“Que conversa é essa?” Não, não. O blogueiro não ficou louco. Os
árabes foram mestres e educadores do Ocidente latino quando “nosso mundo”
abandonou o pensamento filosófico durante um período da Idade Média. Esta é a
conclusão a qual chega Alexandre Koyré ao realizar uma pesquisa sobre
platonismo e aristotelismo na filosofia medieval. Seu trabalho é relativamente
antigo (não para um estudante de história, claro). Data mais precisamente do
ano de 1944. E foi publicado numa revista acadêmica canadense, chamada Les
Gants Du Ciel.
Alexandre Koyré foi um filósofo franco-russo, que viveu entre 1892
e 1964 e pesquisava sobre história e filosofia da ciência. Ele explica nesta pesquisa
que os árabes foram, de fato, professores do Ocidente e não somente intermediários
como estava sendo escrito até então. Por que o autor diz isso? Afinal a filosofia
com a qual construímos nosso conhecimento teórico e científico e nosso modelo
de democracia veio dos gregos (helênicos) e foi herdada pelos romanos (latinos),
correto? Mais ou menos. Primeiro porque os romanos, como mais tarde sublinhou
Paul Veyne (2010), eram indiferentes (quase totalmente) à ciência e à
filosofia.
“Os romanos se interessam pelas coisas práticas: a agricultura, o
direito, a moral. Mas, por mais que procuremos, em toda a literatura latina
clássica, uma obra científica digna desse nome, não a encontramos. Muito menos
uma obra filosófica. Encontraremos Plínio, isto é, um conjunto de anedotas e
bisbilhotices; Sêneca, isto é, uma exposição conscienciosa da moral e da física
estóicas, adaptadas – ou seja, simplificadas – ao uso dos romanos; Cícero, isto
é, ensaios filosóficos de um diletante homem de letras; ou Macróbio, um manual
de escola primária”, escreve Koyré (1991, p. 24).
Além do mais, os romanos também não se preocuparam em realizar
traduções da filosofia grega, com exceção de poucos diálogos traduzidos por Cícero
(entre eles, o Timeu). Nem Platão,
nem Aristóteles, nem Euclides, nem Arquimedes foram traduzidos para o latim
durante a época clássica, período de hegemonia dos pagãos. “Pois se o Órganon, de Aristóteles, e as Enéadas, de Plotino, o foram, no final
das contas isso só ocorreu muito tarde e foi obra de cristãos”. Koyré sugere
que este fato poderia ser relativizado na medida em que todo “bem nascido”
romano, isto é, um patrício, aprendia grego. Contudo a questão é mais
complicada. A aristocracia romana não era totalmente “helenizada” senão em
círculos muito pequenos.
O contrário se passa no mundo árabe. Antes do fim da conquista
política (e para Henri Pirrene a era medieval começa com a invasão dos árabes à
península ibérica e não com a dos germânicos, chamados outrora de “bárbaros”,
sobre Roma), os árabes-islâmicos vão em busca da civilização, da ciência e da
filosofia gregas. “Todas as obras científicas e todas as obras filosóficas
serão, ou traduzidas, ou – é o caso de Platão – explanadas e parafraseadas” (p.
25). Nesse sentido é possível afirmar que o mundo árabe esteve correto ao dizer-se
herdeiro e continuador do mundo helênico. Sua Idade Média está mais para o que
foi o nosso Renascimento. Foi exatamente por esta razão que os árabes puderam
desempenhar o papel de educadores do Ocidente latino. Algo que atrapalha e muito
o estereótipo do árabe como ser exótico, inculto e grosseiro construído pelos
europeus, ainda predominante no Ocidente contemporâneo.
Mas você, que não é estudante de história, deve estar se
perguntando por que raios os árabes tiveram de ensinar algo do qual nós,
ocidentais, já conhecíamos. Então. Com certeza você já ouviu falar das
horrendas invasões “bárbaras” que destruíram o Império Romano, desencadearam um
acentuado processo de ruralização e mergulharam o mundo ocidental num período
de sombras, barbárie e ignorância. Pois bem. Essa imagem do medievo como “Era
das Trevas” já foi suficientemente desconstruída pelos historiadores franceses
dos Annales, contemporâneos de Koyré. Entretanto este quadro pintado pelos
iluministas não é completamente falso. Alexandre Koyré escreve que a Idade
Média realmente teve sua época de relativa barbárie política, econômica e
intelectual mais ou menos entre os séculos VI e IX. “Mas teve também uma época
extraordinariamente fecunda, época de vida intelectual e artística de uma
intensidade sem par, que se estende do século XI ao século XIV (inclusive), e à
qual devemos, entre outras coisas, a arte gótica e a filosofia escolástica” (p.
22).
Pronto. Chegamos à filosofia escolástica. Os escolásticos foram os
promotores da educação filosófica da Europa, criadores da terminologia que
ainda nos servimos e aqueles que possibilitaram a retomada do contato com a
filosofia da Antiguidade. A escolástica que, para simplificar, trata-se de um
conhecimento construído a partir dos fundamentos da filosofia grega para
conciliar fé cristã e razão, tornou-se hegemônica a partir do século IX. São Tomás
de Aquino foi o principal filósofo escolástico. Ele tentou “cristianizar” a
obra de Aristóteles, o mais importante autor para o medievo. Antes dele, os
árabes já faziam o mesmo processo de conciliar o Islã ao aristotelismo. Questões
tratadas pela filosofia medieval como se o espírito ocupa ou não um lugar no
espaço, se o verdadeiro pensamento pode ou não ser individual ou sobre a
unidade do intelecto humano já tinham sido discutidas nas teorias de filósofos
árabes como Avicena (930-1037) e
Averróis (1126 - 1198).
A tentativa de conciliar a doutrina política de Platão estava
sendo feita desde Alfarábi (872-950). O mundo árabe
conheceu Platão muito melhor do que os latinos puderam conhecê-lo, assegura
Koyré. “Como é sabido, a doutrina política de Platão culmina na dupla ideia da
Cidade ideal e do Chefe ideal da Cidade, o rei-filósofo que contempla a ideia
do Bem e as essências eternas do mundo inteligível, fazendo reinar a lei do Bem
na Cidade. Na transposição farabiana, a Cidade ideal torna-se a Cidade do Islã
e o lugar do rei-filósofo é tomado pelo profeta. Isso já é bastante claro em
Alfarábi. E ainda mais claro em Avicena, que descreve o profeta – ou o Imã –
como o rei-filósofo, o Político de
Platão” (p. 29). Outro filósofo escolástico, o monge franciscano Roger Bacon,
vai copiar Avicena, aplicando ao papa o que o filósofo árabe conferiu ao Imã
numa pretensão de teocracia universal.
A partir destes entrecruzamentos, Koyré assegura o seguinte: “A
barbárie medieval, econômica e política – como demonstram os belos trabalhos do
grande historiador belga Pirrene –, teve como origem muito menos a conquista do
mundo romano por tribos germânicas do que a ruptura das relações entre o
Oriente e o Ocidente, entre o mundo latino e o mundo grego. E é o mesmo motivo –
a falta de relações com o Oriente helênico – que produziu a barbárie
intelectual do Ocidente. Como foi a retomada dessas relações, isto é, a tomada
de contato com o pensamento antigo, com a herança grega, que impulsionou o
desenvolvimento da filosofia medieval. Por certo, na Idade Média, o Oriente –
exceção feita a Bizâncio – não mais era grego. Era árabe. Assim, foram os
árabes os mestres e educadores do Ocidente latino” (p. 23).
As primeiras traduções de obras filosóficas e científicas gregas
para o latim foram feitas não diretamente do grego, mas através do árabe. E isso
não ocorreu somente porque não tinha mais ninguém no Ocidente que sabia grego,
mas também porque não existia mais ninguém, afirma Koyré, que fosse capacitado
suficientemente para compreender livros difíceis como a Física ou a Metafísica de
Aristóteles. Desta forma, sem o auxílio de Alfarabi, Avicena e Averróis, os
latinos nunca teriam tido acesso a tais obras. Sobretudo porque para
compreender gente como Platão, Aristóteles e Ptolomeu não basta apenas saber
ler grego, mas é necessário saber filosofia. Coisa que a antiguidade latina
pagã ignorava, não sabia, nem queria saber (e talvez até tivesse raiva de quem
soubesse).
Apesar disso, o florescimento da civilização árabe-islâmica durou
pouco. “O mundo árabe, após haver transmitido ao Ocidente latino a herança
clássica que recolhera, perdeu-a e até a repudiou” (p. 25). Mas isso não se
deve ao que muitos escrevem até hoje: uma suposta fobia genética dos árabes
pela filosofia ou uma impenetrabilidade espiritual do oeste ao leste do globo. O
que fez com que o mundo árabe se tornasse hostil à filosofia foi uma reação
violenta da ortodoxia islâmica, aponta Koyré. Pois reprovava nela, com razão,
sua atitude antirreligiosa: o valor da dúvida, da crítica e do questionamento. Mas
também por questões bélicas, as inúmeras invasões turcas e mongólicas (e berberes
na Espanha). Acontecimentos que contribuíram muito para toda carga de elementos
do fanatismo que até hoje compõem seguimentos da religião islâmica.
Referências:
KOYRÉ, Alexandre. Estudos
de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991.
VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
* Todas as imagens do post são do cartunista jordaniano Amjad
Rasmi.
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