ciência.
* A imagem (charge) apresentada no post é um entendimento possível da filosofia de Nietzsche. Nela podemos ver a luta entre as morais. O símbolo da força é representado pelo escudo do leão, enquanto a da compaixão e a da misericórdia é representado pelo escudo da família. Podemos perceber que o lutador menor, provavelmente sugerido pelo chargista como perdedor em potencial está com o escudo da família, entretanto, o lutador maior titubeia diante da figura da família alí representada por seu adversário. Cobertos por nossa moral cristã não há dúvida que sem pestanejar torceremos pela vitória do lutador mais fraco. A charge é uma provocação de Quino, conhecido autor dos quadrinhos de Mafalda.
* A imagem (charge) apresentada no post é um entendimento possível da filosofia de Nietzsche. Nela podemos ver a luta entre as morais. O símbolo da força é representado pelo escudo do leão, enquanto a da compaixão e a da misericórdia é representado pelo escudo da família. Podemos perceber que o lutador menor, provavelmente sugerido pelo chargista como perdedor em potencial está com o escudo da família, entretanto, o lutador maior titubeia diante da figura da família alí representada por seu adversário. Cobertos por nossa moral cristã não há dúvida que sem pestanejar torceremos pela vitória do lutador mais fraco. A charge é uma provocação de Quino, conhecido autor dos quadrinhos de Mafalda.