Qual é o sentido de estudarmos História? Por que esta área
do conhecimento privilegia determinadas datas, contextos e acontecimentos em
detrimento de outros? Por exemplo, por que a historiografia brasileira produziu
tantos livros dando destaque a certos anos como os de 1822 e 1964? E, indo mais
a fundo, que importância tem o aluno de História saber sobre o triunvirato da
antiga república romana ou sobre as guerras médicas? Mudará sua vida acaso ele
saiba como se dava a divisão de classes durante a Idade Média? De maneira
direta ou indireta, um dos livros de Gumbrecht inevitavelmente suscita
indagações como estas. O autor escolheu abordar a simultaneidade histórica de
uma maneira muito particular. Produziu um livro sobre o ano de 1926. Mas, de
acordo com a historiografia em geral, o que diabos aconteceu de tão importante
neste ano? Nada.
Alemão, que reside há tempos nos EUA onde dá aulas na
Universidade de Stanford, Hans Ulrich
Gumbrecht (1948-) é um teórico literário que se inspira em historiadores
como Reinhart Koselleck, Hayden White e Paul Zumthor. Considera-se um autor
pós-moderno, mas deixa claro que este rótulo só serviria num sentido negativo,
dentro da (já enfadonha) batalha acadêmico-ideológica em prol da preservação
dos valores “modernos” ou “modernistas” contra os “pós-modernos”, o que garante
ser, desde já, uma causa perdida. Sua postura pós-moderna é referente à
tentativa de não pensar a História como um movimento homogêneo e totalizante, à
argumentação em favor de uma concepção “fraca” de subjetividade e a seu
fascínio por superfícies materiais (GUMBRECHT, 1999, p. 14). Publicado, em
1997, pela editora de Havard (dois anos antes da versão brasileira), a obra Em
1926: vivendo no limite do tempo é sem dúvidas um livro de história. Só
que incomum. Mas o inusitado não está somente em tratar de um ano que pouco importa
segundo nossos marcos cronológicos. É, também, um livro de história não-linear
e não-sequencial – pelo menos não do modo como estamos acostumados. O enredo
fala sobre 1926, mas não possui começo, meio e fim. Aliás, ousaria dizer que só
tem meio.
Antes de começar o livro propriamente dito (ou ele já teria
começado?), há um manual de instrução para o leitor. Ali Gumbrecht diz que este
não é um livro para ser começado do início. Isto porque ele não tem início. Os
51 capítulos (se é que assim podemos chamar) são verbetes no formato de
crônicas sobre 1926. Estão divididos em três seções: “dispositivos”, “códigos”
e “códigos em colapso”. Porém o leitor escolhe por onde começar. Ao término da crônica
a qual o verbete dá nome, o leitor encontrará uma lista para escolher entre os diversos
verbetes relacionados ao que ele acabou de ler. E assim por diante, até
concluir o livro, ou até desistir dele antes de ler mais ou menos 500 páginas.
Quer saber do que tratam os verbetes? São descrições gerais sobre fatos e
configurações do ano de 1926 (na política, cultura, artes, esportes, etc.), o
que o autor chama de “percepções de superfície dominante e visões de mundo
dominante”. Mostro um exemplo a seguir.
A relação de Gumbrecht com o Brasil é, de alguma forma,
próxima. Em 1926 há notícias e
referência a autores brasileiros, como aos historiadores Sérgio Buarque de
Holanda e Nelson Werneck Sodré. No verbete “individualidade = coletividade
(líder)” da seção “códigos em colapso”, o autor aborda a falsa dicotomia entre
individualidade e coletividade que aparece, especialmente, na figura do líder.
Apontando casos no mundo todo que se relacionam a discussão, ele apresenta uma
entrevista do Jornal do Brasil a
respeito da relação entre Mussolini e a nação italiana, segundo a qual existia
uma mútua subordinação entre ambos, já que o líder fascista, em vez de guia,
era conduzido pelas forças que ele parecia conduzir e, caso um dia ele
resolvesse parar, o povo o obrigaria a seguir. Apresenta também a opinião de Adolf
Hitler sobre o tema, a partir de seu livro Minha
luta, publicado em 1926. Hitler contraria completamente a tese anterior,
negando a reciprocidade entre líder e liderados. “Para ele, a política se
caracteriza por uma polaridade quase hostil entre o gênio do Líder e a inércia
das massas. Como ele não vê necessidade de aprovação coletiva para as decisões
do líder, ele abomina a ideia de uma relação não-hierárquica entre o Líder e a
população”, escreve Gumbrecht (1999, p. 435). Ao concluir o capítulo, para
corroborar com a tese que diz que “a tarefa mais importante do líder é manter
as massas em movimento”, o autor faz referência à marcha da Coluna Prestes no
Brasil, que teria começado como manobra estratégica incorreta durante uma
guerra civil e depois se tornado um símbolo da resistência política e uma
missão para educar o povo brasileiro. Em todo caso, Gumbrecht parece caçoar
desta última afirmação (extraída de um livro de José Augusto Drummond), dizendo
que em 1926 não se viu nada além do ziguezaguear dos soldados no território
nacional, mas que já seria o suficiente para a liderança, posto que “enquanto
Prestes mantiver os seus seguidores em movimento, eles não perguntarão aonde
ele os está levando” (p. 436).
Em todo caso, Gumbrecht diz não querer impor sua voz
individual na seção dos verbetes, nem fazer interpretações profundas ou
contextualizações diacrônicas. O que quer mesmo é promover pela escrita uma
simultaneidade histórica, de maneira superficial, como se estivéssemos no ano
dos acontecimentos. Por isso ele nega fazer qualquer explicação que seja
baseada em pensamentos e visões posteriores ou anteriores ao ano que é seu
objeto de estudo. O objetivo principal é fazer o leitor acreditar na ilusão de
que está (vivendo) em 1926. Para isso, Gumbrecht tenta fazer aquilo que deu
título a um de seus livros, Produção de presença. Embora, na
verdade, “a produção de presença” se refira mais especificamente ao processo
espacial que faz com que um objeto tenha algum impacto sensível sobre as
pessoas (2010, p. 12), ela também acompanha a ideia de representação para o
autor, ligada ao tempo, que é fazer o ausente tornar-se presente (1999, p. 10).
Gumbrecht |
Mas afinal de contas, o que motivou Gumbrecht a escrever história
desta forma? Além do “manual de instrução ao leitor”, esta resposta é dada de
maneira satisfatória no penúltimo capítulo do livro (ou seria já posfácio?) intitulado
“Depois de aprender com a história” que, junto ao último capítulo (“Estar-nos-Mundos
de 1926”) e diferentemente dos verbetes, foi escrito de maneira argumentativa
em direção aos acadêmicos interessados nos pressupostos teóricos, nos processos
de pesquisa e escritura do livro e outros usos da obra além da re-presentificação
de 1926.
Em resumo, o autor partiu de um pressuposto um tanto quanto
pessimista, eu diria. Como sugeri no primeiro parágrafo, ele acredita que não
há mais o que aprender com a História. Melhor dizendo, que abandonamos a
esperança de aprender com a História no sentido de uma narrativa didática. Primeiro
porque, pragmaticamente, descobrimos na modernidade que não é possível utilizar
a história como exemplo ou guia de ação ao presente, pois, já que o tempo está
em permanente mudança e não há leis históricas, o presente sempre será
diferente e imprevisível. Segundo porque aprendemos com Hayden White que as
regras que regem a composição de um texto historiográfico não são as mesmas que
supostamente governariam a história. Então Gumbrecht se questiona o que podemos
fazer com nosso conhecimento sobre o passado. Um primeiro passo seria
aparentemente o que o autor fez Em 1926,
o de tentar usar maneiras não-narrativas de pensar e representar o passado. Mas
ele aponta uma questão mais essencial. A de saber o que é o passado antes de buscar formas possíveis de representá-lo
(1999, p. 11).
Esse argumento reprisa passagens de autores pós-modernos
(como Ankersmit e Munslow) que me incomodam um pouco. Até
considero corriqueiro quando este pressuposto vem de um pensador “construtivista”
que, no limite, defende a existência de um passado único, mais verdadeiro, mais
real e límpido e do qual precisamos nos informar para reconstruí-lo fielmente,
a despeito de todas as apresentações que foram feitas dele. Trata-se de uma
noção baseada num essencialismo que pode se tornar uma aporia para o
historiador, haja vista que não temos acesso ao passado senão pelas fontes (que
são representações!) produzidas dentro de um jogo de poder e cultura específica
e, que portanto, não são transparentes (sobretudo porque a linguagem é opaca). A
questão aqui não é refutar a existência de uma realidade histórica fora da
subjetividade e dos discursos, como o autor crítica aos novos historicistas. Esta
certamente existe. A questão é que, do ponto de vista pragmático, só temos
acesso a realidade através dos discursos e de nossas subjetividades. Contudo, a
originalidade de Gumbrecht e sua proposta historiográfica vêm daí mesmo, de um
certo paradoxo inovador, digamos niilista-existencialista. O autor concorda que
a representação (tornar o passado de fato presente) é impossível, mesmo fazendo
apologia do “contato direto do passado” por meio da imersão do sujeito em
contato a uma espécie de atmosfera da época composta por objetos antigos –
coisa que ele fez consigo mesmo em seu “laboratório”. Entretanto ele diz que a
repreensão dos historiadores da chamada Nova História aos historiadores
modernistas, sobre a impossibilidade de acesso ao passado integral, não passa
de um recalque. De um desejo (in)contido de ser onisciente, apreendendo todo o
passado, de ser onipresente, vivenciando plenamente o período de que estuda e
de viver a eternidade, este tempo simultâneo, sem passado ou presente.
De alguma forma, a proposta do autor é tentar satisfazer
este desejo (divino?) que, vou confessar para vocês, acredito que é mais dele
do que de qualquer outro. Neste sentido, Gumbrecht parece mais preocupado com o
que é o passado para nós (e para ele) de uma maneira mais próxima da arte do
que da ciência. Quando diz que seu livro é um experimento que visa atingir
nossos impulsos pré-conscientes fazendo a gente se sentir em 1926, ele talvez
esteja tentando instigar uma experiência estética (próxima ao sublime), aquela
em que apreendemos o que é algo (o que é o passado) através da imaginação ao
contemplar uma obra de arte (ou, no caso, ao ter contato com objetos materiais
da época ou, vou além, sentir a “presença” de Deus ao entrar numa catedral
medieval). Neste caso, a coragem de sua tentativa inovadora só não seria maior
do que sua pretensão.
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Dica: Além de conhecedor de alguns acontecimentos e aspectos
da história e da literatura nacional, Gumbrecht fala português fluente e já
veio ao Brasil algumas vezes. Ele estará novamente em terras brasileiras
fazendo a conferência de abertura do Oitavo Seminário Brasileiro de História da Historiografia. Quem quiser prestigiar o pesquisador é só “produzir sua
presença” (trocadilho inevitável) no dia 18 deste mês, na Universidade Federal
de Ouro Preto, campus localizado em Mariana-MG. Eu sei que ninguém perguntou
mas eu também estarei lá, apresentando trabalho sobre Stirner e a historiografia
do anarquismo. Se Deus quiser. Amém!
Referências:
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em
1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção
de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.
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