Compartilho abaixo a última parte de um artigo
meu publicado na Revista Teoria da História da Universidade Federal de Goiás
ano passado. Trata-se de uma análise teórica sobre o conceito de acontecimento
e seus desdobramentos nas obras O queijo e os vermes (do historiador
italiano Carlo Ginzburg) e Eu, Pierre Rivière que degolei minha mãe,
minha irmã e meu irmão... (organizado pelo filósofo francês Michel
Foucault). Na primeira parte iniciei o debate sobre as concepções de
acontecimento da historiografia, na segunda abordei o uso das fontes e
da biografia do personagem histórico nas obras citadas, para logo depois, na terceira, tratar da irrupção do acontecimento. Neste post finalizo
apresentando um último elemento diferencial na narrativa dos dois autores e proponho
uma reflexão sobre a importância do acontecimento para a história.
***
Por conta dos objetivos de cada obra,
diferentemente de Ginzburg, Foucault não intenta desvendar através de um
contexto sócio-histórico as causas e as condições de possibilidade do
acontecimento ligado a Rivière – seja seu crime, sua narrativa ou a relação
conflituosa dos saberes judiciários e psiquiátricos ao lidar com seu caso. Mas
se engana quem acredita que Foucault se desfaz do contexto em privilégio de uma
análise formalista ou semântica dos textos. Pois da mesma forma que Ginzburg
recorre a textos antigos e novos para construir uma determinada cartografia
social, econômica, política e cultural da Europa e, sobretudo, de Friuli,
Foucault também apresenta um breve contexto da cultura popular francesa da
época, que serve mais como canais para compreendermos a importância do
acontecimento, de assassinatos, por exemplo, do que para explicar suas
irrupções.
Assim, é assegurada uma relação entre o
memorial escrito por Rivière e a série de narrativas que formavam uma espécie
de memória popular dos crimes (FOUCAULT, 2007, p. 215). Formando uma “textura”,
os folhetos jornalísticos do período, relatavam os crimes que circulavam pelas
vilas, aldeias e cantões, onde eram contados e até cantados pelos habitantes
destes lugares. De certa forma, era a única maneira de pessoas comuns dividirem
espaço nas manchetes de jornais com soldados, personagens poderosos e reis e de
fazerem parte da história escrita, ainda que abaixo do poder e em choque com a
lei (Idem, 216). Para Foucault, esses dois tipos de história são atravessados
por um acontecimento particular: o assassinato.
“O assassinato é o ponto de cruzamento da história e do crime. É o assassinato que faz a imortalidade dos guerreiros (eles matam, fazem matar e aceitam eles mesmos o risco de morrer); é o assassinato que assegura o sombrio renome dos criminosos (eles aceitaram, vertendo sangue, o risco do cadafalso). O assassinato estabelece o equívoco do legítimo e do ilegal. [...] Com ele se colocam sob uma forma absolutamente despojada a relação do poder e a do povo: ordem de matar, proibição de matar; suicidar-se, ser executado; sacrifício voluntário, castigo imposto; memória, esquecimento” (FOUCAULT, 2007, p. 217).
Ademais, o autor expõe que a História durante
tanto tempo, seguindo a receita da poética aristotélica, excluiu de sua
narrativa determinados personagens, nomes, gestos, diálogos, objetos por
considerá-los indignos ou sem importância social.
É possível notar que além de Foucault não
estabelecer uma hierarquização causal de acontecimentos, também não hierarquiza
os discursos produzidos por personagens ou instituições, mas constrói uma
relação de vizinhança e de similitude entre eles. Inclusive, podemos perceber
isso na forma de organização do dossiê. Ao invés do autor apresentar o
“assassino”, neutralizando suas palavras, procura lidar com seu discurso da
mesma maneira que tratou os relatórios médicos, jurídicos e as notícias dos
jornais, valorizando os escritos de Rivière e deixando que ele fale por si
mesmo. Essa atitude fez parte de um exercício no qual o grupo de pesquisadores
(GIP) promoveu encontros, palestras, reuniões e diálogos nas prisões francesas
na década de 1970, dando voz aos prisioneiros, aos silenciados (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2007, p. 101).
Em O
queijo e os vermes ocorre o contrário. Pois, ainda que se distancie da
História que se dedicava a estudar exclusivamente “as gestas dos reis”, Ginzburg
não dá voz a seus personagens, ou, quando dá, neutraliza-os com os saberes da
historiografia. É ele quem fala no lugar de Menocchio quando o apresenta no
início do livro: “Chamava-se Domenico Scandella, conhecido por Menocchio.
Nascera em 1532 [...], em Montereale, uma aldeia nas colinas do Frioli, a 25
quilômetros de Pordenone, bem protegida pelas montanhas” (GINZBURG, 2007, p.
37).
Por mais que Ginzburg escreva uma história de
um indivíduo da classe popular e valorize a presença de uma camada de crenças
camponesas conservada pela cultura oral, o autor acaba estabelecendo uma
hierarquia contextual na qual os acontecimentos ligados à classe erudita e ao
macrocosmo possuem um grau de importância maior a ponto de condicionar uma
existência. Assim ele escreve:
“Dois grandes eventos históricos tornaram possível um caso como o de Menocchio: a invenção da imprensa e a Reforma. A imprensa lhe permitiu confrontar os livros com a tradição oral em que havia crescido e lhe forneceu as palavras para organizar o amontoado de idéias e fantasias que nele conviviam. A Reforma lhe deu audácia para comunicar o que pensava ao padre do vilarejo, conterrâneos e inquisidores [...]. As rupturas gigantescas determinadas pelo fim do monopólio dos letrados sobre a cultura escrita e do monopólio dos clérigos sobre as questões religiosas haviam criado uma situação nova, potencialmente explosiva” (GINZBURG, 1987, p. 30).
Não é o intuito questionar aqui as hipóteses
que levam às conclusões de Ginzburg, que me parecem muito válidas e coerentes,
porém sendo a proposta do trabalho construir uma análise teórica sobre a
produção, cabe ressaltar a hierarquização de acontecimentos feita de maneira a
priorizar estes dois que apresentei.¹
Também vale ressaltar que este aspecto não é incomum em produções
historiográficas, sobretudo às que lidam com a separação classificatória entre
“classe dominante” e “classe subalterna”, como Ginzburg faz.
O problema, neste caso, apresenta-se da
seguinte forma: para além do aceite ou não da separação da comunidade em
classes, que traz em si uma hierarquia de comando e dependência, acaba-se
caindo no modelo historiográfico que compreende a classe popular como vítima de
uma imposição cultural da classe erudita, justamente a prerrogativa da qual
Ginzburg diz querer escapar. Mas sua fuga é muito tímida. O uso do conceito de
circularidade cultural de Bakthin, que poderia servir para dar conta do recado,
cumpre apenas parte de sua função. Pois se é verdade que diálogos, pessoas,
textos de diferentes classes circulavam nas redes de relacionamentos e que
dentro da classe popular já existiam elementos críticos ao catolicismo
hegemônico, para Ginzburg esse choque só foi possível porque ocorreram
acontecimentos ou aglutinaram-se elementos da classe erudita que eram correspondentes
ao pensamento e às atitudes críticas, até então, ocultas na classe popular.
Quer dizer, é como se as classes populares não pudessem gestar criações e
pensamentos no interior de suas próprias comunidades e desenvolver formas de
resistências, independentemente de serem afetados por “grandes acontecimentos”
ou do contato inevitável com a chamada “cultura erudita”.
Esta operação empreendida por Ginzburg ainda é
bastante comum na escrita da história. Muitos historiadores relutam em
abandonar ou em relativizar a hierarquização de acontecimentos que estabelece
uma prioridade, às vezes determinista, às estruturas políticas, econômicas e
culturais em nível nacional ou internacional. Neste caso, o micro acaba sendo
apenas uma prerrogativa para continuar dando maior atenção ao macro, aos
“grandes acontecimentos” ou às estruturas.²
Como reflexão, penso que seria difícil compreender os pensamentos e as ações de
uma família de camponeses no interior do centro-oeste brasileiro, entre 1960 e
1970, reduzindo-os ao Golpe Civil-Militar, de 1964, como marco de análise.
Considerações
finais: a importância do acontecimento na História
Em Políticas
da escrita (1995), o filósofo Jacques Rancière desenvolve uma reflexão
interessante sobre a importância do acontecimento na e para a História. Contribuição
esta que, infelizmente, tem sido ignorada pela maioria dos historiadores.
Para Rancière, na tentativa de retirar a
prioridade dada aos acontecimentos pela história praticada no século 19, os
modelos historiográficos do século 20, especialmente com a participação
decisiva dos Annales, empreenderam
uma neutralização do objeto próprio do saber histórico: o acontecimento. Esta
neutralização se deu sob a negação da racionalidade própria do acontecimento
que “é aquela do real, que não se preocupa em se fazer preceder, justificar,
fundamentar por sua possibilidade” (RANCIÈRE, 1995, p. 242). Na busca de uma
narrativa mais próxima ao real, a história acabou recorrendo ao “realismo” que
submete o real apenas àquilo que é possível a partir das estruturas que o
precedem. Desta forma, o jogo da realidade, enquanto relação de dependência ou
de independência, entre o já existente e a surpresa do acontecimento é
suprimido pela assertiva do realismo que diz que somente o possível é contável
na história. Com isso, a racionalidade historiadora, “chega a identificar o
tempo como o sistema das condições dessa possibilidade” (Idem). Para Lucien
Febvre, por exemplo, Rabelais não poderia ser ateu no século 17 porque seu
tempo não lhe dava tal possibilidade. Neste caso, o termo “tempo” adquire o
significado do conjunto das condições linguísticas e culturais que encarnava as
estruturas de crença em sua época. Seria, portanto, um anacronismo, uma
“insubmissão ao tempo”, pensar desta maneira (cf. RANCIÈRE, 2011).
No entanto, Rancière adverte sobre alguns
riscos de uma adoção irrestrita deste modelo de pesquisa histórica. A
ineficácia de uma réplica aos negacionistas do Holocausto é um deles. Um dos
argumentos destes é o seguinte: apesar da existência de indícios não há um
encadeamento de causa e efeito entre seus materiais a ponto de ser completado
através de um processo objetivo, e para que possa servir como prova de que
aquilo aconteceu. Realmente, se formos pensar o conceito de acontecimento (definido
no início deste escrito), percebe-se que o raciocínio é coerente, já que o
acontecimento não é simplesmente uma reunião de fatos, mas também uma
interpretação por quem e para quem este designa um sentido. Logo, depende não
só de uma objetividade, mas de uma subjetividade.
Mas o argumento mais problemático sobre a
inexistência do acontecimento do Holocausto é o que diz que não era possível
ele acontecer, pois era impensável a partir das mentalidades, num período de
pós-guerra, que almejavam paz e sentimento de união à humanidade. Vidal-Naquet
respondeu aos negacionistas dizendo que não se devia perguntar como
tecnicamente aquilo foi possível, pois foi possível porque aconteceu. Logo, ele
inverteu o raciocínio do saber histórico que submete o acontecimento à
possibilidade, agora priorizando o acontecimento (RANCIÈRE, 1995, p. 245). E
talvez esta seja a saída para que captemos a mudança e o movimento na história.
É preciso, neste caso, mais do que nunca, acreditarmos no acontecimento ainda
que ele não tenha uma relação de submissão com as estruturas (mentais,
políticas, econômicas, etc.).
Em última instância, pode ser que o maior
risco da supressão do acontecimento seja o de cairmos num imobilismo da
história ou, como apontou Rancière, chegarmos num “fim da história”, no qual só
conseguimos declarar a inexistência dos acontecimentos, e num “fim da
política”, no qual só conseguimos lamentar a inexistência de valores, de
mudanças, de sentimentos, de sonhos e de futuro.
Referências:
ALBUQUERQUE
JÚNIOR, Durval Muniz. História: a arte
de inventar o passado. Bauru, SP: Edusc, 2007.
FOUCAULT,
Michel. Os assassinatos que se conta. In: ______ (coord.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe,
minha irmã e meu irmão... um caso de parricídio no século XIX. 8ª edição.
Tradução de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007, p.
211-221.
GINZBURG,
Carlo. O queijo e os vermes: o
cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de
Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GINZBURG,
Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In:______. A micro-história e outros ensaios.
Lisboa: Difel, 1991, p. 169-178.
RANCIÈRE,
Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON,
Marlon (org.). História, verdade e tempo.
Chapecó-SC: Argos, 2011, p. 21-49.
RANCIÈRE,
Jacques. Políticas da escrita. Rio
de Janeiro: Editora 34, 1995.
Artigo publicado originalmente em:
[1] Albuquerque Júnior assevera que tal raciocínio se dá porque Ginzburg não
considera o que foi dito como acontecimento autônomo e o reduz às condições de
sua produção enquanto exigência de uma metodologia totalizante (2007, p. 109).
[2] Em
uma comunicação proferida, de 1979, Ginzburg diz o seguinte sobre seu método:
“A análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo-se numa
escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido
impensável noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar
as estruturas invisíveis dentro das
quais aquele vivido se articula. O modelo implícito é o da relação entre langue e parole formulado por Saussure. As estruturas que regulam as
relações sociais são, como as da langue,
inconscientes. Entre a forma e a substância há um hiato, que compete à ciência
preencher” (GINZBURG, 1991, p. 177-178, grifos meus). Creio que o problema seja
o de tentar entender a articulação entre a estrutura e o vivido, porém
acreditar que o vivido está submisso, irrestritamente, à estrutura; por isso
destaquei a palavra “dentro” para compreendermos a relação de dependência do
primeiro ao segundo, segundo este método de pesquisa.