Escrita
em 1897, a obra O Suicídio é um
clássico da sociologia. Até hoje ela é lida por estudantes e pesquisadores das
ciências humanas como exemplar singular de fundamentação empírica na análise da
sociedade. Establet (2009) aponta que trabalhos de Durkheim relacionados às
esferas do trabalho e da religião não foram tão utilizados quanto O Suicídio.
Muito pelo contrário, algumas tabelas e mapas usados em obras sobre religião,
mais lembram os mapas em O Suicídio
do que, por exemplo, As Formas Elementares da Vida Religiosa. Neste
texto, faremos uma explicação sucinta sobre as três formas de suicídio
caracterizadas por Émile Durkheim, e um breve comentário relacionado ao caso
dos índios Kaiowas.
Embora
acreditemos que o fenômeno comportamental do suicídio esteja ligado muito mais
a ordens individuais do que coletivas, sobretudo por se tratar, na grande
maioria dos casos, de acontecimentos isolados, Durkheim defende que as causas
destes fatos são gestadas na e pela sociedade. O autor define suicídio como o
ato praticado pelo indivíduo com o intuito de desfazer-se de sua vida, sendo
que o objetivo final deve ser conscientemente expressado pelo causador do ato.
Ou seja, o suicida deve saber necessariamente o resultado final que ele mesmo
está praticando independente da participação de outros. Durkheim divide o
suicídio em três tipos: egoísta, altruísta e anômico.
O
suicídio egoísta é aquele cujos
interesses do indivíduo estão acima da sociedade. Isto acontece, segundo o
sociólogo, especialmente em sociedades “superiores”, mas com determinadas
carências de integração entre sociedade e indivíduo – é preciso salientar aqui
que Durkheim chama de “superiores” as sociedades ocidentais modernas em contraposição
às sociedades “primitivas”, tribais ou indígenas. Durkheim diz que o homem é um
ser duplo, possui uma personalidade
individual e uma coletiva, esta última representa um padrão comum entre
todos os indivíduos. Quando a sociedade, por alguma falha, não consegue
penetrar seus valores coletivos de pertencimento e de existência no indivíduo,
este pode causar sua própria morte caso algo relacionado apenas à sua vida
particular tenha originado uma decepção, uma desilusão, uma descrença; tendo em
vista que os valores individuais são, nesta situação, maiores do que o sentido
de existência ligado ao coletivo.
Durkheim (1858-1917) |
Se
o baixo grau de integração entre sociedade e indivíduo pode acarretar o suicídio egoísta, o oposto, quer dizer,
o grau acentuado de integração entre sociedade e indivíduo, pode desencadear o suicídio altruísta. Neste caso, o
suicida não encontra valores em sua existência individual para continuar vivo,
pois os valores da sociedade estão muito acima dos pessoais. Este fenômeno
ocorre com maior freqüência nas sociedades “inferiores”, onde existe uma
integração demasiada, sobretudo demonstrada pela religião (crença, rituais
comuns) que dá o significado de existência para os membros que compõem a
comunidade. Durkheim cita como exemplo o suicídio da mulher após a morte do
marido. Primeiro, os indivíduos são tratados como membros, como braços de um corpo do qual não teriam
existência fora dele. A mulher, em alguns casos, é somente uma extensão do
marido, portanto, não há mais sentido que ela viva após a morte do esposo.
Outro exemplo ilustrativo é o suicídio provocado depois da morte de um líder
religioso que norteava a direção de existência dos seguidores, deste modo, é
preferível acompanhar o mestre no além-túmulo
de que viver uma vida sem direção. Portanto, o suicídio altruísta
caracteriza-se pelo fato de existir algo maior que o indivíduo, fazendo com
que, de acordo com o acontecimento, o sentido de continuar existindo não esteja
mais nesta vida.
O
último tipo de suicídio descrito por Durkheim é chamado de anômico. Entende-se por anomia um afrouxamento nos laços sociais, mas diferentemente do fator
individual, que caracteriza o suicídio egoísta, este tem a causa na própria
sociedade. Temos assim, épocas de crises econômicas densas e abruptas, que
alteram de maneira significativa os valores sociais do coletivo e afetam com
relevância o cotidiano do indivíduo e causam o suicídio anômico. Durkheim
explica que o suicídio anômico é
causado quando o indivíduo não reconhece mais sua função e utilidade em uma
sociedade por causa de uma transformação gestada por ela própria, que suprime
os valores que davam sentido a existência individual dos membros em integração
nesse organismo. Outro fator, em sociedades avançadas, é quando o indivíduo
possui um padrão de vida econômica muito alta, e então, não reconhece seus
limites, não consegue satisfazer-se com coisas simples e sempre aparenta
descontentamento.
Pitacos safados!
Acredito
que a obra de Durkheim ainda serve para nos ajudar a explicar os suicídios na
contemporaneidade (embora sua pesquisa seja direcionada para populações
específicas num recorte temporal igualmente particular). Entretanto, é necessário
expandir esses recortes provisórios (de três tipos) e talvez entender a relação
entre eles. A distância de uma pessoa às demais parece explicar um tipo de
suicídio. Que tipo é esse? Acredito que esteja próximo do egoísta e do anômico.
Nos países nórdicos como Finlândia, Islândia, Noruega e Dinamarca os suicídios
são recorrentes. População diminuta e frio intenso fazem com que muitas pessoas
se isolem no interior dos seus quartos, interagindo com o mundo virtual e se
esquecendo do social. Opa! Mas independente das condições climáticas e
demográficas essa parece ser uma situação
global na contemporaneidade. Só que, diferentemente dos países nórdicos,
os suicídios não tem aumentado por aqui. Não, não. Preferimos nos refugiar em
clínicas psicológicas, em centros terapêuticos e em remédios e drogas do prazer
instantâneo do que enfrentarmos com coragem o ato mais livre da vida, segundo
Sêneca, ou a "linha de fuga" quando não há mais linha de fuga, como fez Deleuze.
Durkheim
ainda se mostra atual para explicar por que o índice de suicídio é
proporcionalmente maior entre os ricos e a classe média do que entre os pobres.
É porque o social faz mais sentido para os pobres. O acreditar em algo. E mais.
Lutar por algo na vida, aliás, lutar
pela própria vida, pela sobrevivência mais do que as demais classes. Talvez
por estarem menos “individualizados” e correlativamente menos sozinhos do que
nós, os burgueses sem religião. Mas Durkheim é insuficiente para esclarecer a
alta taxa de suicídios dos vestibulandos coreanos. É egoísta por colocar seus
valores individuais profissionais a frente dos demais? Ou é altruísta por que o
peso do olhar dos outros (da sociedade) sobre o “fracassado”, que não conseguiu
a vaga, é pesado demais para suportar? Ou é anômico por que a única utilidade de
respeito que a sociedade atribui só pode ser desenvolvida por um profissional
graduado em uma boa universidade? Em vez de separar esquematicamente como o
mestre positivista fez, prefiro entender um entrecruzamento de fatores onde
seria impossível dissociar um de outro. A meu ver, o egoísta não é o oposto do
altruísta, mas se complementam e não podem ser compreendidos fora de uma
dinâmica de transformação da sociedade. O
“ego” (assim como o “eu”) é uma construção social. Fora de um social que
torna possível sua construção e sua diferenciação de outros “eus” ele
simplesmente inexiste.
Por
outro lado, o suicídio dos índios
kaiowas, que ganhou repercussão nas redes sociais essa semana, possui algum
grau de similaridade com o suicídio anômico. Estes suicídios já acontecem há
algum tempo. Os motivos são diversos, mas todos eles parecem relacionados com a
penetração da cultura ocidental nas aldeias, mexendo de maneira significativa
com o imaginário social dos índios que, convenhamos, já não são mais tão
índios. Estão sim, contaminados pelos nossos valores e maneiras de pensar o
mundo. Inclusive, já recorrem a meios escritos para comunicarem a respeito de
si, como pudemos ver na carta que está rodando na grande rede (que fomos
“fisgados”). O sentido de pertencimento a uma determinada comunidade que, por
sua vez, tem uma relação bastante particular com a terra, carregada por uma noção tanto
material quanto simbólica, tem se fragmentado cada vez mais que a cultura do homem-branco
adentra a área de preservação. Área essa delimitada, pelo “bondoso” homem-branco, para os índios morarem. Que disparate! Queremos que os indígenas reconheçam um conceito que nós
ocidentais inventamos, o de fronteira.
Quando, na verdade, nem nós reconhecemos ou respeitamos esse conceito, já que
invadimos o território de homens-brancos e de indígenas. Quem são os
primitivos? Podem até ser eles, que não inventaram o avião, o celular,
a Internet ou o anticoncepcional, mas os hipócritas somos nós mesmos. Invencíveis
na arte de dominar a ciência técnica, mestres em criar esquemas para enganar
a nós mesmos, porém mais idiotas ainda na arte de (des)respeitar os conceitos que nós mesmos
inventamos.
Sinceramente,
vejo as manifestações nas redes sociais como mais um reflexo da nossa hipocrisia, da nossa arrogância e do
nosso cinismo. Sim, isso mesmo. Se os índios estão desta maneira é porque nós
somos os responsáveis. Nossa população aumenta e a deles diminui. Dizemos que precisamos
de mais espaço para plantar, produzir e extrair matérias primas para
fabricarmos produtos e alimentos (in)dispensáveis para a vida moderna. Então,
vamos fazer controle de natalidade? “Ah, mas isso é atentar contra a
espontaneidade da vida”, dirão os republicanos. “Isso é querer impor uma
coerção a liberdade dos humanos”, dirão os democratas. “Isso é confiar demais
que a ciência pode governar a sociedade”, dirão os pós-modernos. “Isso vai
envelhecer a população, reduzir a mão-de-obra e falir a previdência social”,
dirão os economistas de botequim. Então, vamos fretar dez ônibus e irmos à
Brasília pressionar o governo para criar uma lei de proteção indígena (como se
isso já não existisse)? “Isso não adianta, ‘eles’ só sabem roubar”, dirá o
cidadão comum, que mesmo assim continua votando “neles”. “Não posso, tenho que
trabalhar”, dirá o trabalhador. “Não posso, tenho que estudar”, dirá o
estudante. “Não posso, tenho que entregar um projeto...” “Tenho que assistir o
Coringão em Tóquio...” As desculpas só aumentarão. Ok, então o que podemos
fazer? “Ah, vamos compartilhar a imagem deles no facebook”. Eu sei que podemos fazer muito mais que isso. Mas será
mesmo que queremos de verdade?
Acho
que é impossível nossa sociedade cometer um suicídio coletivo como os Kaiowas
mencionaram na carta, primeiro porque não temos mais “coletivo”, segundo porque
já estamos mortos.
Referências:
DURKHEIM,
E. Suicídio: definição do problema; suicídio egoísta; suicídio altruísta;
suicídio anômico. In:______. Émile
Durkheim: sociologia. Organizador José Albertino Rodrigues. São Paulo: Ática,
1981, p. 103-122.
ESTABLET,
Roger. A atualidade de 'O Suicídio'. In: MASSELLA, Alexandre Braga (org.). Durkheim:
150 anos. Belo Horizonte,
MG: Argvmentvm, 2009, p. 119-129.
Letra
da música “Kaiowas” da banda Sepultura:
This song is inspired by
A brazilian indian tribe called "Kaiowas"
Who live in the rain forest
They committed mass suicide
As a protest against the government
Who was trying to take away their land beliefs
A brazilian indian tribe called "Kaiowas"
Who live in the rain forest
They committed mass suicide
As a protest against the government
Who was trying to take away their land beliefs
Link da carta dos
Guarani-Kaiowa:
A melhor matéria que li até agora sobre o tema:
http://www.canalibase.org.br/os-guarani-kaiowa-e-as-perversidades-do-senso-comum-dos-brancos-2/
http://www.canalibase.org.br/os-guarani-kaiowa-e-as-perversidades-do-senso-comum-dos-brancos-2/