terça-feira, 11 de março de 2014

Estado de Exceção como paradigma de governo em Agamben

A tradição dos oprimidos ensina-nos que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra.
Walter Benjamin


Publicado em 2003 na Itália, Stato Di Eccezione é um estudo do filósofo Giorgio Agamben sobre a teoria do Estado de Exceção. No Brasil, a discussão sobre o objeto de pesquisa de Agamben é atualíssima, tendo em vista o projeto de lei antiterrorismo que tramita nas instâncias legislativas desde 2013 e cuja rapidez pela aprovação tem sido cobrada por diversos representantes políticos e empresas de informação (especialmente após as manifestações recentes contra o pacote de medidas adotado em prol da realização da Copa do Mundo da FIFA). Segue abaixo um resumo do primeiro capítulo do referido livro, na versão brasileira produzida pela editora Boitempo (2004).

Para incluir o Estado de Exceção (EE) na teoria jurídica, um dos mais conhecidos e controversos teóricos do direito alemão, Carl Schmitt (1888-1985), aproximou-o da soberania. Assim o soberano seria aquele que teria o direito de decidir sobre o EE. Mas esta relação é rejeitada por muitos pesquisadores, assim como também o é a própria teoria jurídica do EE. Os argumentos contrários partem do pressuposto de que, por se localizar numa intersecção entre o jurídico e o político ou por ser fruto de um período de crise política, o EE deve ser compreendido no terreno da política e não no jurídico-constitucional. O consenso é de que o EE trata-se de um ponto de desequilíbrio entre direito público e política. Apresenta-se como a forma legal de algo que não pode ter forma legal. Assenta-se, sem dúvida, sobre um paradoxo, porque a exceção é o dispositivo do direito que se refere à vida e a inclui por meio de sua suspensão. Esta afirmação vai ficar mais clara nos parágrafos seguintes.

Em geral o EE tem relação contígua com guerra civil, insurreição e resistência. Parece que seu princípio (não-)jurídico é o mesmo destes últimos. Isto é, o momento em que o direito público é embargado pela política em uma de suas expressões mais genuínas: aquela que, através de um ato, coloca em questionamento ou desobstrui os laços que embaraçavam a ordem jurídica e a vida. Caminhando nesta zona cinzenta, Agamben dá nota de que “guerra civil legal” foi o que se viu quando, na imediata chegada de Hitler ao poder, ele promulgou o “Decreto para a proteção do povo e do Estado”. Tal medida que suspendia artigos da Constituição de Weimar, relativos às liberdades individuais, e que permitia a eliminação física de adversários e categorias de cidadãos que não se integravam ao sistema político desejado, durou eternos 12 anos. Desde então o EE deixou de ser provisório e tornou-se uma técnica de governo duradoura nos estados modernos, configurando uma indeterminação entre democracia e absolutismo. 

Prisão em Guantánamo
A biopolítica relativa ao EE, que inclui o vivente no Direito e, ao mesmo tempo, suspende sua “vida”, reaparece em evidência na “Military Order” de 13 de setembro de 2001 nos EUA. Lei que autoriza a “detenção indefinida” e o processo dirigido pelas “comissões militares” dos não-cidadãos suspeitos de terrorismo ou envolvimento com este. Já o “ato patriótico” (USA Patriot Act) permite, além disso, manter preso o estrangeiro suspeito de atividades contra a segurança nacional dos Estados Unidos da América e sua expulsão em sete dias. A novidade trazida por tais leis é uma anulação do estatuto jurídico do indivíduo, produzindo um ser juridicamente inominável e inclassificável (não gozam do estatuto de prisioneiro de guerra, conforme a Convenção de Genebra, tampouco das leis norte-americanas; são objetos de dominação de fato, estão fora da lei e do controle jurídico). Isso é importante dentro do pensamento conceitual de Agamben. Retomando os gregos antigos, o filósofo distingue vida cultural, social, política, a de um sujeito do direito (bíos) e vida nua ou natural, sem qualquer estatuto ou documento (zoé), que exprime o simples fato de viver indistinto a qualquer ser vivo. Até a modernidade o homem era, como escreveu Aristóteles, um animal vivente capaz de existência política. Isto significa que, através da politização ligada à linguagem, ele era capaz de participar de uma comunidade fundada sobre a ideia de “bem e de mal”, “justo e injusto” e não apenas referente ao “doloroso ou prazeroso”, como os demais animais. Já na Idade Moderna a vida natural (zoé) começa a ser incluída necessariamente pelos mecanismos de poder do Estado, a política se transforma em biopolítica e o próprio fato de viver em si faz do homem um ser político (AGAMBEN, 2002, p. 10-11). Disto as medidas jurídico-políticas ligadas ao EE resultam em efeitos que destituem o homem de sua condição de sujeito do direito (bíos), abandonando-o à nudez de sua vida, retirando-lhe qualquer estatuto considerado político ou legal. Desta forma, Agamben equipara a situação dos detentos da prisão norte-americana de Guantánamo aos judeus presos nos campos de concentração do nazismo. “É a vida nua em sua máxima indeterminação”, escreve Judith Butler.

Variando sua terminologia conforme o país e a tradição jurídica (“estado de exceção” ou “estado de necessidade” na Alemanha; “decretos de urgência” ou “estado de sítio” na Itália e França; “lei marcial” ou “poderes emergenciais” na Inglaterra e EUA), o Estado de Exceção é uma criação da tradição democrático-revolucionária e não da absolutista. O “estado de sítio” designa o regime em que as autoridades civis se investem de funções de comando militar para garantir a ordem. Antes tal prática era ligada ao “estado de guerra”, mas sua evolução a tornou uma prática de governo para conter revoltas internas. Não raras vezes, os chamados “plenos poderes” caracterizam o EE, já que esta medida suspende a repartição dos poderes e os une em uma só instância ou sujeito. Chamada também de “ditadura constitucional”, seria uma tática de governo provisório, acordada ou não entre as esferas do poder, para salvaguardar a democracia. Mas podemos ver a atuação dos “plenos poderes” de maneira mais sutil dentro de um regime democrático: quando há uma extensão do poder executivo sobre o legislativo através de promulgações de decretos e disposições que modificam ou anulam leis em vigor (nomeados de decretos com “força-de-lei”). A maioria dos estudiosos da área considera que o exercício sistemático e regular destas medidas liquida de vez a democracia. Pois, embora tais dispositivos existam com a justificativa de salvar a democracia, ao fazer tal proteção, eles eliminam o objeto que protegem. Haja vista que o salvamento é feito através do sacrifício da própria democracia, ainda que “temporariamente”.

Em consonância a essa tese, há também o entendimento de que o uso demasiado destes dispositivos pode acabar criando condições para que a “ditadura constitucional” dê lugar a uma “ditadura permanente”. Neste sentido, não é possível compreender a ascensão de Hitler sem perceber a série de usos do EE durante a República de Weimar, entre 1919 e 1933. Para Carl Schmitt, fazendo isso Weimar legalizou facilmente um golpe de Estado. Weimar mostra que uma democracia protegida não é uma democracia e que o EE, sob uma “ditadura constitucional”, funciona como uma fase de transição que leva ao totalitarismo. Um dos sinais das condições históricas que podem levar ao totalitarismo é a indistinção feita, por determinado governo, entre estado de guerra e paz. Mais ou menos o que Bush fez em seu país ao declarar “guerra ao terror” e colocar todos em estado de prontidão bélica.

Durante o século 20 há um reconhecimento sistemático por governos de esquerda ou de direita, ditaduras ou democracias, do dispositivo de exceção como tática de governo. Na Alemanha, ele foi tornado paradigma de governo após o pacto feito entre democratas-cristãos e sociais-democratas, em 1968, com o intuito de garantir a manutenção da constituição liberal-democrata. Nessa toada, existem os países em que as normas sobre o EE estão explícitas na constituição e outros em que as mesmas são camufladas. Fato que parece no mínimo ilógico para Agamben, já que assim como a resistência, não é possível legislar sobre algo que está à margem da norma. O debate em questão se dirige então a pensar se o direito coincide com a norma ou se o direito a excede. A este debate acompanha outro a respeito do paralelo entre exceção e necessidade, pois em geral a exceção é precedida pela necessidade que visa justificá-la. No entanto, cabe o questionamento: quando há a necessidade de usar o EE para salvar a democracia de uma ameaça interna ou externa? Aqui o problema parece insolúvel já que o que é necessário tem a ver com uma decisão subjetiva cuja maior parte dos juristas desconsidera. Além disso, a necessidade se aplica também às revoluções! Afinal quando é que uma desordem interna deixa de ser vista como maléfica para ser saudada como a inauguração de um novo regime ou uma organização social positivamente diferente? O caso atual da Ucrânia dá indícios desta difícil definição. Nesta perspectiva, Agamben escreve que “a tentativa de resolver o Estado de Exceção no estado de necessidade choca-se, assim, com tantas e mais graves aporias quanto o fenômeno que deveria explicar. Não só a necessidade se reduz, em última instância, a uma decisão, como também aquilo sobre o que ela decide é, na verdade, algo indecidível de fato e de direito” (2004, p. 47).

Por fim, o autor sugere que a explicação sobre o EE se dê pelas lacunas internas da lei. Estas mesmas nas quais o juiz, trabalhando em regime de EE, é obrigado a julgar um caso mesmo elas existindo. Tal lacuna, explica Agamben, seria o intervalo ou, melhor dizendo, a fratura entre a norma e sua aplicação, que seria tal qual entre a palavra e a realidade. É esta zona de indeterminação que permite o EE existir. Mas não só, ela também permite que a norma funcione.

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. Download do livro pelo 4shared: clique aqui.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 
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