terça-feira, 5 de agosto de 2014

Em 1926: a presença de Gumbrecht

Qual é o sentido de estudarmos História? Por que esta área do conhecimento privilegia determinadas datas, contextos e acontecimentos em detrimento de outros? Por exemplo, por que a historiografia brasileira produziu tantos livros dando destaque a certos anos como os de 1822 e 1964? E, indo mais a fundo, que importância tem o aluno de História saber sobre o triunvirato da antiga república romana ou sobre as guerras médicas? Mudará sua vida acaso ele saiba como se dava a divisão de classes durante a Idade Média? De maneira direta ou indireta, um dos livros de Gumbrecht inevitavelmente suscita indagações como estas. O autor escolheu abordar a simultaneidade histórica de uma maneira muito particular. Produziu um livro sobre o ano de 1926. Mas, de acordo com a historiografia em geral, o que diabos aconteceu de tão importante neste ano? Nada.

Alemão, que reside há tempos nos EUA onde dá aulas na Universidade de Stanford, Hans Ulrich Gumbrecht (1948-) é um teórico literário que se inspira em historiadores como Reinhart Koselleck, Hayden White e Paul Zumthor. Considera-se um autor pós-moderno, mas deixa claro que este rótulo só serviria num sentido negativo, dentro da (já enfadonha) batalha acadêmico-ideológica em prol da preservação dos valores “modernos” ou “modernistas” contra os “pós-modernos”, o que garante ser, desde já, uma causa perdida. Sua postura pós-moderna é referente à tentativa de não pensar a História como um movimento homogêneo e totalizante, à argumentação em favor de uma concepção “fraca” de subjetividade e a seu fascínio por superfícies materiais (GUMBRECHT, 1999, p. 14). Publicado, em 1997, pela editora de Havard (dois anos antes da versão brasileira), a obra Em 1926: vivendo no limite do tempo é sem dúvidas um livro de história. Só que incomum. Mas o inusitado não está somente em tratar de um ano que pouco importa segundo nossos marcos cronológicos. É, também, um livro de história não-linear e não-sequencial – pelo menos não do modo como estamos acostumados. O enredo fala sobre 1926, mas não possui começo, meio e fim. Aliás, ousaria dizer que só tem meio.

Antes de começar o livro propriamente dito (ou ele já teria começado?), há um manual de instrução para o leitor. Ali Gumbrecht diz que este não é um livro para ser começado do início. Isto porque ele não tem início. Os 51 capítulos (se é que assim podemos chamar) são verbetes no formato de crônicas sobre 1926. Estão divididos em três seções: “dispositivos”, “códigos” e “códigos em colapso”. Porém o leitor escolhe por onde começar. Ao término da crônica a qual o verbete dá nome, o leitor encontrará uma lista para escolher entre os diversos verbetes relacionados ao que ele acabou de ler. E assim por diante, até concluir o livro, ou até desistir dele antes de ler mais ou menos 500 páginas. Quer saber do que tratam os verbetes? São descrições gerais sobre fatos e configurações do ano de 1926 (na política, cultura, artes, esportes, etc.), o que o autor chama de “percepções de superfície dominante e visões de mundo dominante”. Mostro um exemplo a seguir.

A relação de Gumbrecht com o Brasil é, de alguma forma, próxima. Em 1926 há notícias e referência a autores brasileiros, como aos historiadores Sérgio Buarque de Holanda e Nelson Werneck Sodré. No verbete “individualidade = coletividade (líder)” da seção “códigos em colapso”, o autor aborda a falsa dicotomia entre individualidade e coletividade que aparece, especialmente, na figura do líder. Apontando casos no mundo todo que se relacionam a discussão, ele apresenta uma entrevista do Jornal do Brasil a respeito da relação entre Mussolini e a nação italiana, segundo a qual existia uma mútua subordinação entre ambos, já que o líder fascista, em vez de guia, era conduzido pelas forças que ele parecia conduzir e, caso um dia ele resolvesse parar, o povo o obrigaria a seguir. Apresenta também a opinião de Adolf Hitler sobre o tema, a partir de seu livro Minha luta, publicado em 1926. Hitler contraria completamente a tese anterior, negando a reciprocidade entre líder e liderados. “Para ele, a política se caracteriza por uma polaridade quase hostil entre o gênio do Líder e a inércia das massas. Como ele não vê necessidade de aprovação coletiva para as decisões do líder, ele abomina a ideia de uma relação não-hierárquica entre o Líder e a população”, escreve Gumbrecht (1999, p. 435). Ao concluir o capítulo, para corroborar com a tese que diz que “a tarefa mais importante do líder é manter as massas em movimento”, o autor faz referência à marcha da Coluna Prestes no Brasil, que teria começado como manobra estratégica incorreta durante uma guerra civil e depois se tornado um símbolo da resistência política e uma missão para educar o povo brasileiro. Em todo caso, Gumbrecht parece caçoar desta última afirmação (extraída de um livro de José Augusto Drummond), dizendo que em 1926 não se viu nada além do ziguezaguear dos soldados no território nacional, mas que já seria o suficiente para a liderança, posto que “enquanto Prestes mantiver os seus seguidores em movimento, eles não perguntarão aonde ele os está levando” (p. 436).

Em todo caso, Gumbrecht diz não querer impor sua voz individual na seção dos verbetes, nem fazer interpretações profundas ou contextualizações diacrônicas. O que quer mesmo é promover pela escrita uma simultaneidade histórica, de maneira superficial, como se estivéssemos no ano dos acontecimentos. Por isso ele nega fazer qualquer explicação que seja baseada em pensamentos e visões posteriores ou anteriores ao ano que é seu objeto de estudo. O objetivo principal é fazer o leitor acreditar na ilusão de que está (vivendo) em 1926. Para isso, Gumbrecht tenta fazer aquilo que deu título a um de seus livros, Produção de presença. Embora, na verdade, “a produção de presença” se refira mais especificamente ao processo espacial que faz com que um objeto tenha algum impacto sensível sobre as pessoas (2010, p. 12), ela também acompanha a ideia de representação para o autor, ligada ao tempo, que é fazer o ausente tornar-se presente (1999, p. 10). 



Gumbrecht
Acompanhando o citado processo de produção de presença, seu laboratório de pesquisa ao escrever Em 1926 é algo que chama atenção. Gumbrecht coletou toda informação que pudesse ter sobre tal ano e a levou a seu escritório para a confecção da narrativa. Leu livros, revistas e jornais, ouviu músicas e assistiu repetidas vezes filmes em preto e branco produzidos em 1926. Durante o trabalho, até seu calendário era de 1926. Foi um verdadeiro mergulho no objeto. Coisa muito distinta da que normalmente fazem os historiadores quando vão pesquisar sobre um dado período. Isto é, a tentativa da historiografia em geral é se afastar do objeto para atingir um grau de objetividade, para não se deixar “contaminar” com o mesmo ou não ser mordido pelo vampiro que se está entrevistando (ao contrário do filme). Usa-se o método do distanciamento (entre sujeito e objeto) para a análise e compreensão, tal como um etnógrafo (da linha mais “positivista”) quando ia descrever uma tribo indígena. Já o autor tem pouco interesse sobre os conceitos de compreensão e interpretação. Para ele ambos se relacionavam “com uma topologia [da hermenêutica] na qual a ‘superfície’ precisava ser penetrada para se alcançar uma profundidade – que seria supostamente um aspecto da Verdade”. Este método garantia ser superior à percepção do sujeito (1999, p. 470). Sabe-se que a hermenêutica, bem como o modelo epistêmico seguido pelas Humanidades privilegia o “sentido” (extraído pela interpretação), enquanto Gumbrecht volta sua atenção à “presença”.

Mas afinal de contas, o que motivou Gumbrecht a escrever história desta forma? Além do “manual de instrução ao leitor”, esta resposta é dada de maneira satisfatória no penúltimo capítulo do livro (ou seria já posfácio?) intitulado “Depois de aprender com a história” que, junto ao último capítulo (“Estar-nos-Mundos de 1926”) e diferentemente dos verbetes, foi escrito de maneira argumentativa em direção aos acadêmicos interessados nos pressupostos teóricos, nos processos de pesquisa e escritura do livro e outros usos da obra além da re-presentificação de 1926.

Em resumo, o autor partiu de um pressuposto um tanto quanto pessimista, eu diria. Como sugeri no primeiro parágrafo, ele acredita que não há mais o que aprender com a História. Melhor dizendo, que abandonamos a esperança de aprender com a História no sentido de uma narrativa didática. Primeiro porque, pragmaticamente, descobrimos na modernidade que não é possível utilizar a história como exemplo ou guia de ação ao presente, pois, já que o tempo está em permanente mudança e não há leis históricas, o presente sempre será diferente e imprevisível. Segundo porque aprendemos com Hayden White que as regras que regem a composição de um texto historiográfico não são as mesmas que supostamente governariam a história. Então Gumbrecht se questiona o que podemos fazer com nosso conhecimento sobre o passado. Um primeiro passo seria aparentemente o que o autor fez Em 1926, o de tentar usar maneiras não-narrativas de pensar e representar o passado. Mas ele aponta uma questão mais essencial. A de saber o que é o passado antes de buscar formas possíveis de representá-lo (1999, p. 11).

Esse argumento reprisa passagens de autores pós-modernos (como Ankersmit e Munslow) que me incomodam um pouco. Até considero corriqueiro quando este pressuposto vem de um pensador “construtivista” que, no limite, defende a existência de um passado único, mais verdadeiro, mais real e límpido e do qual precisamos nos informar para reconstruí-lo fielmente, a despeito de todas as apresentações que foram feitas dele. Trata-se de uma noção baseada num essencialismo que pode se tornar uma aporia para o historiador, haja vista que não temos acesso ao passado senão pelas fontes (que são representações!) produzidas dentro de um jogo de poder e cultura específica e, que portanto, não são transparentes (sobretudo porque a linguagem é opaca). A questão aqui não é refutar a existência de uma realidade histórica fora da subjetividade e dos discursos, como o autor crítica aos novos historicistas. Esta certamente existe. A questão é que, do ponto de vista pragmático, só temos acesso a realidade através dos discursos e de nossas subjetividades. Contudo, a originalidade de Gumbrecht e sua proposta historiográfica vêm daí mesmo, de um certo paradoxo inovador, digamos niilista-existencialista. O autor concorda que a representação (tornar o passado de fato presente) é impossível, mesmo fazendo apologia do “contato direto do passado” por meio da imersão do sujeito em contato a uma espécie de atmosfera da época composta por objetos antigos – coisa que ele fez consigo mesmo em seu “laboratório”. Entretanto ele diz que a repreensão dos historiadores da chamada Nova História aos historiadores modernistas, sobre a impossibilidade de acesso ao passado integral, não passa de um recalque. De um desejo (in)contido de ser onisciente, apreendendo todo o passado, de ser onipresente, vivenciando plenamente o período de que estuda e de viver a eternidade, este tempo simultâneo, sem passado ou presente.

De alguma forma, a proposta do autor é tentar satisfazer este desejo (divino?) que, vou confessar para vocês, acredito que é mais dele do que de qualquer outro. Neste sentido, Gumbrecht parece mais preocupado com o que é o passado para nós (e para ele) de uma maneira mais próxima da arte do que da ciência. Quando diz que seu livro é um experimento que visa atingir nossos impulsos pré-conscientes fazendo a gente se sentir em 1926, ele talvez esteja tentando instigar uma experiência estética (próxima ao sublime), aquela em que apreendemos o que é algo (o que é o passado) através da imaginação ao contemplar uma obra de arte (ou, no caso, ao ter contato com objetos materiais da época ou, vou além, sentir a “presença” de Deus ao entrar numa catedral medieval). Neste caso, a coragem de sua tentativa inovadora só não seria maior do que sua pretensão.
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Dica: Além de conhecedor de alguns acontecimentos e aspectos da história e da literatura nacional, Gumbrecht fala português fluente e já veio ao Brasil algumas vezes. Ele estará novamente em terras brasileiras fazendo a conferência de abertura do Oitavo Seminário Brasileiro de História da Historiografia. Quem quiser prestigiar o pesquisador é só “produzir sua presença” (trocadilho inevitável) no dia 18 deste mês, na Universidade Federal de Ouro Preto, campus localizado em Mariana-MG. Eu sei que ninguém perguntou mas eu também estarei lá, apresentando trabalho sobre Stirner e a historiografia do anarquismo. Se Deus quiser. Amém!

Referências:
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010. 
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Um comentário:

  1. Muito bom seu texto, achei bem didático para quem esta lendo Gumbrecht e não esta conseguindo entende.
    Muito obrigado

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