Publicada em 2009, no Brasil, a
obra Desconstruindo a história, do
historiador britânico Alun Munslow, trata-se de uma análise das principais
tendências presentes na historiografia contemporânea, tudo isso a partir de uma
perspectiva explicitamente “desconstrucionista” – inspirada em Hayden White e
Keith Jenkins (com o último, ele edita atualmente a revista Rethinking History). Neste livro, a
maior contribuição de Munslow é o mapeamento do debate (anglo-saxônico) sobre a
historiografia pós-moderna/pós-modernista e sua diferença com os demais tipos
de pesquisa-escrita da história. Destinado a iniciantes e curiosos das “ciências
humanas”, o texto abaixo é a apresentação (e as considerações) de alguns pontos
percorridos por Munslow.
Pós-modernidade, pós-modernismo
A definição de pós-modernismo feita
por Munslow demonstra mais um amadurecimento do modernismo do que uma ruptura
com este. É como se a mudança estivesse localizada mais na compreensão sobre o
trabalho que a história (enquanto disciplina) realiza do que numa nova proposta
à prática de historiar. O “posmodernismo”, escrito sem hífen pelo autor, é um
modernismo reavaliado. Na atual “era intelectual”, ele é a consciência da
necessidade de uma autocrítica acerca do conhecimento (produzido aparentemente
da mesma maneira). Isto quer dizer que, para Munslow, o “posmodernismo” é a
condição contemporânea de “adquirirmos conhecimento”. Tal condição é marcada,
sobretudo, pelas grandes dúvidas que agora temos em relação à representação exata da realidade. Antes subentendida
pela partícula “pós”, a ruptura com a modernidade é então recusada a partir do
pressuposto de que “um dos pontos principais acerca da era do modernismo
iluminista dos séculos XVII e XVIII, estendendo-se pelos séculos XIX e XX, foi
fazer questionamentos sobre como conhecemos o que conhecemos. De modo peculiar,
o modernismo talvez estivesse sempre criticando fundamentalmente a si próprio”.
Por isso, o autor é tentado a fazer a seguinte indagação: “Terá sido o
posmodernismo uma consequência inevitável do modernismo?” (MUNSLOW, 2009, p.
10).
Parece-me então que, de acordo com
Munslow, o pós-modernismo designa somente a generalização de uma
consciência/prática do conhecimento, propagada a partir dos últimos 30, 40
anos. No entanto, a maneira como a
indagação do último parágrafo é formulada nos diz mais coisas. Ela infere que,
a despeito de Munslow reivindicar a contribuição de Foucault, Barthes e Derrida
à agenda posmodernista, há uma diferença significativa entre sua perspectiva
pós-moderna e as do pós-estruturalismo (Derrida, Barthes, Butler, Lyotard,
Agamben, etc.) e da Teoria Francesa contemporânea (Foucault, Deleuze, Rancière),
ao passo que caberia construir um inventário das diferenças. Mas ao menos uma
delas é cintilante: a descontinuidade.
E aqui a descontinuidade pode ser definida não somente como ruptura de época ou
criação (e ênfase) de outra temporalidade (um novo começo), mas também como
sinônima de incongruência, de não-coincidência, de heterogeneidade das maneiras
de ver, sentir e enunciar ainda que dentro de um mesmo espaço e de um mesmo
período cronológico. Para ser mais específico, ao contrário dos teóricos
citados, Munslow subentende a existência do compartilhamento de um conjunto de
impressões, percepções e sentimentos que forma uma “era”, a posmodernista. Não
são raras as passagens em que ele enuncia o termo “consciência” para designar
essa continuidade. As “tendências” na historiografia são, para ele, três:
reconstrucionista, construcionista e desconstrucionista. Mas a “consciência” é
uma só. Para o autor, parece uma pena que as duas primeiras ainda dêem pouca ou
nenhuma atenção a tal consciência!
Foucault, em suas generalizações,
indispensáveis a qualquer exercício intelectual, prefere usar o termo episteme em vez de época – algo
ressaltado por Munslow. No entanto, o problema da abordagem de Munslow sobre
Foucault, é a desconsideração do tratamento sobre a pluralidade de epistemes numa sociedade e época
(FUNARI, 2009, online), atenção cara para se pensar a descontinuidade (e a
diferença), ainda que sob uma generalização intelectual. Já Rancière pensa as
épocas e as sociedades sendo atravessadas por distintas e mesmo antagônicas
linhas de temporalidade, reconectar uma linha a outra, as do presente às do
passado, é o que confere a possibilidade da história ser feita, caso contrário
tudo seria mais do mesmo, formações ilimitadas de continuidades e consensos.
Soma-se a tais ponderações, a teoria rizomática de Deleuze (não há uma raiz
única, mas vários rizomas descentralizados), sinalizando uma diferença cabal
com o pensamento de causa-consequência, grafado por Munslow quando questiona se
o posmodernismo seria uma consequência
inevitável do modernismo. A meu ver essa constatação parece menos
importante para a história das ideias, que busca filiar autores e perspectivas,
e mais para compreendermos que a lógica do posmodernismo não tem tanta
diferença ou distância do paradigma que pretende criticar.
A desconstrução
Boa parte do público acadêmico
iguala a desconstrução à destruição, entendendo-a como uma característica ou
sintoma do niilismo intelectual, esse mal-estar da pós-modernidade; ou, melhor
dizendo, esse não-estar da pós-modernidade, já que só declara inexistências,
ausências e impossibilidades. No entanto, embora possa ser feito um paralelo
discutível com um tipo de niilismo, essa compreensão é enganosa e às vezes
rasteira. Desconstrução não é destruição, tampouco “fim da história”. E também
não significa que a escrita da história não possa ser realizada para nos
informar sobre o passado e o mundo. Em Munslow, a desconstrução é uma maneira
de refletir sobre o trabalho historiográfico, sobre o processo de transformação
de evidências e informações do passado em história, questionando além do que o
método histórico, também a capacidade dos historiadores reconstruírem e
explicarem objetivamente o passado inferindo fatos das evidências.
Ainda nesta linha, o
desconstrucionismo é para Munslow um adjetivo para demarcar a diferença de sua
concepção de história a dos reconstrucionistas/construcionistas (empiristas).
Apesar de parecer concordar em certos aspectos com os empiristas, ao postular
que, sob todo o processo de pesquisa, a história não é absolutamente idêntica a
qualquer atividade literária, o autor afirma que: “a natureza genuína da
história só pode ser compreendida quando ela é vista não apenas e simplesmente
como um empreendimento empirista objetivo, mas como uma criação, e eventual
imposição, por parte dos historiadores de uma forma narrativa particular sobre
o passado: um processo que afeta diretamente todo o projeto, não simplesmente a
escrita. Essa compreensão, por conveniência, eu a chamarei de consciência
desconstrutiva” (MUNSLOW, 2009, p. 11).
Esta passagem demonstra que a
desconstrução em Munslow está muito mais próxima ao trabalho de Hayden White do
que do inventor do conceito filosófico de desconstrução, Jacques Derrida [seria
necessário outro post para explicar o conceito neste filósofo]. Para White, as
histórias não pré-existem como uma estória contada pelas pessoas no passado
para explicarem suas vidas e a si mesmas, mas estas são impostas do presente
por muitos motivos: explanatórios, políticos, ideológicos. Em sua obra mais
famosa, Metahistória, White (1995) constrói
um quadro para explicar como os historiadores do século 19 se utilizavam de um
conjunto de recursos linguísticos (como metáforas) para enquadrar suas
histórias em gêneros literários – romântico, trágico, cômico ou satírico.
Narrativa e (d)eficiências da linguagem
A “consciência desconstrutiva” não
só define a história como uma narrativa escrita, produto fabricado pelos
historiadores, mas também radicaliza expressando que a narrativa proporciona o
modelo textual para o próprio passado. Isto é, a história é uma invenção
literária que o presente impõe ao passado através dos recursos técnicos e
literários que dispõe. Por isso, cabe aqui atentar-se para o conceito de narrativa que, segundo Munslow, é uma
forma de posicionamento dos conteúdos explicativos como eventos em uma ordem seqüencial,
de modo semelhante quando contamos um acontecimento a alguém. Para o autor não
interessa os aparatos técnicos que a história pega emprestado das ciências
sociais ou a capacidade de explicação do passado através da narrativa, nem “o
passado tal qual aconteceu”, mas tão somente a realidade do passado como um
relato escrito. Ao pensar que frequentemente os historiadores estão lendo uns
aos outros, chega à conclusão de que “a história não é o estudo das mudanças
através do tempo por si, mas o estudo das informações produzidas pelos
historiadores ao se lançarem nessa tarefa”. Neste sentido, o trabalho do
historiador numa era pós-moderna, seria não o de começar pelo passado, mas
pelas representações do passado, tendo em vista que somente assim seria
desafiada “a crença de que há uma verdade sobre a realidade do passado a ser
descoberta e possível de ser precisamente representada” (MUNSLOW, 2009, p. 12).
Tal formulação é desenvolvida na
medida em que partilha de concepções do estruturalismo e do pós-estruturalismo.
Do primeiro (em Saussure) porque revela inicialmente que não há uma relação
natural entre linguagem e mundo. Qualquer palavra que usamos como referência
para descrever as coisas é produto de convenções sociais mais ou menos
arbitrárias. Não há, por isso, uma correspondência diacrônica, tampouco
metafísica da palavra a coisa. O significante (a palavra) e o significado (o
conceito que a palavra representa) estão relacionados de maneira arbitrária e formam
signos socialmente convencionados. Em um sistema fechado, os signos são
compreendidos por oposição ou semelhança a outros. Por isso, a crítica
literária estruturalista isola o texto do contexto para compreender o
significado de seus enunciados em relação a outros enunciados presentes ali no
próprio texto. “Se o estruturalismo reconhece a importância da linguagem, os
pós-estruturalistas, por sua vez, reconhecem suas limitações como um meio de
compreensão. Aceitar a natureza elusiva do texto como cheio de lacunas, silêncios
e incertezas de significados – aberto e repleto de significantes – sugere que a
interpretação histórica dos textos, bem como o criticismo literário, são
necessariamente indeterminados e suas leituras mais ou menos inadequadas. Isso não
significa, obviamente, que toda leitura é tão boa quanto qualquer outra; isso
simplesmente significa que não há interpretações definitivas. E, certamente,
isso não impede que as pessoas (incluindo os historiadores) busquem sentido
para o mundo cotidiano, ainda que os signos sejam arbitrários” (MUNSLOW, 2009,
p. 46).
Concordo totalmente com esta
passagem da leitura do estruturalismo e do pós-estruturalismo realizada por
Munslow. Creio que esta seja uma das qualidades de seu trabalho, explicando de
maneira concisa discussões que muitos ainda tropeçam para entender. No entanto,
há outra diferença no modo de utilização desta descoberta da “(in)correspondência”
entre as palavras e as coisas. Pois, ao asseverar sobre a indeterminação de significante-significado
na teoria linguística, o pós-estruturalismo e a Teoria Francesa não negam a
existência de verdade, mas as pluraliza. Verdades existem e são construções
culturais de um dado tempo e espaço, permeadas por interesses de todos os
tipos, relacionadas aos jogos de poder (dominação, negociação e resistência)
particulares a cada sociedade e, por isso, provisórias. Um só significante pode
apontar para vários, diferentes e antagônicos significados. Mas isto não torna
impossível construir narrativas verdadeiras como explanações históricas sobre o
passado – algo que Munslow acaba afirmando em determinados trechos, como no que
escreve o seguinte: “devemos estar mais abertos à possibilidade de não haver
significado, bem como ao caráter sublime do passado” (2009, p. 15). Aqui sim o “posmodernismo”
de Munslow se aproxima do niilismo na medida em que ao perceber a
impossibilidade de encontrar “a verdade única”, declara que nenhuma existe e
sequer pode ser construída, criada ou inventada. Só restando, a nós, falar
sobre a continuidade da inexistência.
Referências:
FUNARI, Pedro P. Desconstruindo a história: resenha. História e-História,
Resenhas, online, 23 dez., 2009.
MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
WHITE, Hayden. Metahistória: a
imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1995.