A tradição dos
oprimidos ensina-nos que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra.
Walter Benjamin
Publicado em 2003 na Itália, Stato Di Eccezione é um
estudo do filósofo Giorgio Agamben sobre a teoria do Estado de Exceção. No
Brasil, a discussão sobre o objeto de pesquisa de Agamben é atualíssima, tendo
em vista o projeto de lei antiterrorismo que tramita nas instâncias
legislativas desde 2013 e cuja rapidez pela aprovação tem sido cobrada por
diversos representantes políticos e empresas de informação (especialmente após
as manifestações recentes contra o pacote de medidas adotado em prol da
realização da Copa do Mundo da FIFA). Segue abaixo um resumo do primeiro
capítulo do referido livro, na versão brasileira produzida pela editora
Boitempo (2004).
Para incluir o Estado de Exceção (EE) na teoria jurídica, um
dos mais conhecidos e controversos teóricos do direito alemão, Carl Schmitt (1888-1985),
aproximou-o da soberania. Assim o soberano seria aquele que teria o direito de
decidir sobre o EE. Mas esta relação é rejeitada por muitos pesquisadores,
assim como também o é a própria teoria jurídica do EE. Os argumentos contrários
partem do pressuposto de que, por se localizar numa intersecção entre o
jurídico e o político ou por ser fruto de um período de crise política, o EE deve
ser compreendido no terreno da política e não no jurídico-constitucional. O
consenso é de que o EE trata-se de um ponto de desequilíbrio entre direito
público e política. Apresenta-se como a forma legal de algo que não pode ter
forma legal. Assenta-se, sem dúvida, sobre um paradoxo, porque a exceção é o
dispositivo do direito que se refere à vida e a inclui por meio de sua
suspensão. Esta afirmação vai ficar mais clara nos parágrafos seguintes.
Em geral o EE tem relação contígua com guerra civil,
insurreição e resistência. Parece que seu princípio (não-)jurídico é o mesmo
destes últimos. Isto é, o momento em que o direito público é embargado pela política
em uma de suas expressões mais genuínas: aquela que, através de um ato, coloca
em questionamento ou desobstrui os laços que embaraçavam a ordem jurídica e a
vida. Caminhando nesta zona cinzenta, Agamben dá nota de que “guerra civil
legal” foi o que se viu quando, na imediata chegada de Hitler ao poder, ele
promulgou o “Decreto para a proteção do povo e do Estado”. Tal medida que
suspendia artigos da Constituição de Weimar, relativos às liberdades
individuais, e que permitia a eliminação física de adversários e categorias de
cidadãos que não se integravam ao sistema político desejado, durou eternos 12
anos. Desde então o EE deixou de ser provisório e tornou-se uma técnica de
governo duradoura nos estados modernos, configurando uma indeterminação entre
democracia e absolutismo.
Prisão em Guantánamo |
A biopolítica relativa ao EE, que inclui o vivente no Direito
e, ao mesmo tempo, suspende sua “vida”, reaparece em evidência na “Military Order”
de 13 de setembro de 2001 nos EUA. Lei que autoriza a “detenção indefinida” e o
processo dirigido pelas “comissões militares” dos não-cidadãos suspeitos de
terrorismo ou envolvimento com este. Já o “ato patriótico” (USA Patriot Act) permite, além disso,
manter preso o estrangeiro suspeito de atividades contra a segurança nacional
dos Estados Unidos da América e sua expulsão em sete dias. A novidade trazida
por tais leis é uma anulação do estatuto jurídico do indivíduo, produzindo um
ser juridicamente inominável e inclassificável (não gozam do estatuto de
prisioneiro de guerra, conforme a Convenção de Genebra, tampouco das leis
norte-americanas; são objetos de dominação de fato, estão fora da lei e do
controle jurídico). Isso é importante dentro do pensamento conceitual de
Agamben. Retomando os gregos antigos, o filósofo distingue vida cultural, social,
política, a de um sujeito do direito (bíos)
e vida nua ou natural, sem qualquer estatuto ou documento (zoé), que exprime o simples fato de viver indistinto a qualquer ser
vivo. Até a modernidade o homem era, como escreveu Aristóteles, um animal
vivente capaz de existência política. Isto significa que, através da
politização ligada à linguagem, ele era capaz de participar de uma comunidade
fundada sobre a ideia de “bem e de mal”, “justo e injusto” e não apenas
referente ao “doloroso ou prazeroso”, como os demais animais. Já na Idade
Moderna a vida natural (zoé) começa a
ser incluída necessariamente pelos mecanismos de poder do Estado, a política se
transforma em biopolítica e o próprio
fato de viver em si faz do homem um ser político (AGAMBEN, 2002, p. 10-11). Disto
as medidas jurídico-políticas ligadas ao EE resultam em efeitos que destituem o
homem de sua condição de sujeito do direito (bíos), abandonando-o à nudez de sua vida, retirando-lhe qualquer
estatuto considerado político ou legal. Desta forma, Agamben equipara a
situação dos detentos da prisão norte-americana de Guantánamo aos judeus presos
nos campos de concentração do nazismo. “É a vida nua em sua máxima
indeterminação”, escreve Judith Butler.
Variando sua terminologia conforme o país e a tradição
jurídica (“estado de exceção” ou “estado de necessidade” na Alemanha; “decretos
de urgência” ou “estado de sítio” na Itália e França; “lei marcial” ou “poderes
emergenciais” na Inglaterra e EUA), o Estado de Exceção é uma criação da
tradição democrático-revolucionária e não da absolutista. O “estado de sítio”
designa o regime em que as autoridades civis se investem de funções de comando
militar para garantir a ordem. Antes tal prática era ligada ao “estado de
guerra”, mas sua evolução a tornou uma prática de governo para conter revoltas
internas. Não raras vezes, os chamados “plenos poderes” caracterizam o EE, já que
esta medida suspende a repartição dos poderes e os une em uma só instância ou
sujeito. Chamada também de “ditadura constitucional”, seria uma tática de governo
provisório, acordada ou não entre as esferas do poder, para salvaguardar a
democracia. Mas podemos ver a atuação dos “plenos poderes” de maneira mais
sutil dentro de um regime democrático: quando há uma extensão do poder
executivo sobre o legislativo através de promulgações de decretos e disposições
que modificam ou anulam leis em vigor (nomeados de decretos com “força-de-lei”).
A maioria dos estudiosos da área considera que o exercício sistemático e
regular destas medidas liquida de vez a democracia. Pois, embora tais dispositivos
existam com a justificativa de salvar a democracia, ao fazer tal proteção, eles
eliminam o objeto que protegem. Haja vista que o salvamento é feito através do
sacrifício da própria democracia, ainda que “temporariamente”.
Em consonância a essa tese, há também o entendimento de que
o uso demasiado destes dispositivos pode acabar criando condições para que a “ditadura
constitucional” dê lugar a uma “ditadura permanente”. Neste sentido, não é
possível compreender a ascensão de Hitler sem perceber a série de usos do EE
durante a República de Weimar, entre 1919 e 1933. Para Carl Schmitt, fazendo
isso Weimar legalizou facilmente um golpe de Estado. Weimar mostra que uma
democracia protegida não é uma democracia e que o EE, sob uma “ditadura
constitucional”, funciona como uma fase de transição que leva ao totalitarismo.
Um dos sinais das condições históricas que podem levar ao totalitarismo é a indistinção
feita, por determinado governo, entre estado de guerra e paz. Mais ou menos o
que Bush fez em seu país ao declarar “guerra ao terror” e colocar todos em
estado de prontidão bélica.
Durante o século 20 há um reconhecimento sistemático por
governos de esquerda ou de direita, ditaduras ou democracias, do dispositivo de
exceção como tática de governo. Na Alemanha, ele foi tornado paradigma de
governo após o pacto feito entre democratas-cristãos e sociais-democratas, em
1968, com o intuito de garantir a manutenção da constituição liberal-democrata.
Nessa toada, existem os países em que as normas sobre o EE estão explícitas na
constituição e outros em que as mesmas são camufladas. Fato que parece no
mínimo ilógico para Agamben, já que assim como a resistência, não é possível legislar
sobre algo que está à margem da norma. O debate em questão se dirige então a
pensar se o direito coincide com a norma ou se o direito a excede. A este
debate acompanha outro a respeito do paralelo entre exceção e necessidade, pois
em geral a exceção é precedida pela necessidade que visa justificá-la. No
entanto, cabe o questionamento: quando há a necessidade de usar o EE para
salvar a democracia de uma ameaça interna ou externa? Aqui o problema parece
insolúvel já que o que é necessário tem a ver com uma decisão subjetiva cuja
maior parte dos juristas desconsidera. Além disso, a necessidade se aplica
também às revoluções! Afinal quando é que uma desordem interna deixa de ser
vista como maléfica para ser saudada como a inauguração de um novo regime ou uma
organização social positivamente diferente? O caso atual da Ucrânia dá indícios
desta difícil definição. Nesta perspectiva, Agamben escreve que “a tentativa de
resolver o Estado de Exceção no estado de necessidade choca-se, assim, com
tantas e mais graves aporias quanto o fenômeno que deveria explicar. Não só a
necessidade se reduz, em última instância, a uma decisão, como também aquilo
sobre o que ela decide é, na verdade, algo indecidível de fato e de direito”
(2004, p. 47).
Por fim, o autor sugere que a explicação sobre o EE se dê
pelas lacunas internas da lei. Estas mesmas nas quais o juiz, trabalhando em regime
de EE, é obrigado a julgar um caso mesmo elas existindo. Tal lacuna, explica
Agamben, seria o intervalo ou, melhor dizendo, a fratura entre a norma e sua
aplicação, que seria tal qual entre a palavra e a realidade. É esta zona de
indeterminação que permite o EE existir. Mas não só, ela também permite que a
norma funcione.
Referências:
AGAMBEN, Giorgio. Estado
de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
Download do livro pelo 4shared: clique aqui.
AGAMBEN, Giorgio. Homo
sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
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