Não queremos servir à história senão
na medida em que ela sirva à vida.
Nietzsche
Publicado em 1966 pela revista History and Theory, o ensaio “O fardo da história” pode ser
considerado um dos melhores textos escritos por Hayden White. O leitor acostumado
com seu clássico Meta-História com
certeza estranhará em alguma medida este texto. Talvez porque nele White fuja
do esquematismo ou do formalismo característico pelo qual ele é conhecido
dentro da comunidade de historiadores. Mas creio que este ensaio não possa ser
dissociado da proposta historiográfica que Meta-História
coloca em prática. Pelo contrário, através de sua leitura compreendemos as
razões do livro mais conhecido de White. O escrito a seguir pretende ser uma
resenha do ensaio e um breve comentário sobre peculiaridades da produção de
história na atualidade.
A questão central do ensaio retoma um lugar comum entre os
historiadores. De Humboldt a Bloch a história é composta por duas partes, uma
de arte e outra de ciência, que não se opõem, mas se complementam. White
adverte que esta concepção (virada crença) tem sido usada para afastar as
críticas de uma maneira circular. Isto é, quando os artistas criticam a
história pela sua má-qualidade artística, então os historiadores lhes respondem
que a história tem que preocupar-se com seu lado científico que seria mais
importante do que o artístico. Famosa defesa da busca da verdade contra as
fantasias da ficção! Ao passo que quando os cientistas acusam a história de
possuir fragilidade epistemológica ou baixo nível de certeza, os historiadores
replicam dizendo que sua disciplina não é uma ciência como as demais, pois se
direciona as possibilidades do que pode ter acontecido, sendo, portanto,
próxima da arte de representação. Esse mecanismo de resposta parece ter sido
criado para atender a uma causa nobre: afastar a militância do positivismo e do
idealismo do século 19. Mas passado esse período a história continua usando-o;
especialmente para justificar seu comodismo e não atualizar a disciplina
conforme a ciência e a arte contemporâneas.
A recusa pela atualização tem a ver com o fato dos
historiadores preocuparem-se pouco em fazer uma autocrítica de seus trabalhos,
uma vez que a saga atrás do documento “x” é muito mais importante. Ao fechar os
olhos para o quintal alheio, o historiador perde de vista que a arte e a
ciência já não são mais como eram no século 19. Sobretudo que a noção que dispunha
estes dois campos como modos opostos de compreender a realidade está hoje
desfeita. Portanto não há mais necessidade de um mediador entre arte e ciência.
Lugar que o historiador do séc. 19 construiu para si. A história não pode mais
ser assinada pela arte, tampouco pela ciência. Problemática apresentada, Hayden
White parte para a descrição pormenorizada das críticas.
Em geral a filosofia coloca a história numa baixa posição
dentro da hierarquia das ciências. Já a recusa da história pela literatura (arte)
é ainda mais incisiva. E para ilustrar este fato, White cita inúmeros autores.
Um dos personagens de James Joyce diz que “a história é o pesadelo do qual o
homem ocidental precisa despertar se quiser servir e salvar a humanidade” (p.
43). Enquanto o cientista critica-a por suas falhas metodológicas, os literatos
acusam-na sensível e moralmente. O tom destas críticas pouco parece ter mudado
em relação ao que Nietzsche escreveu em O
nascimento da tragédia e na Segunda
consideração intempestiva, ambas produzidas na segunda metade do século 19:
o exagero da história erradica o futuro, mata a sensibilidade artística e o
senso apolíneo. Acreditava-se, na época destes trabalhos, que a sede por
história (ou a chamada febre histórica,
segundo Nietzsche) tinha mais a ver com o medo do futuro do que com o clamor
por conhecimento do passado. Num momento em que reinava o cientificismo (fim do
séc. 19 e início do 20), Burkhardt previu a decadência da cultura europeia utilizando
de uma maneira diferente de se escrever a história (digamos, mais artística).
Por sua vez, Bergson e Klages apontaram que a causa de tal decadência era o
tempo histórico. O acontecimento da 1ª Guerra Mundial radicalizou as críticas à
história. Afinal a disciplina não serviu para apontar suas causas e
conseqüências, tampouco para preparar os viventes para tal evento. Com o pós 2ª
Guerra houve algo parecido. Há uma longa lista de autores com críticas
contundentes à disciplina histórica na primeira metade do século 20. Pode-se
incluir Albert Camus em O estrangeiro: Mersault, o
protagonista da narrativa, após envolver-se em um assassinato sem motivo
aparente, vê a história de sua vida sendo usada para justificar sua culpa. Como
se ele, por não ter chorado durante o velório de sua mãe, fosse um assassino em
potencial, esperando somente que o destino o levasse ao crime e descortinasse
sua verdadeira identidade – meticulosamente construída pela “história” através
de uma reunião de fatos que eram do interesse da acusação.
Para White, a ficção moderna vive em busca de libertar o
homem da consciência histórica para que eles possam enfrentar o presente. Resta
ao historiador saber se ele pode participar desta libertação e se sua participação
acarretará a destruição da história. Para poder libertar o presente do chamado
“fardo da história”, é necessário em primeiro lugar que o historiador leve a
sério os artistas e os cientistas. Depois desfaça a noção de que a história tem
um fim em si mesmo. White, aqui, retoma Nietzsche profundamente. A história
deve servir à vida e à ação! “No mundo em que vivemos diariamente, quem quer
que estude o passado como um fim em si deve parecer ou um antiquário, que foge
dos problemas do presente para consagrar-se a um passado puramente pessoal, ou
uma espécie de necrófilo cultural, isto é, alguém que encontra nos mortos e
moribundos um valor que jamais pode encontrar nos vivos. O historiador
contemporâneo precisa estabelecer o valor do estudo do passado, não como um fim
em si, mas como um meio de fornecer perspectivas sobre o presente que
contribuam para a solução dos problemas peculiares ao nosso tempo”, escreve
Hayden White (p. 53). Este ponto do texto pode, inclusive, surpreender muitos
que acreditavam que White defendia em Meta-História
uma relativização da escrita histórica, tendo ela compromisso apenas com os
tropos lingüísticos e com as estruturas de enredo disponíveis ao bel prazer dos
historiadores. Na verdade não é bem isso. Estudiosos, como Herman Paul, afirmam
que Meta-História faz parte de uma
proposta ética de escrita histórica que teria relação com o existencialismo. Se
a máxima do existencialismo (de Sartre) é aquela segundo a qual a existência
precede a essência, isto é, depois de existir é que você poderá dar sentido a
sua vida e suas ações, destacando aí a inevitável liberdade que cada um possui,
então a escrita da história seria uma maneira de atribuição de sentido ao caos
dos acontecimentos. Na organização e explicação dos acontecimentos deve-se
levar em conta a utilidade e vantagem que tal operação assiste à vida atual.
Não se trata de um “vale tudo pós-moderno” como a caricatura de White,
fabricada por Ginzburg, nos faz compreendê-lo.
Por fim, Hayden White reivindica um diálogo cultural
contemporâneo considerando-se a arte e a ciência de sua época, ambas
atualizadas. E cita como exemplos trabalhos da primeira metade do século 19
(Michelet, Tocqueville, Ranke, Niebuhr, Stendhal, Balzac, Hegel, Marx, Heine e
Lamartine). Isto porque ele os considera como produtos de pensadores que se preocupavam
menos com a questão do método e com as fronteiras entre as disciplinas (que não
eram tão claramente delimitadas na época) do que com o objetivo principal do pensar: a compreensão da realidade. Além disso,
suas obras buscavam organizar o caos do passado por uma imagem que pudesse
servir de transição para o futuro, que parecia a todos, amedrontador; e assim
firmavam a responsabilidade dos homens. No avançar do século isso se perdeu na
medida em que os historiadores preferiram se preocupar em definir o que era
arte e ciência. Hoje se o historiador quer de alguma maneira dialogar com a
arte e a ciência precisa ele aprender que a ciência não é mais aquela forma
“objetivista” do sujeito observador universal. E nem a arte (literatura) se
resume ao romance inglês do séc. 19, como na maioria das obras de história. Ou
seja, se hoje a história é uma ponte ou união entre arte e ciência, ela o é com
uma ciência e uma arte de má-qualidade.
Em defesa da história e de uma atualização desta, White
encerra seu manifesto: “A história é capaz de prover uma base em que possamos
buscar aquela ‘transparência impossível’ que Camus exige para a humanidade
ensandecida da nossa época. [...]. Mas a história só pode servir para humanizar
a experiência se permanecer sensível ao mundo mais geral do pensamento e da ação do qual procede e ao qual
retorna. E, enquanto se recusar a usar os olhos que tanto a arte moderna quanto
a ciência moderna podem dar, ela haverá de permanecer cega – cidadã de um mundo
em que as ‘pálidas sombras da memória em vão se debatem com a vida e com a
liberdade do tempo presente’” (p. 63).
Pitacos intempestivos:
A proposta de White é audaciosa e esbarra em alguns outros pesos
do lugar social onde a escrita da história é produzida. O “não-dito” do qual
fala Certeau (1988) infere os mecanismos de poder que atuam nos bastidores para
fazer com que a academia funcione às vezes como uma linha de produção. Mudar a
maneira de pesquisar e escrever a história depende em alguma medida das
engrenagens do sistema que envolve instituições, grupos de pessoas e tradições
filosóficas. Na área de História, por exemplo, por mais que existam algumas
linhas-de-fuga para inovações e criatividades, é a corporação com suas regras próprias
e implícitas que dita o aceito, o não-aceito e o marginal. Não se trata somente
de conhecimento por conhecimento. Mas de política do saber. Não parece por acaso
que historiadores brasileiros excomunguem Hayden White. Taxado de inimigo da
história e de pós-moderno perigoso, por supostamente igualar história à ficção,
prevalecem as leituras de Ginzburg e de Ciro Cardoso sobre sua obra. Pouco
importa que a história passe por um momento de descrédito na sociedade e que
haja uma ascensão de trabalhos panfletários como os de Narloch, Villa e Ustra. Importa
mais defender que ela seja uma “ciência” como se isso fosse o suficiente para
legitimar sua existência e seu financiamento pelo dinheiro público. A meu ver,
White e outros apenas colocam o dedo em uma ferida que sangra e não vai sarar
sozinha. No exterior alguns pesquisadores tentam utilizar os curativos
sugeridos por White e improvisar outros (cf. MUNSLOW & ROSENSTONE, 2004). Mas
aqui a coisa anda em outro pé.
No Brasil, exceto os focos do historicismo alemão, imperam o
marxismo ou materialismo histórico-dialético (sobretudo em suas variantes
não-revolucionárias que condizem com a natureza da academia) e os Annales. Ainda que o pensamento
contemporâneo, reunido sob o nome de Michel Foucault, tenha sido abduzido e, contra
o que o próprio filósofo pensou, governamentalizado por determinadas disciplinas de
humanas, ele e seus colegas mais próximos ainda são marginais na História. Já o
marxismo é muito presente não só na História, mas na maioria das Ciências
Humanas. Não foi hipérbole o uso do verbo “imperar” numa frase anterior. Na
academia os saberes ou as tradições filosóficas vivem de colonizar os demais,
de territorializar e de guerrear. Há grupos de pesquisa aglutinados em torno de
um pesquisador reconhecido na comunidade (cumprindo papel de líder) para formar
batalhões de soldados. O que se ganha nessa guerra? Principalmente, dinheiro. Financiamento
de viagens, eventos e bolsas de pesquisa e etc. Conquista-se também
reconhecimento acadêmico, às vezes usado como moeda de troca no tráfico de
influências: por exemplo, troca-se publicações em revistas acadêmicas dirigidas
por membros dos grupos de pesquisa. E estes lugares hoje já estão tomados pelas
tradições citadas. O que há são brechas. E corajosos.
Apesar (ou por causa) de a universidade ser uma instituição conservadora
que sobrevive desde a Idade Média, assim como a Igreja Católica, ela possui uma
lógica de funcionamento intimamente relacionada com a organização econômica e social
de agora. A despeito das acentuadas diferenças entre o conhecimento das ciências
matemáticas e biológicas e das áreas de humanidades, o mecanismo que rege suas
produções é o mesmo: a quantidade. O Currículo Lattes é controlador central desta
produção. Não a toa ele é um contador. Conta quantos artigos publicados, eventos
participados, livros escritos, orientações realizadas, etc. Mas ele não pode
contar a relevância da pesquisa e nem os meios despendidos para fazê-la. É simples! Quem
produz mais tem mais pontos! Quem publica nas revistas mais qualificadas idem.
Pouco importa se você passou realmente por uma avaliação como os outros que
enviaram trabalho para a mesma revista. Tanto pior se você adotar uma abordagem
ou um método de pesquisa que não agrada ao avaliador ou aos diretores da revista.
Aqui o “não-dito” impera. Dificilmente alguém ensaiando história com a proposta
de Hayden White seria considerado numa revista coordenada por herdeiros de
Fernand Braudel (Annales) ou de Antônio
Gramsci (marxismo). Poderia ele escrever um livro. Mas talvez não encontrasse
uma editora disposta a publicá-lo. E, caso encontrasse, ninguém garante que
seria lido, tampouco levado a sério pela comunidade de historiadores. A coisa
complica-se mais se tal trabalho levasse a pensar de outra maneira a
pesquisa/escrita da história. Pois o que reina é o comodismo e a reprodução do
que já é feito. O mesmo mal parece haver na filosofia. Colegas, estudantes da
graduação, relatam algo parecido. A verdade é que o diálogo com o diferente não
tem passado de retórica vazia. O capitalismo tem feito com que os pesquisadores
se preocupem mais com seus egos e com seus bolsos do que com a compreensão da
realidade e, retomando Nietzsche e White, com a intervenção na vida e na sociedade.
O “feudalismo acadêmico” tornou-se um peso sem o qual parece não sabermos viver
e pensar, como os escravos que não saberiam o que fazer com a liberdade. Até
que isso mude, os conservadores não precisam lamentar a ausência de
representantes do seu pensamento na academia. No conteúdo, o conservadorismo
pode ter fraca representação. Já na forma, ele é uma das principais estrelas
fixadas na “farda” da história. E como é desconfortável e pesado esse uniforme!
Referências:
CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques
(comp.). História: novos problemas. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco
Alves Editora, 1988, p. 17-48.
MUNSLOW,
Alun; ROSENSTONE, Robert (orgs.). Experiments in rethinking history. New York:
Taylor & Francis e-Library, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda
Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História
para a vida. In:______. Escritos sobre
história. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.
WHITE, Hayden. O fardo da história. In:_____. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994, p.
39-64.