“Irmãos, a
terra onde ancoramos não é a Terra Prometida onde devem se realizar as
maravilhas de Icária; nossos modestos trabalhos nem mesmo representam seu
esboço e, contudo, Icária existe. A Icária orgânica com seu regime comunitário,
o sistema de igualdade, a ordem, a harmonia, a poderosa concentração de forças
e de aptidões de cada um concorrendo para a felicidade de todos; ela existe
finalmente, com sua incessante tensão para o progresso material, intelectual e
moral pelo trabalho, o estudo e a prática da Fraternidade”.
Antecipação
de Icária por Prosper Bourg, joalheiro, poeta e cantor. In: Le Populaire,
4 nov. 1849 (apud RANCIÈRE, 1988, p. 354).
Utopia:
fundando Icária
Em meados do
século 19, em plena efervescência do movimento socialista no mundo, um grupo de
operários franceses viaja para a América a fim de fundar Icária. Icária é um
lugar num livro, Voyage
en Icarie [1840], do escritor Etienne Cabet. Antes
de perceberem a dessemelhança entre o matagal que lá encontram no fundo do
Texas e a descrição paradisíaca do livro, eles dizem “Icária existe pois está
em nossos corações”. Desde então os homens de ciência e os partidários de um
socialismo científico zombam destes sonhadores. Mas aqueles que zombaram, hoje
zombados são. “Ah, esses ingênuos”. Não há socialismo que resista a um século e
meio de história, camarada. Há o socialismo real, mas este está longe do
“utópico” projetado, por exemplo, pelos cientistas do marxismo. Oito anos após A noite dos proletários [1981], Rancière
reflete sobre Icária num texto em que relaciona política e historiografia ao
niilismo contemporâneo: à sanha daqueles cuja teoria é assinalar o fim e o
desaparecimento de algo que, segundo os mesmos, nunca começou ou apareceu.
Neste post escrevo sobre o enunciado do fim da política.
A
familiaridade do enunciado niilista do fim da política e da lógica discursiva
da real política (Realpolitik) não é mero
acaso. Ambas estão prontas para decidir que não há nenhuma decisão a ser
tomada. O mercado já decidiu antes: questão pragmática. Temos que adequar a
administração das coisas às demandas da esfera econômica, dizem. Há uma
necessidade que não pode ser ignorada, asseveram. A política é substituída pela
economia. Como queriam os liberais. Como queriam/previam os comunistas da
ciência de Marx e Engels. A despeito da comemoração vitoriosa da democracia
representativa do mundo capitalista sobre o totalitarismo (leia-se aqui
bolchevismo soviético), o Ocidente tomou para si o princípio do inimigo outrora
derrotado. Impondo à coesão social a necessidade do desenvolvimento das forças
produtivas ou, em outras palavras, dizendo ser preciso primeiro fazer crescer o
bolo para depois reparti-lo. “Sob o termo consenso a democracia é concebida
como o regime último da necessidade econômica. Um certo marxismo tornou-se
assim a legitimação última da ‘democracia liberal’”, aponta Rancière (1996, p.
367).
Viajemos à
Grécia antiga. A decisão que antecede à possibilidade do litígio político e de sua
operação essencial, isto é, a anarquia, dissipa a política em seu sentido mais latente
senão caracterizador. Se, como escreve Platão, Sócrates é o único ateniense a
fazer política, aquele que faz “política de verdade”. Então a política grega, obviamente
alheia de Sócrates, é para Platão um mau começo, um começo sem arkhé (o princípio que governa). Esta an-arkhé
da política leva dois nomes bem conhecidos: demos
e democracia. O primeiro de uma unidade que não é una. O segundo de um
exercício da política que não é o funcionamento de nenhuma arkhé. Platão resume estas à insensata decisão da assembleia que
agrada ao povo. A boa política ou a política verdadeira seria aquela cuja ação
faz a comunidade basear-se em sua própria medida: o consenso. Em outros termos,
o fim da má política é o fim de toda a política. Já Aristóteles, não. Este não
quer exterminar a má política porém regulá-la. Quer que o povo veja e reconheça
seu poder, aceite a distribuição e não coloque o litígio. Deste modo, aristotelicamente
a “melhor democracia” será aquela em que o demos
for menos capaz de coincidir com ele mesmo na assembleia. É o mesmo regime em
que o povo está ocupado demais com seus afazeres para participar de alguma
decisão nessas câmaras do poder público (RANCIÈRE, 1995, p. 231).
Para
Rancière, a política é paradoxal. O fim da política é a regulação contínua de
seu duplo nascimento. (1º) Há política porque há demos, o dispositivo de uma esfera de aparência do povo, de uma
conta ímpar que faz valer a maioria pelo todo e os pobres pela comunidade e de
um litígio ligado ao nome do povo. (2º) E há política – uma arte e uma ciência,
talvez até uma filosofia política – porque há o pensamento e uma vontade de
verdade, de uma medida e de uma unidade da comunidade que substituem a anarquia
democrática. O paradoxo da política é portanto a inclusão de seu fim.
Tal paradoxo
é a condição que a mantém viva. Sua morte ou seu fim é a contraposição de sua
aparência com sua verdade científica. A metapolítica vem ceifar a política
quando denuncia o desvio do povo de si mesmo como sinal de sua não-verdade.
Haja vista que o povo nunca coincide com a arkhé
da comunidade, há duas maneiras de praticar esta anomalia: a política
democrática e a metapolítica científica. Enquanto a política democrática sabe
desta dinâmica e a usa para jogar, para mostrar o desvio e o dano, exigindo uma
reparação qualquer (reivindicação); a outra, a metapolítica científica, usa
este desvio como o segredo que seu saber vem descobrir e com isso se impor,
arbitrando e dando fim ao jogo.
Isto é, a
política democrática trata a diferença do povo a si mesmo através do litígio.
Não há exatamente uma necessidade de ensinar ao interlocutor a diferença entre
o fato e o direito, o formal e o real, o cidadão ideal e o homem rico ou
miserável. Estas coisas são tratadas sob sua redoma (a política). Por outro
lado, a metapolítica-social científica, cuja versão mais acabada é o marxismo,
apesar de também possuir lugar na diferença do povo consigo mesmo, interpõe tal
diferença como segredo. Segredo este que, de certa forma, a política democrática
faz vistas grossas para continuar jogando. A metapolítica científica põe um
verdadeiro povo como verdade oculta do povo aparente e se institui, ela mesma,
como o saber dessa verdade oculta. A partir do sintoma entre o real e uma
aparência, o real precisa operar a supressão da aparência. Ou seja, o sintoma
desta não-verdade, é a diferença do povo soberano consigo mesmo.
O litígio
como sintoma ou sintoma como litígio? Enfim, esses contrários se juntam na era
revolucionária: tanto o movimento operário e social quanto o socialismo foram
feitos com estes dois procedimentos. Por um lado, a política democrática
interpreta a diferença no sentido da ação que dá presença a um texto; por
outro, a metapolítica científica interpreta como sintoma essa interpretação
teatral. “A conjunção abarca uma representação do tempo: um tempo orientado, em
ambos os casos, pela realização imanente de seu fim, seja este o cumprimento da
promessa democrática ou o desencanto de seu devaneio, o telos visado pelo tratamento democrático da diferença ou do fim da
utopia. E o conceito moderno de História é o conceito da unidade dos dois, de
um movimento e de uma ciência”, escreve Rancière (1995, p. 235).
Existem pelo
menos duas versões deste tema do fim. A primeira é a hegeliana-escoteira,
representada da melhor forma por Francis Fukuyama. Nela o fim aparece como
triunfo planetário da democracia, capaz de prover comida para todos e também de
satisfazer o desejo de reconhecimento com o qual o todo se identifica. E a
segunda é a versão realista do fim do século 20. Esta, em vez da realização do
fim (de maneira objetiva), apresenta a ausência de todo fim, de todo e qualquer
telos da História, o fim das
políticas de telos e de suas
promessas. Este nada mais era, segundo tal versão, do que uma aparência cuja
existência veio suprimir em algum momento a própria aparência, uma mentira que
veio desvelar a mentira e levar a política a sua verdade. O exemplo principal
está em François Furet, cuja obra sobre a Revolução Francesa nos dá a notícia
de que tudo tratou-se de uma ilusão. A ilusão que nos fez pensar esta revolução
como o começo de um tempo. Porém se este tempo estava destinado a professar a
verdade da revolução, esta verdade é sua ausência ou, melhor dizendo, sua
inexistência. “A democracia excepcional hoje teria esgotado o ciclo de seus
mitos e voltaria a encontrar o comum da democracia, a democracia normal ilustrada
pela tradição anglo-americana” (RANCIÈRE, 1995, p. 235).
Assim, a
democracia normal seria a real, na medida em que o povo não tem mais aparência
de povo. Não tem litígio. Caímos na era do realismo: na qual as aparências não
se voltam a mais nenhum outrem para serem suprimidas. “Anulação da não-verdade
que não entrega mais verdade”. Por fim, o fim das ilusões de esquerda. Mais do
que isto, a repetição do cenário em que cada força faz o contrário daquilo que
pensa fazer, como ficou consagrado no 18
Brumário de Luis Bonaparte de Marx.
“A lógica
marxiana do hieróglifo, que chama outra leitura do sentido e da história,
tornou-se a prova por ausentamento do sentido. O realismo se gaba de ter
suprimido as existências inexistentes, proclama o reino das coisas sob as
palavras, sem as palavras. Mas as coisas sem as palavras são o inominável ou o
impredicável, o visível exibido em toda parte que não entrega mais nenhum
sentido senão o do fim. A retirada das palavras revela-se a retirada das
coisas. Exibido em toda parte, o visível deixa com isso de valer como prova ou
objeto de julgamento, como poderia ilustrar o estranho argumento do advogado
dos policiais espancadores de Los Angeles diante do filme acabrunhador de uma
testemunha do acontecimento: o filme, afirmaram eles, exprimia a realidade tal
como a testemunha a percebera. Não exprimia o real dos policiais empenhados na
ação” (RANCIÈRE, 1995, p. 237).
O realismo é
a supressão do jogo da aparência e do real. Nesta casa onde a política se
entrelaçava com seu fim. O que se opõe a este jogo é a submissão do real a
categoria do possível. Política do possível: o realismo da ultra-política. O
realismo não é o partido do real, mas do possível. Ele proclama a caça às
entidades inexistentes, aos mitos e às utopias. Mas o que ele quer é o próprio
real conforme a factualidade do “já existe” e o fim do acontecimento. A
subtração das novidades cujo resultado é zero. O nada.
Leia também: “Negacionismo e história: o holocausto moral dos relativistas”
Referências:
RANCIÈRE,
Jacques. A noite dos proletários:
arquivos do sonho operário. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
RANCIÈRE,
Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras/ Brasília:
Ministério da Cultura/ Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, p. 367-383.
RANCIÈRE,
Jacques. Enunciados do fim e do nada. In: Políticas
da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
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